PICICA: "Dentre os que acreditam nos ajustes, perfilam-se os
desenvolvimentistas versão light. É caso de qualificar o desenvolvimento
com a sustentabilidade. Basta sentarmos de coração desarmado, sem ódios
e vaidades, que se pode chegar a um consenso sobre as melhores soluções
para o meio ambiente, sem mudança radical. E, a partir daí, continuar
desenvolvendo o país e reduzindo as desigualdades. Mesmo porque ecologia
também é um novo modelo de negócios. Se o ativismo verde está
substituindo o vermelho, não se pode esquecer que o verde também é a cor
do dólar. Muitas empresas e a febre ongueira também vão por essa
direção, ávidas por colar o verde em si mesmas e mercadejar as marcas.
Contam com bons missionários da harmonia cósmica. Sem falar no
ecologista aburguesado, que compensa as culpas (e são tantas) com uma
atitude de “bom selvagem” contemporâneo. O progresso moral há-de
resolver os nossos problemas, por mais profundos que sejam, e sem
derrapar da linha do tempo capitalista. Sim, esses dias, ouvi as
ingenuidades mais comoventes."
Progresso e catástrofe na Cúpula dos Povos
A menos de dois meses para a Cúpula dos Povos, já começaram a chegar pessoas ligadas a grupos e movimentos que vão participar das atividades. Estou aproveitando a possibilidade de aprofundar algumas questões, em encontros pela cidade, em botecos, cafés, filas de cinema. E está ficando claro pra mim que o debate é repleto de zonas intermediárias, de pontos de vista emaranhados. Não dá pra esquematizar muito. Mas é possível anotar algumas tendências. O diagnóstico geral, me parece, é que as coisas vão mal para o meio ambiente, e é preciso mudar a forma de produzir e organizar a sociedade. O dissenso aparece no como.
Num pólo, tem quem acredite que, no geral, bastam ajustes, mais ou menos impactantes. Agrupam-se sob os slogans do desenvolvimento sustentável ou da economia verde, um outro nome para capitalismo verde. É possível fabricar consensos capazes de mobilizar os governos e a ordem internacional a impor compromissos e limites ao sistema produtivo global. A sociedade civil precisa se organizar mais e pressionar. Deve-se fortalecer uma consciência dos problemas socioambientais que afligem o planeta como um todo, o que depende também do cidadão comum: coleta seletiva do lixo, reciclagem, economizar água, favorecer alimentos orgânicos, promover eventos alternativos de conscientização, de programas ecológicos a festivais de rock.
No outro pólo, aparecem as correntes catastrofistas. Não tem jeito. Mesmo com ajustes, a vaca vai por água abaixo. A vida humana como a conhecemos tem data de validade. Virá o pior dos mundos. É uma verdade científica, de certeza matemática, absolutamente inegável. Negá-la tanto pode ser cinismo, como negar o extermínio dos judeus (ou dos índios, ou dos palestinos), quanto pode ser uma espécie de recalque mental. Como quando alguém pega uma doença grave e demora a aceitar para si mesmo e os próximos. Semelhantes ao avestruz, os ditos negacionistas enfiam a cabeça no buraco. Só vão admitir o fato incontornável tarde demais. Para os escatológicos científicos, somente uma virada radical poderia minimizar o processo de falência dos ecossistemas, que sustentam a vida como a conhecemos.
E aí existem inúmeras variações e modulações. Os caminhos do ambientalismo são muitos.
Dentre os que acreditam nos ajustes, perfilam-se os desenvolvimentistas versão light. É caso de qualificar o desenvolvimento com a sustentabilidade. Basta sentarmos de coração desarmado, sem ódios e vaidades, que se pode chegar a um consenso sobre as melhores soluções para o meio ambiente, sem mudança radical. E, a partir daí, continuar desenvolvendo o país e reduzindo as desigualdades. Mesmo porque ecologia também é um novo modelo de negócios. Se o ativismo verde está substituindo o vermelho, não se pode esquecer que o verde também é a cor do dólar. Muitas empresas e a febre ongueira também vão por essa direção, ávidas por colar o verde em si mesmas e mercadejar as marcas. Contam com bons missionários da harmonia cósmica. Sem falar no ecologista aburguesado, que compensa as culpas (e são tantas) com uma atitude de “bom selvagem” contemporâneo. O progresso moral há-de resolver os nossos problemas, por mais profundos que sejam, e sem derrapar da linha do tempo capitalista. Sim, esses dias, ouvi as ingenuidades mais comoventes.
Já na turma da catástrofe, ronda o niilismo mais milenar. De Nostradamus a Paul Kingsnorth, passando por inumerável filmografia hollywoodiana, anuncia-se nada mais nada menos que o fim do mundo. Não duvidem de nós!, conclamam. Alguns resmungam e lamentam, num canto de impotência. Outros carregam nos olhos o fogo do apocalipse: deixemos Roma queimar por seus pecados. Eis o castigo pela ousadia prometeica do homem. De suas ruínas construiremos uma outra sociedade. Mas têm os mais “estratégicos”, pra quem, — especialmente num contexto de crescimento econômico em que, segundo a concepção pavloviana deles, a maioria das pessoas só quer saber de trabalhar e ganhar mais dinheiro, — se fazem necessários apelos à mútua destruição garantida, a fim de mobilizar a sociedade e solidarizar os governos. É a aposta numa civilização que vê na própria extinção a única esperança de mudar realmente. A última esperança que antecede o pior niilismo, o suicídio ético da passividade consentida.
A única qualidade do catastrofismo, com que se poderia condescender, está no flerte ocasional com uma crítica radical do capitalismo. Mas põe tudo a perder quando assume a concepção escatológica de revolução. Isto é, uma concepção diacrônica e decadentista: estaríamos na transição entre dois tempos históricos. Salvemo-nos hoje do cataclisma de amanhã, quando a humanidade será julgada por seus atos. Soa esquerdista, afinal.
Penso que se corre um grande risco de a Cúpula dos Povos se limitar a colocar falsas questões e levantar falsos dilemas. A mística do progresso e a escatologia com ares científicos, em última análise, opõem duas ontologias negativas. De um lado, uma teleologia onde o futuro redime um presente que falta. Do outro, a denúncia de toda a metafisica ocidental, da técnica e do esquecimento do Ser, desse Moloch abissal que fabricamos industriosamente e que, agora, vai atirar os seus filhos à fogueira. Isto sempre significa aproximar a revolução de costas, afastando-se de nosso tempo e de nós mesmos, com promessas e destinos grandiloquentes. A rigor, não pode haver hegelianos ou heideggerianos de esquerda.
A fria atrocidade da ordem posta é inegável. O problema é mesmo socioambiental, antropológico, de economia política, biopolítico, enfim, ontológico. A fantasia não é um universo inventado como compensação pelos fracassos da realidade exterior. Nem messianismos e utopias, diante do que deveríamos nos pôr de joelhos. Imaginar alternativas significa ir muito além da atual crítica do desenvolvimentismo, além do progresso, da sustentabilidade, do verdismo, além das dualidades infernais e polêmicas encomendadas, além da democracia de shopping e do bem estar de condomínio que têm sido alçados como ideal. Realmente, não tenho a solução, só rascunhos de inquietações. Justamente, esse é o exercício político de fabulação e construção para a Cúpula enfrentar. Nem que seja para colocar o problema de um modo menos enviesado. O outro mundo não está longe, nem futuro nem passado, agora. Como organizar a indignação, a vontade de viver e os tumultos? Como aprender o que já sabemos, tornarmo-nos o que já somos, o que jamais deixamos de ser?
Fonte: Quadrado dos Loucos
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