Estratégias de Ocultação da História dos Kiña (Waimiri-Atroari)
2000 Waimiri-Atroari Desaparecidos Durante a Ditadura Militar – Texto 6
PICICA: "O fato dos
Waimiri-Atroari estarem no roteiro de um grande projeto do Governo, ou
um “empecilho” a sua construção, os tornava automaticamente
“criminosos”. A imprensa, o indigenismo alternativo, os pesquisadores e
até mesmo os funcionários da FUNAI que se opunham deviam ser mantidos à
distancia para que o governo pudesse continuar o seu projeto na área.
Construir a Hidrelétrica de Balbina e instalar a mineração, estes eram
os interesse de fundo. Manipular os índios para que não atrapalhassem
esses objetivos do governo, essa era a principal tarefa da FUNAI na
área."
Este é o 6º artigo da série que publico no blog da Casa da Cultura do Urubuí, a propósito da criação da Comissão da Verdade que procura desvendar os crimes ainda ocultos cometidos pela Ditadura Militar contra a população brasileira, denunciando os crimes cometidos contra os povos indígenas. Aqui trato, em especial, da estratégia do Governo usada no massacre do povo Kiña, ou Waimiri-Atroari, a partir de 1967, quando começou a construção da BR-174 e posteriormente para ocultar o crime.
Imprensa Nacional / Operação Atroaris |
E
a política aplicada na ocasião foi a violência, a repressão e o
isolamento do povo Waimiri-Atroari, afastando quem denunciava tal
atitude e as ações dos militares contra os mesmos. O fato dos
Waimiri-Atroari estarem no roteiro de um grande projeto do Governo, ou
um “empecilho” a sua construção, os tornava automaticamente
“criminosos”. A imprensa, o indigenismo alternativo, os pesquisadores e
até mesmo os funcionários da FUNAI que se opunham deviam ser mantidos à
distancia para que o governo pudesse continuar o seu projeto na área.
Construir a Hidrelétrica de Balbina e instalar a mineração, estes eram
os interesse de fundo. Manipular os índios para que não atrapalhassem
esses objetivos do governo, essa era a principal tarefa da FUNAI na
área. Todos os dirigentes do órgão sabiam disso e nenhum funcionário da
FUNAI ou soldado do 6º BEC que trabalhava na região desconhecia este
fato. Como “um direito de nós gente superior”, já qualificou o Pe.
Calleri (talvez como ironia) a sua interferência na vida e no território
dos índios a serviço dos projetos do governo, ao controlar a
distribuição dos presentes aos índios durante prestação de serviço à
FUNAI, pouco antes de sua morte trágica (5º radio do Pe Calleri durante a
expedição).
Em
1977 a estrada foi inaugurada e a resistência Kiña ou Waimiri-Atroari
estava totalmente arrasada e sua população reduzido a menos de 400
pessoas. O interesse do Governo Militar se volta nesta fase para a
implantação dos seus projetos empresariais: Balbina, Mineração e
outros. A estratégia dos dirigentes da FUNAI e dos condutores da
política indigenista, junto aos Waimiri-Atroari, foi então apresentar
esse povo ao público como “agricultores pacíficos, dóceis” e
“integrados”, diferente da imagem de terríveis que até então tinha sido
utilizada enquanto a tática era o massacre. Agentes do governo
perambulavam de mãos dadas com os índios pelas ruas de Manaus. O
coordenador do Núcleo de Apoio Waimiri-Atroari, chegou a levar um grupo
deles à capital para “mostrar aos estudantes do Colégio Christus,
pessoalmente, o índio real”, como se fosse objeto de apreciação (Schwade e Pereira; “Nem Índios Nem Integrados: Waimiri-Atroari!”,1981).
Para
a implantação “pacífica” dos projetos de interesse dos militares na
área, convinha que a política da FUNAI colaborasse para manter as
vítimas remanescentes isoladas da opinião pública, de pesquisadores e do
movimento popular indigenista, por serem estes os mais exigentes na
busca de informações sobre o que ocorreu aos mais de 2000 Kiña
simplesmente desaparecidos. Assim a FUNAI colaborou em manter ocultos os
criminosos.
