abril 26, 2012

"Novas do Oitocentos", por Daniel Lopes


Novas do Oitocentos

Dois livros colaborativos organizados por Murilo de Carvalho debruçam-se e trazem revelações sobre o complexo século 19 brasileiro.

PICICA: "Após este tráfico, em grande parte por pressão britânica, ser declarado ilegal em 1831, o comércio de escravos foi a novos picos. O professor Sidney Chalhoub, do Departamento de História da Unicamp, é quem explica a força e a capilaridade da instituição da escravidão na sociedade brasileira. Mesmo setores menos favorecidos da população, inclusive ex-escravos, possuíam um ou dois cativos. 73 mil africanos foram importados em 1829. Com a proibição tendo um impacto inicial, o comércio caiu para 6 mil em 1831, mas voltaria a subir (60 mil em 1848), principalmente devido à expansão dos campos de café e à influência que os fazendeiros tinham no governo central. Em 1837, os partidários da escravidão chegaram ao cúmulo de propor a anulação da lei de 1831, projeto que não foi adiante, lembra Chalhoub, devido à oposição de uma minoria de aguerridos parlamentares e à oposição de diplomatas britânicos. Apesar da ilegalidade, jeitinhos foram empregados durante décadas para burlar a legislação."
 
por Daniel Lopes (25/04/2012)
em História, Livros




"História do Brasil Nação: 1808-2010 - Vol. 2: A construção nacional (1830-1889)", de José Murilo de Carvalho (coord.)

"Perspectivas da cidadania no Brasil Império", de José Murilo de Carvalho e Adriana Pereira Campos (orgs.)

Estudos gerais sobre o século 19 brasileiro são por natureza estudos em torno da escravidão. Aquele nosso século não se resumiu à escravidão, como o século 20 europeu não se resumiu ao extremismo político, e seus aspectos mais culturais (na verdade, literários) estão bem desenhados no ensaio de Alfredo Bosi para o segundo volume da série História do Brasil Nação, elaborada pela Fundación Mapfre e publicada pela editora Objetiva. Mas, acertadamente, o volume organizado por José Murilo de Carvalho gira em torno da questão escravocrata.

Mesmo, óbvio, quando o tema é a política externa brasileira. Afinal de contas, o maior conflito bélico da nossa história, a Guerra do Paraguai, foi de certa forma influenciado pela questão da escravidão (quando não por outra, porque essa doença foi material de propaganda de vastos setores das repúblicas vizinhas contra o Império), para não falar do pós-Guerra. E o Brasil passou um bom pedaço do século em escaramuças com a Grã-Bretanha devido à questão do tráfico.

Após este tráfico, em grande parte por pressão britânica, ser declarado ilegal em 1831, o comércio de escravos foi a novos picos. O professor Sidney Chalhoub, do Departamento de História da Unicamp, é quem explica a força e a capilaridade da instituição da escravidão na sociedade brasileira. Mesmo setores menos favorecidos da população, inclusive ex-escravos, possuíam um ou dois cativos. 73 mil africanos foram importados em 1829. Com a proibição tendo um impacto inicial, o comércio caiu para 6 mil em 1831, mas voltaria a subir (60 mil em 1848), principalmente devido à expansão dos campos de café e à influência que os fazendeiros tinham no governo central. Em 1837, os partidários da escravidão chegaram ao cúmulo de propor a anulação da lei de 1831, projeto que não foi adiante, lembra Chalhoub, devido à oposição de uma minoria de aguerridos parlamentares e à oposição de diplomatas britânicos. Apesar da ilegalidade, jeitinhos foram empregados durante décadas para burlar a legislação.

Os atritos britânico-brasileiros estão quase tão presentes neste livro quanto a própria escravidão em si. Eles aparecem, além de na colaboração de Sindey Chalhoub (“População e Sociedade”), nos ensaios de José Murilo de Carvalho (“A Vida Política”), Leslie Bethell, da Universidade de Londres (“O Brasil no Mundo”), e João Antônio de Paula (“O Processo Econômico”). E não é à toa. Quando, em 1844, o governo brasileiro aventou não renovar o tratado proibitivo de 1831, a Marinha britânica se permitiu aprisionar e levar a julgamento os navios negreiros da rota África-Brasil. A reação antibritânica que se seguiu foi em grande parte arquitetada por proprietários de escravos, de repente autodenominados defensores da soberania dos povos – embora não dos povos africanos. Essa postura “anti-imperialista” dos senhores esteve longe de representar um caso isolado no espaço e no tempo. Ela seria muito bem compreendida, por exemplo, por figuras do século seguinte como um Omar al-Bashir (“Não aceitaremos forças coloniais invadindo o país”) e um Alexander Lukashenko (“Se não existem pretextos para intervenção, cria-se pretextos imaginários. Para isso, um rótulo bem conveniente foi criado – democracia e direitos humanos”).

