PICICA: "Fantasia, de verdade, parece ser o mundo em que habitam Dilma e outros proponentes da salvação do Brasil pelo represamento das águas amazônicas, seguindo os passos do pantagruélico projeto Hudson americano, que pensava em represar o próprio Amazonas, na altura do estreito de Óbidos, para criar um mar interior e facilitar a navegação. (Tema para uma tese de ecólogo: calcular as emissões de metano da vegetação apodrecendo e outras consequências ambientais nesse mar, caso tivesse sido feito nos anos 70.)"
Dark Fantasy
A presidenta Dilma Rousseff nos explica que aqueles que são contrários à instalação de grandes hidrelétricas na Amazônia estão vivendo num mundo de fantasia. Verbatim: "Ninguém numa conferência dessas também aceita, me desculpem, discutir a fantasia. Ela não tem espaço para a fantasia. Não estou falando da utopia, essa pode ter, estou falando da fantasia." A frase, canhestra, é curiosa porque a amiga do peito de Dilma Graças Foster, presidenta da Petrobrás, havia declarado que a empresa não implantaria novas usinas térmicas porque estas não seriam capazes de competir, no custo, com usinas eólicas. E olha que usinas eólicas ganham benefícios do governo, sem dúvida. Mas muito menos do que os benefícios espalhados sobre as usinas hidrelétricas na Amazônia, principalmente Belo Monte.*
Mas esperem, o preço não é o principal motivo alegado por Dilma para sua oposição à Eólica. É que "Reservatório de água a gente faz. Mas não faz reservatório de vento." Ora, tem toda a razão a presidenta! Louvemos seu apuro técnico! Er... se não fosse por um detalhezinho. As usinas sendo feitas na Amazônia - Santo Antônio, Jirau, Belo Monte - não têm reservatório. São todas usinas a fio d'água, que se aproveitam do curso corrente do rio. Nesse sentido, são tão vulneráveis aos caprichos da natureza quanto uma usina eólica, e não comparáveis a Itaipu ou Sobradinho, em que se pode acumular energia gravitacional pra converter depois. Por isso mesmo, a geração firme de Belo Monte é um terço da sua geração máxima. Nem isso acontece apenas por pinimba dos ambientalistas malvados que impediram os grandes reservatórios; a topografia da Amazônia faz com que uma usina com reservatório por lá signifique um reservatório desmesurado - e caríssimo - como em Balbina. E sim, tem gente propondo esses reservatórios muito maiores e mais danosos.
Fantasia, de verdade, parece ser o mundo em que habitam Dilma e outros proponentes da salvação do Brasil pelo represamento das águas amazônicas, seguindo os passos do pantagruélico projeto Hudson americano, que pensava em represar o próprio Amazonas, na altura do estreito de Óbidos, para criar um mar interior e facilitar a navegação. (Tema para uma tese de ecólogo: calcular as emissões de metano da vegetação apodrecendo e outras consequências ambientais nesse mar, caso tivesse sido feito nos anos 70.) Lula chegou a falar de usinas-plataformas, alimentadas por helicópteros e sem desmatamento, como se pudéssemos comparar as poucas dezenas de trabalhadores numa plataforma de petróleo com os milhares e dezenas de milhares numa obra de usina. A plataforma também é construída por muita gente, o que ocorre é que ela depois pode ser rebocada até seu sítio de operação. Fantasia é ignorar contente as barbáries cometidas nessas obras gigantes.
Tem até um nome específico essa fantasia, e não é o que ostenta o título deste post, que se refere ao gênero do qual a saga Crepúsculo é a versão pop, anódina, e de sucesso. Chama-se o continuum Gernsback, de um conto epônimo do canadense William Gibson, aquele que sem saber o que era um computador inventou o ciberespaço. No conto, um fotógrafo é contratado para registrar imagens de arquitetura "espacial" do começo do século; diners e postos de gasolina com antenas e radiadores, os EUA que se prepararam para um futuro que não foi. Nas palavras do próprio personagem [During the 1930s] ... they put Ming the Merciless in charge of designing California gas stations. Favoring the architecture of his native Mongo, he cruised up and down the coast erecting raygun emplacements in white stucco. Lots of them featured superfluous central towers ringed with those strange radiator flanges that were a signature motif of the style, and made them look as though they might generate potent bursts of raw technological enthusiasm, if you could only find the switch to turn them on."
