O ARMANDO DA BICA
José Ribamar Bessa Freire
14/04/2012 - Diário do Amazonas
Dizem
que minutos antes de morrer a gente vê um filme com os melhores
momentos da vida. Dizem que as imagens, em célere retrospectiva, nos
mostram pessoas, lugares, situações, frases, risos, gestos e até
silêncios. Dizem que na viagem de regresso pelos caminhos já trilhados,
vamos recolhendo os nossos passos. Dizem que desviver assim deixa nossa
alma inundada de paz e dizem, ainda, que essa é uma maneira bonita de se
despedir da vida.
Dizem.
Mas ninguém jamais voltou para confirmar a ocorrência desse adeus, cuja
trajetória nos leva de volta ao útero materno. Se for verdade, porém,
cabe perguntar quais foram as principais cenas do filme que Armando Dias
Soares - o Armando Português - viu no quarto do Hospital Beneficência
Portuguesa, em Manaus, pouco antes de morrer, aos 77 anos, na última
terça-feira, 10 de abril. Se me dão licença,vou imaginar algumas.
Aposto
que ele reviu os seus amores, suas três mulheres: dona Lourdes - esposa
e fiel companheira, e as filhas - Ana Cláudia e Ana Lúcia. E, é claro,
contemplou a si próprio, de jaleco azul, madrugada adentro, servindo aos
clientes cerveja, caipirinha, petiscos, bolinho de bacalhau e sanduíche
de pernil, no bar que se tornou uma referência tão importante para
Manaus quanto seu vizinho da Praça São Sebastião, o Teatro Amazonas.
O
filme não pode deixar de fora as cenas de tantos carnavais patrocinados
por esse mecenas da boemia, que trabalhava duro, de sol a sol, para que
os outros pudessem se divertir. É que o Bar do Armando, frequentado
pelos boêmios da cidade e por turistas nacionais e estrangeiros, abriga
uma das bandas mais tradicionais do carnaval manauara, a Banda
Independente da Confraria do Armando, a famosa BICA, que todos os anos
coloca alguns políticos na berlinda, com muito humor e senso crítico.
A
Banda da Bica não saiu em 2012 em respeito à saúde já abalada de seu
mentor, atacado por traiçoeira leucemia, mas em sua última edição, no
ano anterior, explorou o tema "No reinado do Belão, todo mundo mete a
mão", satirizando o deputado Belarmino Lins, então presidente da
Assembleia Legislativa, envolvido no escândalo da obra do governo
federal, paga e não executada pela empreiteira de sua família.
É
quase certo que o filme selecionou algumas imagens compartilhadas pela
mídia local. O português mais amazonense que já viveu entre nós e que
nunca perdeu seu sotaque deve ter se divertido, por exemplo, rebobinando
as cenas da sessão da Câmara Municipal, que lhe concedeu, em 1998, o
título de Cidadão de Manaus, confirmando oficialmente aquilo que o povo
já havia reconhecido e consagrado nas ruas.
As outras lembranças permanecem, no entanto, embaralhadas, dando razão a Nelson Rodrigues, que nos ensina:
- A morte de um velho amigo é uma catástrofe na memória. Todas as nossas relações com o passado ficam alteradas.
Um velho amigo
Preciso
ajuntar os cacos da memória para revelar as imagens do Armando
recém-chegado de Portugal, em 1953. Foi aí que eu o conheci. Ele tinha,
então, 17 anos. Encontrou Manaus submersa em água, numa das maiores
enchentes de sua história. Com ajuda do tio, dono da Casa Dias, arrendou
a taberna da dona Bati, na esquina da Rua Xavier de Mendonça com o Beco
da Bosta, no bairro de Aparecida. Era lá que a turma do dominó e da
cachaça se reunia.
Eu
era garoto, mas lembro bem a extraordinária capacidade de adaptação
desse portuga, só comparável a dos cearenses. Generoso, em pouco tempo
se tornou figura popular entre sua clientela pobre, para quem vendia
fiado, anotando tudo numa caderneta. Perdoou dívidas e matou fome de
muita gente. Vivia o cotidiano, as dores e alegrias do bairro. Quando
meu irmão Domingos Sávio morreu afogado, aos dois anos de idade, nas
águas do Mindu, Armando chorava tão copiosamente que se dona Elisa não
fosse um poço de virtudes, até eu desconfiaria da paternidade.
Pouca
gente sabe, mas foi lá, na taberna da dona Bati arrendada pelo Armando,
que nasceu, em data marcada, a Banda da Bica, ou pelo menos o espírito
que anos mais tarde a animaria. Aconteceu no dia 22 de junho de 1957.
Naquela noite, uma menina pobre do bairro, Terezinha Morango,
participava no Hotel Quitandinha, em Petrópolis (RJ), do concurso de
Miss Brasil, representando o Amazonas.