O
Banco Mundial, que financiava a Hidrelétrica de Balbina, para silenciar
a denúncia mundial de entidades, à frente a Anistia Internacional,
condicionou, por volta de 1986, a concessão de novos financiamentos para
a obra à criação de um programa assistencial sanitário e educacional
aos Waimiri-Atroari. Durante 25 anos, o Banco Mundial financiaria esse
programa, através da Eletronorte. Para isso FUNAI e Eletronorte criaram,
de comum acordo, o Programa Waimiri-Atroari (PWA). Pela primeira vez na
história brasileira se passa a condução da política indigenista oficial
de um povo, os Kiña, a uma empresa.
FUNAI,
Eletronorte e mineração Paranapanema criam, então, um novo conceito de
auto-determinação. Seu pressuposto é convencer os índios de que a FUNAI
sempre tem razão: “a FUNAI é que sabe” (BAINES) e as novas lideranças
nomeadas pela própria FUNAI tornam-se cumpridoras e transmissoras de
ordens, adotando o discurso de dominação dos funcionários. A missão
imposta de fora não é a de remover os elementos prejudiciais ao povo,
aqueles que depredam e saqueiam o patrimônio ou que destroem e
ridicularizam a sua cultura e costumes, mas as pessoas que atrapalham os
interesses da mineradora, da FUNAI e da Eletronorte. Esta foi a tônica
seguida pelo Programa Waimiri-Atroari sob o controle da empresa
Eletronorte. A política indigenista do Governo na área continua assim a
se identificar com os interesses que impulsionaram a BR-174, Balbina e a
mineração Taboca. Quem se opõe a ela é perseguido. Funcionários,
indigenistas ou cientistas, todos tem o mesmo destino quando põe
críticas ao Programa Waimiri-Atroari.
Dentro
das ações conseqüentes dessa nova política implantada pelo Governo,
inscreveu-se, em dezembro de 1986, a nossa expulsão da área, onde
realizávamos o primeiro programa de alfabetização na língua desse povo. E
um ano depois, a expulsão do lingüista e antropólogo Marcio Silva e de
sua esposa a médica Dra. Marise, assim como, em junho de 1989, a do
antropólogo Stephen Baines e de sua assistente de pesquisa, a jornalista
Verenilde Santos Pereira. Ante a opinião pública a FUNAI atribuiu as
expulsões aos índios.
A
primeira ação do Programa Waimiri-Atroari, cuja codução é exercida
desde o seu início até os dias de hoje por um único indigenista, foi
transferir duas aldeias Waimiri, dentro do próprio território, para
abrir espaço ao lago de Balbina, sem que até hoje fossem indenizados
conforme manda a lei. O Programa Waimiri-Atroari, por sua vez, é um
programa propositadamente ambíguo, enquanto é financiado pelo Banco
Mundial através da Eletronorte. E se por um lado este programa tenha
prestado assistência de saúde aos Waimiri-Atroari (o que era obrigação
do Estado Brasileiro), e que nele tenham trabalhado pessoas de boa
vontade, por outro os danos psicológicos, sociais e para o registro da
verdade da história de crimes contra este povo é incalculável.
A
FUNAI, como principal testemunha do desaparecimento dos
Waimiri-Atroari, se mantém estrategicamente à distancia dos novos
acontecimentos, enquanto a empresa que alagou grande parte da Reserva
desses índios dirige o destino desse povo.
Como
se vê, esta política tem tudo a ver com a estratégia de ação do Governo
e das empresas nesta área, mesmo que muitas pessoas que trabalharam e
trabalham no Programa Waimiri-Atroari não se dê conta disso por
ingenuidade ou desconhecimento da história.
Casa da Cultura do Urubuí, 09 de abril de 2012.
Egydio Schwade
[Para quem desejar conhecer os textos que fazem parte desta série, pode procurar pelas datas de publicação. São elas: 19/02/2011; 13/03/2011; 15/05/2011; 04/09/2011; e 06/02/2012.]
Fonte: Casa da Cultura do Urubuí
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