De fato, a audácia britânica chegou a níveis que, tivessem ocorrido mais de um século e meio depois, teriam deixado os “anti-imperialistas” de todas as latitudes tão furibundos que seriam capazes de passar o dia inteiro no Twitter. A embaixada britânica no Rio de Janeiro chegou a editar uma publicação abolicionista, em clara sabotagem do nosso projeto econômico nacional.

Mas no final das contas a estratégia brasileira de “acomodação, procrastinação, resistência e tergiversação”, para pegar carona na linha perfeita de João Antônio de Paula, não adiantou. Sem dúvida também devido ao fato de o mercado nacional estar devidamente abastecido com os escravos que entravam ilegalmente há duas décadas, e portanto com o problema de mão de obra cativa resolvido a curto prazo, o governo conservador no poder em 1850 decidiu que o país não tinha a mínima chance de desafiar a Marinha Real e se voltou para pôr fim a um comércio que já estava prejudicando demais o trânsito internacional brasileiro. Os 60 mil escravos traficados em 1848 viraram 22 mil em 1850, 3 mil em 1851, menos de 1 mil no ano seguinte, e em 1855 viu-se a última tentativa de desembarcar prisioneiros africanos no Brasil. Além do campo moral, os efeitos positivos são sintetizados por Murilo de Carvalho:
O fim do tráfico deixara ociosos recursos que buscaram outras aplicações. Em consequência, o Rio de Janeiro foi palco do primeiro surto de atividades econômicas, incluindo a criação de bancos, de companhias de navegação, de transporte urbano, e industriais. Algumas dessas empresas tinham caráter especulativo, outras foram de fato implantadas. Era o início da modernização capitalista do país.
Mas restavam ainda muitas pedras no caminho, mal ou não removidas pro lado. E, após passar pelo texto de Antônio de Paula, do Departamento de Ciências Econômicas da UFMG, o leitor de A construção nacional chega à lamentável conclusão de que sequer é preciso sair daquele fatídico ano de 1850 para indicar mais um marco das oportunidades perdidas brasileiras.

Segundo o professor Antônio de Paula, “todos os países hoje considerados desenvolvidos chegaram a essa condição pela criação de instituições e processos cujo sentido geral foi a ‘distribuição primária da renda’”. Isso se deu por revolução na França, por reformas democrático-liberais nos Estados Unidos, por modernização autoritária no Japão. No Brasil, ainda estamos tentando. Como o histórico dos resultados de revoluções e modernizações autoritárias por estas bandas latinas não é lá essas coisas, e ainda que fosse, é bom tentarmos trilhar o caminho da democracia e do liberalismo, que é mais demorado e sem graça, mas costuma ter resultados mais sólidos e menos ovos quebrados para a feitura do omelete.

Pois foi em 1850 que tentamos resolver a questão agrária com a Lei de Terras. Os estadunidenses só o fariam uma década depois, mas se, por lá, o acesso à terra foi ampliado, por aqui o acesso do pobre à terra foi “bloqueado” – termo do Antônio de Paula. E foi em 1850 que o Código Comercial foi promulgado. Se não trágico como a Lei de Terras, os efeitos do Código ainda assim ficaram muito distantes do ideal, com o boom econômico que ele ajudou a criar ficando restrito ao Rio de Janeiro e outras poucas cidades.

O ensaio de Murilo de Carvalho sobre a vida política é primoroso, com o triplo mérito de incluir as insatisfações e revoltas populares no âmbito político – não restringido portanto à política partidária –, não colocar gatos diversos no mesmo saco e não apelar para as romantizações de certa historiografia “engajada”. É interessante, nesse sentido, cotejar sua abordagem da Revolta Praieira pernambucana (1848) com sua breve análise da Cabanagem paraense (1835). No Pará, é verdade, o jovem seringueiro Eduardo Angelim contou com a ajuda de um padre para comandar um exército de índios, caboclos e escravos que atacou a elite local. Mas nada de muito bom poderia advir do processo. O assassinato indiscriminado de portugueses e brancos em geral, quando da tomada de Belém, pode ter sido defendido como um importante passo tático, mas o curioso é que Angelim, branco ele mesmo, não aboliu a escravidão nos territórios que estiveram sob seu controle, e ainda reprimiu uma sublevação de escravos em suas fileiras.

A revolta pernambucana da década seguinte, é verdade, foi “de elite” se comparada à Cabanagem, mas, apesar da defesa populista da expulsão de portugueses e da posse de seus bens por brasileiros, teve um projeto bem mais defensável – e igualmente derrotado – de federalismo, sufrágio universal e extinção do Poder Moderador.

O ensaio aborda o jogo político tradicional de forma igualmente primorosa. A página 95 do Murilo, sobre as origens dos partidos Conservador e Liberal, vale por uma prateleira de livros sobre a política do Brasil Império. E temos D. Pedro II por todas as páginas.

