Frase de uma camiseta da Marcha dos Usuários de Saúde Mental à Brasília - Foto: Nivya Valente
PICICA: "O movimento antimanicomial brasileiro sofre mais
influência da Psiquiatria Democrática Italiana, e, com ele, partilha a
premissa de que deve ser produzido um novo imaginário social para a
loucura, que a desvincule dos conceitos de periculosidade, preguiça,
incapacidade, de forma a gerar uma nova relação entre o “louco” e a
sociedade. A antipsiquiatria, além de negar a existência da doença
mental, ainda mantinha seus questionamentos dentro do domínio do saber
médico e suas ações dentro do âmbito do manicômio. Não há a pretensão de
se desenvolver outros modos de relação da sociedade com a loucura. Dito
isso, podemos considerar que a grande diferença residiria na amplitude
dos questionamentos trazidos por cada uma das correntes."
Desinstitucionalizar a loucura: uma mudança de foco
Para o psicólogo André Luís Leite de F. Sales, as formas de violência institucional devem ser abandonadas, apoiando-se na figura do agente comunitário na construção de uma “ponte” entre o saber técnico e o especializado
Por: Márcia Junges
Movimento criado para “desmontar a estrutura institucional de saberes e práticas que sustentam a identificação da loucura com a doença mental”, a desinstitucionalização da loucura é uma mudança de foco, analisa o psicólogo André Luís Leite de F. Sales, em entrevista concedia por e-mail à IHU On-Line. Segundo ele, a desrazão foi apropriada pelo saber médico psiquiátrico, e a nova modalidade de tratamento repudia “as formas de violência institucional exercidas em nome de uma suposta terapêutica”. Além disso, há o claro objetivo de se construir uma sociedade sem manicômios. Nesse contexto, o papel do agente comunitário é fundamental, uma vez que ele promove uma “ponte entre o saber popular e o saber técnico especializado”. André comenta, também, sobre a influência do psiquiatra italiano Franco Basaglia sobre a reforma psiquiátrica brasileira. Para Basaglia, o manicômio era um lugar de segregação, violência e morte a ser “combatido, negado, superado e questionado em suas finalidades, num contexto mais geral das instituições sociais”. Sua concepção é de que a doença mental existe, mas deve ser retirada de um primeiro plano, dando preponderância a outras instâncias de vida do sujeito, que não é tão somente um doente.
André Luís Leite de F. Sales possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN e mestrado em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. No momento é residente no Programa de Residência Integrada em Saúde do Grupo Hospitalar Conceição (2011-2012).
Confira a entrevista.
André Luís Leite de F. Sales possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN e mestrado em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. No momento é residente no Programa de Residência Integrada em Saúde do Grupo Hospitalar Conceição (2011-2012).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que significa a desinstitucionalização da loucura?
André Luís Leite de F. Sales – Trata-se de um movimento que tenta desmontar a estrutura institucional de saberes e práticas que sustentam a identificação da loucura com a doença mental. É enfrentar, no cotidiano da vida, os efeitos decorrentes da apropriação da experiência de desrazão pelo saber médico psiquiátrico. Significa uma mudança de foco. Depois que a experiência da loucura, com a construção do conceito de doença mental, passou a ser de domínio exclusivamente médico, o foco do tratamento tem sido na doença instalada naquele corpo, e não no indivíduo em sofrimento. A loucura, quando nomeada e destinada ao saber médico, passou a ser associada à imprevisibilidade e à periculosidade dos comportamentos. Decorre disso que o lugar social atribuído ao louco seja o da exclusão, tendo a hospitalização, a contenção química e o isolamento do indivíduo como recursos “terapêuticos” privilegiados. O movimento de desinstitucionalização questiona esses pressupostos e propõe uma mudança no foco das ações. Em 1989 houve uma intervenção municipal na Casa de Saúde Anchieta, localizada na cidade de Santos-SP. Esse serviço funcionava em condições precárias, tendo como recursos terapêuticos básicos eletrochoques, camisas de força, confinamentos em solitárias, humilhações e outros modos mais ou menos sutis de violência. Os jornais da época se referiam ao lugar como “Casa de Horrores”. Uma intervenção do governo municipal a fechou e estruturou, em seu lugar, uma rede diversificada de serviços. As diretrizes que regiam o funcionamento dos novos serviços refletiam o repúdio contra as formas de violência institucional exercidas em nome de uma suposta terapêutica bem como o desejo de se construir uma sociedade sem manicômios. Atenção territorial, não violência, não humilhação, dignidade e liberdade: essas eram as normas que deveriam regular a atenção em saúde mental nos serviços que acabavam de ser criados na baixada santista. Na experiência de Santos, foi possível visualizar com muita clareza a perspectiva da desinstitucionalização, entendida como um conceito norteador, como proposta de mudança cultural, de transformação de uma mentalidade arraigada de exclusão do diferente, em que o louco e outras pessoas em estado de sofrimento psíquico se incluem entre os mais diferentes.