Influenciado pela arquitetura, o protagonista acaba deslizando - se é delírio ou realidade não está claro - para dentro daquele futuro, o futuro limpo e perfeito dos engenheiros, pregado por Hugo Gernsback e outros dos primeiros escritores de ficção científica. A realidade alternativa, de autoestratadas de 15 pistas por sentido e togas brancas, eugenia e tecnocracia, é aquela na qual parece que querem viver Dilma (que já se declarou fã de Jornada nas Estrelas, série que foi dos últimos grandes expoentes dessa tradição na ficção científica), e outros que pregam a cura dos males do mundo pela ciência - e eles querem dizer engenharia e economia, e não nenhuma outra, sequer as outras ciências "duras." (A economia foi singularmente bem-sucedida, dentre as ciências humanas, de se ver encampada pelas "duras," talvez pela matematização mais completa.) O problema, é claro, é que o outro lado do continuum Gernsback é nada mais nada menos do que a realidade. Para cada torre impossível com engenheiros togados, há um batalhão de Untermenschen mortos. O sonho dos engenheiros lhes permite cometer, sorrindo, mais uma empreitada colonial.
PS pra deixar claro que os problemas causados pelas hidrelétricas não são apenas invenção de esquerdista radical, aqui reportagens do Valor Econômico (jornal dos grupos Folha e Globo) sobre a opinião das populações urbanas próximas a Belo Monte e do Madeira. (A segunda reportagem abre com as palavras "Falar bem das usinas de Santo Antônio e Jirau não é uma boa estratégia de campanha para quem quer ser prefeito de Porto Velho.")
* A prova de que as hidrelétricas não são financeiramente viáveis é que, mesmo depois deanunciar um pacote de bondades (empréstimos com carência do BNDES, isenções tributárias, prioridades alfandegárias, transmissão digrátish), o governo não encontrou empresas privadas dispostas a investir; ao invés disso teve que pôr pra investir as subsidiárias da Eletrobrás, com as construtoras que estavam sendo pagas pela obra de sócias - num claro conflito de interesses. (Se a construtora-como-consórcio paga um quarto da obra e a construtora-como-construtora ganha por ela toda, tem interesse em aumentar ao máximo o preço.)
Mas esperem, o preço não é o principal motivo alegado por Dilma para sua oposição à Eólica. É que "Reservatório de água a gente faz. Mas não faz reservatório de vento." Ora, tem toda a razão a presidenta! Louvemos seu apuro técnico! Er... se não fosse por um detalhezinho. As usinas sendo feitas na Amazônia - Santo Antônio, Jirau, Belo Monte - não têm reservatório. São todas usinas a fio d'água, que se aproveitam do curso corrente do rio. Nesse sentido, são tão vulneráveis aos caprichos da natureza quanto uma usina eólica, e não comparáveis a Itaipu ou Sobradinho, em que se pode acumular energia gravitacional pra converter depois. Por isso mesmo, a geração firme de Belo Monte é um terço da sua geração máxima. Nem isso acontece apenas por pinimba dos ambientalistas malvados que impediram os grandes reservatórios; a topografia da Amazônia faz com que uma usina com reservatório por lá signifique um reservatório desmesurado - e caríssimo - como em Balbina. E sim, tem gente propondo esses reservatórios muito maiores e mais danosos.