Terezinha
é filha de uma caboca do Alto Solimões, dona Emir, com um português, o
seu Manoel, ele também dono de um pequeno bar na Rua Alexandre Amorim,
ao lado da casa dos padres redentoristas. Mas naquela noite, o bairro
inteiro se concentrou foi na taberna do Armando, em redor de um rádio a
válvulas, que irradiava o concurso, chiando mais do que o peito
acatarrado do velho Santino.
O
resultado saiu depois da meia-noite, anunciado pela voz rouca do
Armando, que com a orelha encostada no aparelho reproduzia cada detalhe,
com seu sotaque de Coimbra, inventando quando não entendia o que o
locutor dizia. Foi aí que soubemos que a mulher mais bela do bairro era a
mais bela do Brasil, pois havia derrotado a mineira Dorotéia, com quem
disputara o primeiro lugar.
Houve
uma explosão de júbilo, a batucada varou a madrugada, parecia a feira
de São Severino, tinha homem, mulher e menino, todo mundo celebrando. O
bairro estava parindo naquele momento a Banda da Bica, festejando a
beleza e a vitória da filha do casamento do rio Tejo com o Solimões. No
filme do Armando, Terezinha Morango, a Cinderela do Amazonas, aparece ao
lado dos seus sete irmãos, que circulavam pelos becos e ruas de
Aparecida: Zé, Getúlio, Antonieta, Marieta, Glória, Das Dores e
Manoelzinho.
Houve repeteco um mês depois, no dia 19 de julho, quando Terezinha disputou em Long Beach,
na Califórnia, o título de Miss Universo. Tirou o segundo lugar,
perdendo para a peruana Gladys Zender. (Essas peruanas sempre se
apoderando dos troféus do Amazonas!). O bairro voltou a fazer um
carnaval, comemorando o título de vice mais bela do mundo com a alegria
típica de vascaíno. É impossível que as imagens daquela festa tenham
ficado de fora do filme que o Armando via enquanto desvivia.
A marmita do Armando
No
ano seguinte, a precursora da Banda da BICA saiu uma vez mais pelas
ruas do bairro para celebrar a Copa do Mundo conquistada na Suécia, com a
taberna do Armando fornecendo o apoio logístico. Foi num domingo, 29 de
junho de 1958, desta vez de manhã, em razão dos fusos horários. Foi
nesse dia que Armando, que era solteiro e não cozinhava, contratou
Geraldão, hoje meu cunhado, para ir buscar, diariamente, lá na Rua Luiz
Antony, a marmita que sua tia Arminda preparava.
Geraldão,
amigo do peito, me nomeou seu assistente de marmita, função exercida,
modéstia à parte, com muita criatividade e competência. Na marmita do
almoço, eu juro, a gente não tocava. Só olhava e cheirava. Mas na do
jantar, considerando que vinham dois bifões acebolados aromatizados com
azeite português, um deles era confiscado por nossa fome. Armando fingia
que não via, dividindo o pirão com dois meninos pobres. Muitos anos
depois, riu muito quando, de passagem por Manaus, lhe confessei a
expropriação. Ele já sabia.
As
últimas imagens do filme que o Armando assistiu devem ter sido de sua
santa terrinha, próxima à Coimbra, arborizada com choupais e cortada
pelo Rio Mondego, onde ele, moleque, pescava trutas, savelhas, lampreias
e outros peixes, e coletava ovos em ninhos de andorinhas,
milhafres-pretos, alfaiates e outras aves.
Ele
deve ter tomado muito "banho de igarapé" no Mondeguinho ou Corgo das
Mós, o afluente que corre por um vale sinuoso da região. Prefiro
imaginar que a derradeira cena que o nosso Armando viu foi a de sua
longínqua infância - uma lavadeira cantando a Balada do Mondego:
"Ai oh água do Mondego,
Ai águas do Mondeguinho,
Num dos teus barcos à vela
Seguirei o meu caminho.
Ai oh água do Mondego,
Ai águas do Mondeguinho,
Deixa-me beber-te as águas
Que me vou pôr a caminho".
Ele,
finalmente, se pôs à caminho numa tarde de abril, navegando num barco à
vela para uma viagem sem volta. Fica aqui essa singela homenagem, com o
agradecimento pelo bife no azeite de oliva, que certamente ocupará
lugar de destaque no filme que vai me tocar ver. Dessa, o Geraldão
também não escapa.
Fonte: TAQUIPRATI
Um comentário:
Belissima homenagem, Bessa! A perseveranca, adeterminacao, a tolerancia e uma generosidade sem restricoes sao tracos que fizeram do Sr. Armando o portugues mais brasileiro do Amazonas - ou seria o brasileiro mais portugues? -, mas tambem uma pessoa admiravel, um ser humano exemplar. Com ele partiu um pouco de todos os quen o conheceram e um pouco de uma cidade que nao se extraviou por completo gracas a referenciad como as criadas por ele.
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