IHU On-Line – Em que medida podemos compreender a desinstitucionalização da loucura em relação às práticas dos agentes comunitários de saúde?
André Luís Leite de F. Sales – A figura do agente comunitário de saúde pode ser apontada como uma das maiores inovações no modo de organizar a saúde no país. A grande aposta nesse personagem é a de que ele possa fazer a ponte entre o saber popular e o saber técnico especializado, auxiliando na construção de um projeto de cuidado que atenda às necessidades de um território específico, do qual o agente é membro integrante e vasto conhecedor. Essa posição híbrida do agente – membro das equipes de saúde e morador do território no qual ele vai atuar – cria uma configuração potencialmente muito interessante para um cuidado em saúde mental orientado pela perspectiva da desinstitucionalização. Ao partilharem a vida cotidiana com as pessoas a quem atendem, os agentes acabam sendo expostos aos casos de uma maneira distinta dos demais profissionais. Como a noção de saúde presente na nossa cultura ainda está bastante atrelada à ideia de adoecimento do corpo físico, a uma disfunção orgânica, ele é, via de regra, o motivo que leva a população a procurar os serviços e os profissionais de saúde. Como também as formações para atuar em saúde ainda estão centradas no adoecimento dos órgãos e do corpo biológico, tais motivações encontram acolhida por parte dos profissionais de saúde que, comumente, restringem sua “escuta clínica” à queixa, focam seu olhar no órgão que se encontra com o funcionamento alterado, na doença instalada naquele organismo, e não necessariamente no indivíduo em sofrimento.
Mais do que um prontuário
Pois bem, os agentes acabam sendo apresentados aos seus “pacientes” de uma forma diferente, tendo em vista serem trabalhadores de saúde cuja especificidade de trabalho relaciona-se ao pertencimento a um dado território – e não à posse de um conjunto de conhecimentos biológicos. Antes de serem apresentados às patologias, aos adoecimentos e às disfuncionalidades das pessoas, eles conhecem as histórias de vida daqueles a quem atendem. Seus pacientes são seus amigos, vizinhos e conhecidos, e não o hipertenso e diabético do “prontuário 2357”. Isso favorece o agenciamento de outro tipo de relação entre os agentes e os usuários. Apontamos que a ausência destes conhecimentos nosológicos auxilia o agente a focar sua atenção no indivíduo em sofrimento, e não na doença que ele porta. Durante o nosso trabalho com os agentes, eles falaram muito no papel da intuição no caso dos cuidados em saúde mental. Interrogamos no que consistiria essa intuição, e ouvimos que eles comparavam, ao longo do tempo, o usuário com ele mesmo, nos diferentes momentos de sua existência singular. Por visitarem mensalmente os moradores, por serem vizinhos, frequentadores dos mesmos espaços, indivíduos com os quais eles mantêm um contato que não se restringe ao momento da visita de trabalho, eles são capazes de perceber “intuitivamente” quando está se instalando algum sofrimento. Vemos nisso um modo de cuidado complexo no qual se expressa a potência do lugar ocupado por esses profissionais para a continuidade do movimento de reforma psiquiátrica brasileira.
