abril 23, 2012

"No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é" (Entrevista com Eduardo Viveiros de Castro)


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PICICA: Olhando esse mapa tem-se a impressão de que são centenas de 'Faixas de Gaza' onde estão confinados os 'palestinos do Brasil' - os índígenas. Afinal quem somos nós? Eduardo Viveiros responde essa intrigante pergunta:

Exceto quem não é (Eduardo Viveiros de Castro)

No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é

Entrevista de Eduardo Viveiros de Castro concedida a Fany Ricardo, Lívia Chede Almendary, Renato Sztutman, Rogerio Duarte do Pateo, Uirá Felipe Garcia, 26 de abril de 2006, no Instituto Socioambioental (ISA). A entrevista aparecerá em breve no Aconteceu, a grande publicação quinquenal coordenada pelo projeto Povos Indígenas no Brasil, o PIB-ISA.

Quem é Índio? O que define o pertencimento a uma comunidade indígena?

Começo por dizer que suspeito que nossa entrevista vai ter de abundar em aspas; não apenas ou principalmente aspas de citação, mas sobretudo aspas de distanciamento. Isso porque essa discussão — quem é índio? o que define o pertencimento? etc. — possui uma dimensão meio delirante ou alucinatória, como de resto toda discussão onde o ontológico e o jurídico entram em processo público de acasalamento. Costumam nascer monstros desse processo. Eles são pitorescos e relativamente inofensivos, desde que a gente não acredite demais neles. Em caso contrário, eles nos devoram. Donde as aspas agnósticas.

A questão que me foi colocada não pára de reaparecer desde que comecei a estudar antropologia, já logo vão 30 anos. Naquela distante época, estávamos sendo acuados pela geopolítica modernizadora da ditadura — era o final dos anos 1970 —, que nos queria enfiar goela abaixo o seu famoso projeto de emancipação. Esse projeto, associado como estava ao processo de ocupação induzida (invasão definitiva seria talvez uma expressão mais correta) da Amazônia, consistia na criação de um instrumento jurídico para discriminar quem era índio de quem não era índio. O propósito era emancipar, isto é, retirar da responsabilidade tutelar do Estado os índios que se teriam tornado não-índios, os índios que não eram mais índios, isto é, aqueles indivíduos indígenas que “já” não apresentassem “mais” os estigmas de indianidade estimados necessários para o reconhecimento de seu regime especial de cidadania (o respeito a esse regime, bem entendido, era e é outra coisa).

Foi em reação a esse projeto de desindianização jurídica que apareceram as Comissões Pró-Índio e as Anaís; foi também nesse contexto que se formaram ou consolidaram organizações como o CTI e o PIB, o “Projeto Povos Indígenas do Brasil” do CEDI (o PIB, como todos sabem, está na origem do ISA). Tudo isso surgiu desse movimento, que se constituiu precisamente em torno da questão de quem é índio — não para responder essa questão, mas para responder contra essa questão, pois ela não era uma questão, mas uma resposta, uma resposta que cabia “questionar”, ou seja, recusar, deslocar e subverter. “Quem vai responder a essa resposta?” pergunta o personagem de um filme de Herzog. Justamente: como responder à resposta que o Estado tomava como inquestionável em sua questão, a saber: que “índio” era um atributo determinável por inspeção e mencionável por ostensão, uma substância dotada de propriedades características, algo que se podia dizer o que é, e quem preenche os requisitos de tal qüididade — como responder a esta resposta? A se crer nela, tratar-se-ia apenas de mandar chamar os peritos e pedir que eles indicassem quem era e quem não era índio. Mas os peritos se recusaram a responder a tal resposta. Pelo menos inicialmente.

Note-se que, naquela época, a questão de saber quem era índio não se cristalizava em torno daquilo que se veio a chamar etnias emergentes, fenômeno bastante posterior: foram tais novas etnicidades, ao contrário, que surgiram da questão, respondendo a ela com uma resposta deslocada, isto é, inesperada. O problema da época, muito ao contrário de qualquer “emergência”, era a submergência das etnias, era o problema das etnias submergentes, daqueles coletivos que estavam seguindo, por força das circunstâncias (isto é um eufemismo), uma trajetória histórica de afastamento de suas referências indígenas, e de quem, com esse pretexto, o governo queria se livrar: “Esse pessoal não é mais índio, nós lavamos as mãos. Não temos nada a ver com isso. Liberem-se as terras deles para o mercado; deixe-se eles negociarem sua força de trabalho no mercado”.