Fantasia, de verdade, parece ser o mundo em que habitam Dilma e outros proponentes da salvação do Brasil pelo represamento das águas amazônicas, seguindo os passos do pantagruélico projeto Hudson americano, que pensava em represar o próprio Amazonas, na altura do estreito de Óbidos, para criar um mar interior e facilitar a navegação. (Tema para uma tese de ecólogo: calcular as emissões de metano da vegetação apodrecendo e outras consequências ambientais nesse mar, caso tivesse sido feito nos anos 70.) Lula chegou a falar de usinas-plataformas, alimentadas por helicópteros e sem desmatamento, como se pudéssemos comparar as poucas dezenas de trabalhadores numa plataforma de petróleo com os milhares e dezenas de milhares numa obra de usina. A plataforma também é construída por muita gente, o que ocorre é que ela depois pode ser rebocada até seu sítio de operação. Fantasia é ignorar contente as barbáries cometidas nessas obras gigantes.
Tem até um nome específico essa fantasia, e não é o que ostenta o título deste post, que se refere ao gênero do qual a saga Crepúsculo é a versão pop, anódina, e de sucesso. Chama-se o continuum Gernsback, de um conto epônimo do canadense William Gibson, aquele que sem saber o que era um computador inventou o ciberespaço. No conto, um fotógrafo é contratado para registrar imagens de arquitetura "espacial" do começo do século; diners e postos de gasolina com antenas e radiadores, os EUA que se prepararam para um futuro que não foi. Nas palavras do próprio personagem [During the 1930s] ... they put Ming the Merciless in charge of designing California gas stations. Favoring the architecture of his native Mongo, he cruised up and down the coast erecting raygun emplacements in white stucco. Lots of them featured superfluous central towers ringed with those strange radiator flanges that were a signature motif of the style, and made them look as though they might generate potent bursts of raw technological enthusiasm, if you could only find the switch to turn them on."
Influenciado pela arquitetura, o protagonista acaba deslizando - se é delírio ou realidade não está claro - para dentro daquele futuro, o futuro limpo e perfeito dos engenheiros, pregado por Hugo Gernsback e outros dos primeiros escritores de ficção científica. A realidade alternativa, de autoestratadas de 15 pistas por sentido e togas brancas, eugenia e tecnocracia, é aquela na qual parece que querem viver Dilma (que já se declarou fã de Jornada nas Estrelas, série que foi dos últimos grandes expoentes dessa tradição na ficção científica), e outros que pregam a cura dos males do mundo pela ciência - e eles querem dizer engenharia e economia, e não nenhuma outra, sequer as outras ciências "duras." (A economia foi singularmente bem-sucedida, dentre as ciências humanas, de se ver encampada pelas "duras," talvez pela matematização mais completa.) O problema, é claro, é que o outro lado do continuum Gernsback é nada mais nada menos do que a realidade. Para cada torre impossível com engenheiros togados, há um batalhão de Untermenschen mortos. O sonho dos engenheiros lhes permite cometer, sorrindo, mais uma empreitada colonial.
PS pra deixar claro que os problemas causados pelas hidrelétricas não são apenas invenção de esquerdista radical, aqui reportagens do Valor Econômico (jornal dos grupos Folha e Globo) sobre a opinião das populações urbanas próximas a Belo Monte e do Madeira. (A segunda reportagem abre com as palavras "Falar bem das usinas de Santo Antônio e Jirau não é uma boa estratégia de campanha para quem quer ser prefeito de Porto Velho.")
* A prova de que as hidrelétricas não são financeiramente viáveis é que, mesmo depois deanunciar um pacote de bondades (empréstimos com carência do BNDES, isenções tributárias, prioridades alfandegárias, transmissão digrátish), o governo não encontrou empresas privadas dispostas a investir; ao invés disso teve que pôr pra investir as subsidiárias da Eletrobrás, com as construtoras que estavam sendo pagas pela obra de sócias - num claro conflito de interesses. (Se a construtora-como-consórcio paga um quarto da obra e a construtora-como-construtora ganha por ela toda, tem interesse em aumentar ao máximo o preço.)
Fonte: Samba do Avião
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