IHU On-Line – Em que aspectos essa desinstitucionalização é uma forma de humanização da saúde mental?
André Luís Leite de F. Sales – Se pensarmos humanização como uma tentativa de se rever os efeitos produzidos pelos diferentes modos como o trabalho em saúde é operado, ou mesmo, se considerarmos humanização o imperativo de melhorar as condições de tratamento que oferecemos aos indivíduos em sofrimento, poderemos entender a orientação da desinstitucionalização como uma forma de humanização da saúde.
IHU On-Line – Qual é a importância do tratamento psicológico dentro dessa perspectiva?
André Luís Leite de F. Sales – Quando se aponta a insuficiência de um determinado conjunto de conhecimento para dar conta de uma situação – no caso, a insuficiência da psiquiatria e das terapêuticas farmacológicas –, estamos também afirmando a necessidade de que outros saberes venham a contribuir com o manejo da situação. Nesse sentido, a ideia é somar saberes devido à complexidade da questão. A psicologia tem contribuído bastante na proposição de modelos de inteligibilidade e de práticas de intervenção no que diz respeito ao cuidado em saúde mental. Então, dentro de uma perspectiva desinstitucionalizante, ela tem muito a contribuir.
IHU On-Line – Poderia contextualizar o surgimento dos Centros de Atenção Psicossocial - CAPS dentro da reforma psiquiátrica ocorrida no Brasil?
André Luís Leite de F. Sales – Experiências como a de Santos-SP mostraram que era possível construir outros modos de assistência aos indivíduos em sofrimento psíquico, fechando o hospital psiquiátrico e, em seu lugar, montando uma sofisticada estrutura de serviços, dispositivos e estratégias baseadas na concepção de território. Delas advém a proposta de que se criassem serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico que pudessem promover cuidado, acolhimento e inclusão. O objetivo deles é oferecer atendimento à população, realizar o acompanhamento clínico e a reinserção social dos usuários pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários. Os CAPS são serviços de saúde municipais, abertos, comunitários que oferecem atendimento diário. A criação desses serviços é vista como um dos principais indicadores de avanço da reforma psiquiátrica. Mesmo sendo essa uma afirmação questionável, não podemos negar o quão significativa foi a disseminação deles pelo país, passando de 148 em 1998, para 1.650 em 2011.
IHU On-Line – Há um nexo que une a reforma psiquiátrica em nosso país com o movimento da antipsiquiatria? Por quê?
André Luís Leite de F. Sales – Sim, na medida em que ambos são movimentos sociais que se propõem – ainda que de modos distintos – a questionar a forma como a assistência aos indivíduos em sofrimento mental era realizada. Contudo, conceitualmente falando, o movimento brasileiro sofre influência maior da Psiquiatria Democrática Italiana. A antipsiquiatria surgiu na Inglaterra e tem como expoentes Ronald Laing e David Cooper . Esse movimento promoveu um forte questionamento não só à psiquiatria, mas também à própria doença mental. Nessa perspectiva, a loucura é um fato social decorrente do modo como a sociedade está organizada. Por conseguinte, não necessitaria de tratamento algum. É importante localizar historicamente a antipsiquiatria dentro da contracultura dos anos 1960 para compreendermos a radicalidade de suas proposições. Nesse mesmo período, na Itália aconteceu o movimento que promove a maior ruptura epistemológica e metodológica entre o saber/prática psiquiátrico, ruptura vivenciada até então. Ao contrário da antipsiquiatria, a Psiquiatria Democrática Italiana não nega a existência da doença mental. Antes disso, propõe uma nova forma de olhar para o fenômeno. Trata-se de uma tentativa de devolver à loucura a complexidade que lhe foi retirada pela identificação com a doença mental. Qual seria a finalidade desses espaços? A que eles servem? Qual papel social eles desempenham? Que tipo de resposta era esperado deles?