Nosso objetivo político e teórico, como antropólogos, era estabelecer definitivamente — não o conseguimos; mas acho que um dia vamos chegar lá — que índio não é uma questão de cocar de pena, urucum e arco e flecha, algo de aparente e evidente nesse sentido estereotipificante, mas sim uma questão de “estado de espírito”. Um modo de ser e não um modo de aparecer. Na verdade, algo mais (ou menos) que um modo de ser: a indianidade designava para nós um certo modo de devir, algo essencialmente invisível mas nem por isso menos eficaz: um movimento infinitesimal incessante de diferenciação, não um estado massivo de “diferença” anteriorizada e estabilizada, isto é, uma identidade. (Um dia seria bom os antropólogos pararem de chamar identidade de diferença e vice-versa.) A nossa luta, portanto, era uma luta conceitual: nosso problema era fazer com que o “ainda” do juízo de senso comum “esse pessoal ainda é índio” (ou “não é mais índio”) não significasse um estado transitório ou uma etapa a ser vencida. A idéia, justamente, é a de que os índios “ainda” não tinham sido vencidos, nem jamais o seriam. Eles jamais acabar(i)am de ser índios, “ainda que”... Ou justamente porque. Em suma, a idéia era que “índio” não podia ser visto como uma etapa na marcha ascensional até o invejável estado de “branco” ou de “civilizado”.

Mas a filosofia da legislação brasileira era justamente essa: todos os índios “ainda” eram índios, no sentido de que um dia iriam, porque deviam, deixar de sê-lo. Mesmo os que estavam nus no mato, com seus proverbiais cocares de plumas, seus colares de contas, seus arcos, flechas, bordunas e zarabatanas, os índios com “contato intermitente” ou os “isolados” — mesmo esses ainda eram índios. Apenas ainda; ou seja, ainda, apenas, porque ainda não eram não-índios. O objetivo da política indigenista de Estado era gerenciar (e por que não? acelerar) um movimento visto como inexorável (e por que não? desejável): o célebre “processo histórico”, artigo de fé comum aos mais variados credos modernizadores, do positivismo ao marxismo. Tudo o que se “podia fazer” era garantir — isso para os mais bem-intencionados — que o “processo” não fosse demasiado brutal. Mas, de uma forma ou de outra, entendia-se que a almejada omelete nacional só poderia ser feita, bem, sabe-se como.

A luta contra o projeto de emancipação levou as pessoas que estavam do lado dos índios a se preocuparem com recenseamentos, levantamentos, com informação, com organização, comunicação e propaganda. Tratava-se, em suma, de tornar a questão visível. No fundo, não deixou de ser uma sorte os generais e coronéis da época terem tentado desindianizar uma porção de comunidades indígenas, pois isso, na verdade, terminou foi por reindianizá-las. A atabalhoada tentativa da ditadura de legiferar sobre a ontologia da indianidade “desinvisibilizou” os índios, que eram virtualmente inexistentes como atores políticos nas décadas de 60 e 70. Eles só apareciam, de vez em quando, em alguma uma reportagem colorida sobre o Xingu, geralmente como ilustração do admirável trabalho dos irmãos Villas-Boas (digo admirável sem nenhuma ironia; não deixava de ser bizarro, porém, o fato de que havia nessa época uma série de jornalistas especializados em embasbacar-se diante dos Villas-Boas e outros sertanistas). A grita suscitada com o projeto de emancipação resgatou a questão indígena do folclore de massa a que havia sido reduzida. Ela fez com que os próprios índios se dessem conta de que, se eles não tomassem cuidado, iam deixar de ser índios mesmo, e rapidinho. Graças a isso, então e enfim, os índios se tornaram muito mais visíveis como atores e agentes políticos no cenário nacional. Os primeiros líderes indígenas de expressão supra-local surgiram nesse contexto, como Mário Juruna e Aílton Krenak.

A questão de quem é ou não é índio reaparece agora, mas por outras razões. Algumas pessoas ligadas à questão indígena têm por vezes a impressão (ou pelo menos eu tenho a impressão de que elas têm a impressão) de que nós, índios e antropólogos, fomos um pouco vítimas de nosso próprio sucesso. Antigamente, muitos coletivos indígenas sentiam vergonha de sê-lo, e o governo tinha todo interesse em aproveitar essa vergonha inculcada sistemicamente, tirando as consequências jurídico-políticas, digamos assim, do eclipsamento histórico da face indígena de várias comunidades “camponesas” do país. Agora, ao contrário, “todo mundo quer ser índio” — dizemos, entre intrigados e orgulhosos; talvez mais intrigados que orgulhosos. Antigamente, os especialistas no “processo histórico” martelavam-nos os ouvidos com o dogma de que a “condição camponesa” (com opção de “proletarização”) era o devir histórico inexorável e portanto a verdade das sociedades indígenas, e que a descrição destas sociedades como entidades socioculturais autônomas supunha um “modelo naturalizado” e “a-histórico”. Mas eis que, pouco a pouco, os índios começam a reivindicar e terminam por obter o reconhecimento constitucional de um estatuto diferenciado permanente dentro da chamada “comunhão nacional”; eis que eles im¬plementam ambiciosos projetos de retradicionalização marcados por um autonomismo “culturalista” que, por instrumentalista e etnicizante, não é menos primordialista nem menos naturalizante; eis, por fim, que algumas comunidades rurais situadas nas áreas mais arquetipicamente “camponesas” do país se põem a reassumir sua condição indígena, em um processo de transfiguração étnica que é o exato inverso daquele anunciado, nos idos de 1970, por Darcy Ribeiro no célebre Os índios e a civilização, em profecia acreditada, com um retoque ou outro, pela imensa maioria dos antropólogos.