Cultura de exclusão
Em 1971, Basaglia assume a direção do Hospital Psiquiátrico de San Giovanni, em Trieste, e dá-se, então, início a um projeto mais sólido de desinstitucionalização, que busca a desconstrução do aparato manicomial assim como de toda a lógica de segregação que lhe é implícita. A instituição psiquiátrica deveria ser negada, enquanto saber e poder, buscando-se substituir os serviços e tratamentos oferecidos pela lógica hospitalocêntrica, com toda sua cultura de exclusão, por intervenções que visassem à reinserção social do sujeito no pleno exercício de sua cidadania. Trata-se de uma tentativa de colocar a doença entre parênteses, voltando toda a atenção ao sujeito, considerando sua complexidade, promovendo ações de cuidado para além do campo biomédico. Tal postura não visava negar a existência da doença, nem muito menos o sofrimento vivenciado pelo sujeito, mas retirá-la do primeiro plano, permitindo sua inserção como mais um dos diversos aspectos da vida do sujeito, que, mais do que um doente, é uma pessoa, um cidadão.
IHU On-Line – Quais são as principais diferenças entre a antipsiquiatria e o movimento antimanicomial?
André Luís Leite de F. Sales – O movimento antimanicomial brasileiro sofre mais influência da Psiquiatria Democrática Italiana, e, com ele, partilha a premissa de que deve ser produzido um novo imaginário social para a loucura, que a desvincule dos conceitos de periculosidade, preguiça, incapacidade, de forma a gerar uma nova relação entre o “louco” e a sociedade. A antipsiquiatria, além de negar a existência da doença mental, ainda mantinha seus questionamentos dentro do domínio do saber médico e suas ações dentro do âmbito do manicômio. Não há a pretensão de se desenvolver outros modos de relação da sociedade com a loucura. Dito isso, podemos considerar que a grande diferença residiria na amplitude dos questionamentos trazidos por cada uma das correntes.
IHU On-Line – É possível pensarmos a desinstitucionalização da doença mental como um rompimento com a questão do estigma e da medicalização do paciente?
André Luís Leite de F. Sales – No que diz respeito ao estigma, certamente. Os efeitos materiais dele são imensos e se expressam na vida diária dos indivíduos em sofrimento mental, na medida em que podem impedir o acesso ao mercado de trabalho, diminuir a sua circulação pelas cidades e os impossibilitar de administrar seus próprios bens. A questão da medicalização requer atenção especial, pois é um tema no qual há muita confusão. O que a reforma brasileira aponta é a insuficiência do tratamento farmacológico exclusivo para dar conta da complexidade relacionada ao sofrimento mental bem como a insuficiência do saber psiquiátrico para o entendimento da questão. Não se trata de uma cruzada contra os medicamentos, nem contra os médicos. Trata-se de, mudando modos de entendimento e revendo alguns pressupostos, oferecer um tratamento mais digno e multifacetado àqueles que tiveram suas vidas tão empobrecidas.
IHU On-Line – Em que medida continuamos a ser uma sociedade que se pauta pela categorização de normalidade e doença em termos segregatórios?
André Luís Leite de F. Sales – Acredito que mesmo com todos os avanços científicos e tecnológicos, e, talvez muito em função deles, a categorização e segregação têm se intensificado bastante. A polêmica em torno da publicação do DSM V (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) pode ser pensada tanto como sendo um exemplo dessa intensificação como sendo um exemplo de que, como sociedade, já começamos a nos dar conta dos diversos efeitos produzidos por progressos como esaes. Afinal, onde há poder em exercício, sempre haverá resistência. Contudo, esta já é outra história....
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