Com a constituição de 1988, o jogo terminou de virar completamente. De fato, houve uma inversão de 180 graus em relação ao projeto de emancipação. O propósito explícito deste projeto era emancipar indivíduos, mas seu verdadeiro objetivo, como se sabe, era o de “liberar” comunidades inteiras. Com a Constituição, consagrou-se o princípio de que as comunidades indígenas constituem-se em sujeitos coletivos de direitos igualmente coletivos. O “índio” deu lugar à “comunidade” (um dia vamos chegar ao “povo” – quem sabe), e assim o individual cedeu o passo ao relacional e ao transindividual, o que foi, desnecssário enfatizar, um passo gigantesco, mesmo que esse transindividual tenha precisado assumir a máscara do supra-individual para poder figurar na metafísica constitucional, a máscara da Comunidade como Super-Indivíduo. Mas de qualquer modo o individual não podia deixar de ceder ao relacional, uma vez que a referência indígena não é um atributo individual mas um movimento coletivo, e que a “identidade indígena” não é “relacional” apenas “em contraste” com identidades não-indígenas, mas relacional (logo, não é uma “identidade”), antes de mais nada, porque constitui coletivos transindividuais intra-referenciados e intra-diferenciados. Há indivíduos indígenas porque eles são membros de comunidades indígenas, e não o inverso.

Pois bem. Foi a partir desse momento que acelerou-se a “emergência” de comunidades indígenas que estavam submersas por várias razões: porque tinham sido ensinadas a não dizer mais que eram indígenas, ou ensinadas a dizer que não eram mais indígenas; porque tinham sido colocadas em um liquidificador político-religioso, um moedor cultural que misturara etnias, línguas, povos, regiões e religiões, para produzir uma massa homogênea capaz de servir de “população”, isto é, de sujeito (no sentido de súdito) do Estado. Como se sabe, as antigas missões que estão na origem de tantas cidades, vilas, vilarejos e arraiais do interior do Brasil foram os lugares privilegiados dessa fabricação do componente indígena do “povo brasileiro”, ao sintetizar os célebres índios genéricos, os índios de aldeamento, catecúmenos do sacramento estatal da transsubstanciação étnica: a comunhão nacional... A Constituição de 1988 interrompeu juridicamente (ideologicamente) um projeto secular de desindianização, ao reconhecer que ele não se tinha completado. E foi assim que as comunidades em processo de distanciamento da referência indígena começaram a perceber que voltar a “ser” índio — isto é, voltar a virar índio, retomar o processo incessante de virar índio — podia ser uma coisa interessante. Converter, reverter, perverter ou subverter (como se queira) o dispositivo de sujeição armado desde a Conquista de modo a torná-lo dispositivo de subjetivação; deixar de sofrer a própria indianidade e passar a gozá-la. Uma gigantesca ab-reação coletiva, para usarmos velhos termos psicanalíticos. Uma carnavalização étnica. O retorno do recalcado nacional.

A partir daquele momento — que é ainda o momento em que estamos vivendo — e daquilo que ganhou um ímpeto irresistível a partir dele, a saber, a re-etnização progressiva do povo brasileiro, a questão “quem é índio?” deixou de se colocar em vista do fim mais ou menos inconfessável que o Estado se colocava, o de violentar os direitos das comunidades e das pessoas indígenas. Ela passou a ser um problema daqueles que se pensam do (e que pensam ao) lado dos índios, bem como um problema dos “próprios” índios.

Qual o problema hoje? Isto é, como aparece o problema hoje? Ele aparece como sendo o de evitar a banalização da idéia e do rótulo de “índio”. A preocupação é clara e simples: bem, se “todo mundo”ou “qualquer um” (qualquer coletivo) começar a se chamar de índio, isso pode vir a prejudicar os “próprios” índios. A condição de indígena, condição jurídica e ideológica, pode vir a “perder o sentido”. Esse é um medo inteiramente legítimo. Não compartilho dele, mas o acho inteiramente legítimo, natural, compreensível, como acho legítimo, natural etc. o medo de assombração. Enfim... O raciocínio é: se, de repente, nós tivermos que “reconhecer como tal” toda comunidade que se reivindica como indígena perante os distribuidores autorizados de identidade (o Estado), aí quem vai acabar se dando mal são os Yanomami, os Tucano, os Xavante, todos os “índios de verdade”, em suma. Poderá haver uma desvalorização da noção de índio, um barateamento dessa identidade. Se, antes, ser índio custava caro (para evocar um artigo pioneiro de Roberto DaMatta: “Quanto custa ser índio no Brasil?”), e custava caro, é claro, para quem o era, hoje ser índio estaria ficando barato demais. Agora é fácil ser índio; basta dizer... E daí ninguém, principalmente o Estado, vai acabar comprando essa.

Não acredito nisso. Muito mal comparando — e digo mal porque a comparação arrisca reavivar velhos e grotescos estereótipos —, pode-se dizer que ser ou virar índio é como aquilo que Lacan dizia sobre os loucos: não é louco quem quer. Nem quem simplesmente o diz. Pois só é índio quem se garante.


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