Eu sou uma espécie de admirador do velho Pedro de Alcântara. Sim, eu preferia que o processo de independência tivesse acabado em uma república inspirada no modelo da rapaziada da banda norte do continente – é claro que todo mundo aí já leu A outra Independência, de Evaldo Cabral de Mello. Sim, eu sei do que o velho tinha de conservador. Mas eu sei também do que ele tinha de liberal. Posto em comparação com todos os monarcas do século 19, ele se sobressai nos quesitos inteligência e comprometimento com a coisa pública. Ele se sobressai nesses quesitos em comparação com os diversos chefes de governos conservadores e liberais de sua época, e em comparação com os caudilhos republicanos da América de língua espanhola. Para não falar na comparação com os mandatários brasileiros das repúblicas velhas e novas. De fato, Pedro foi o melhor presidente que o Brasil não teve. Em suma: já que a independência levou imediatamente apenas a um “império”, foi melhor ter D. Pedro II no cargo.

Murilo de Carvalho, que claramente também compartilha da opinião de que o Brasil podia ter passado mais de meio século sob o domínio de um rei pior, dá vários exemplos da astúcia política de D. Pedro, que fez com que o país ficasse a maior parte do tempo em paz (interna e externamente) e não fosse dividido, exceto por períodos negligenciáveis. Na primeira metade dos anos 1840, quando os liberais de Minas e São Paulo foram às armas para acertar suas desavenças, o imperador deu uma esfriada nos ânimos ao anistiar e chamar para participar do governo algumas figuras do partido previamente derrotado militarmente. Pedro foi o primeiro monarca a pisar nos Estados Unidos, país que admirava, e o único chefe de estado convidado para as celebrações do centenário da independência estadunidense, em 1876. De forma descontraída, um jornalista do New York Herald sugeriu que ele deveria se candidatar à presidência da centenária república.

Em relação ao movimento republicano brasileiro, cito Murilo:
O imperador deu pouca importância ao surgimento do novo partido [Republicano de São Paulo]. Censurou um presidente do Conselho [de Ministros] que propôs negar emprego público aos republicanos. Alegou que se os brasileiros não o quisessem para imperador iria ser professor. No mesmo espírito, nomeou um militar positivista, Benjamin Constant, professor de matemática de seus netos. Esse oficial exerceu mais tarde papel importante na proclamação da República. A atitude do imperador em relação aos republicanos até o final da monarquia foi de estranha simpatia.
Viajante apaixonado e patrono de instituições culturais e educacionais no Brasil, D. Pedro se destacaria ainda pela atuação na Guerra do Paraguai. Aqui também, poderíamos ter tido um comandante pior, menos resoluto.

Murilo de Carvalho diz que o imperador tinha índole pacifista. Pode ser. O fato é que, com o país envolvido na guerra contra López, D. Pedro envelheceu muitos anos em poucos anos. Ainda assim, com as forças paraguaias próximas de zero mas com Solano ainda à solta, o imperador insistiu, contra alguns de seus próprios comandantes e comandantes de países aliados, que a guerra só poderia acabar quando o objetivo primeiro definido pelo Tratado da Tríplice Aliança de 1865 – prisão ou expulsão do caudilho do solo paraguaio – fosse levado a cabo. Como o ditador rejeitara desde sempre o exílio e decidiu continuar lutando até o fim, até o fim ele lutou – embora, ao que tudo indica, tenha acabado morto pela estupidez de um soldado brasileiro, quando já estava domado e pronto para ir ao xilindró. (A propósito: é um tanto decepcionante quando Leslie Bethell, ao elencar os motivos que retardaram tanto a vitória, não cita o total desconhecimento do terreno paraguaio por parte dos aliados; como esmiúça Francisco Doratioto em seu insuperável Maldita Guerra, o país fechado ao mundo e mantido como latifúndio de López faria com que brasileiros e companhia praticamente tateassem no escuto ao invadi-lo.)

A guerra acabaria no mesmo 1870 do Manifesto Republicano. Lá pelo final do ensaio de Murilo de Carvalho, eu me peguei intrigado pela narração de como o republicano mineiro Cristiano Otoni, eleito representante do Clube da Lavoura e do Comércio na Câmara, se juntou a alguns de seus pares para se opor à Lei do Ventre Livre (1871), porque segundo eles, em última instância, a medida incitaria a revolta de escravos contra seus proprietários. A lei passou na Câmara, com apoio do imperador, porque os deputados do Norte e do Nordeste apresentaram menor resistência – suas províncias tinham apenas cerca de 35% dos escravos do país. Mesmo descontados os interesses comerciais, fica a estranheza: um republicano contra a Lei do Ventre Livre.

A surpresa ocorre porque ainda nos pegamos frequentemente presos naquele quadro mental que vê um lado “liberal-progressista” e um lado “conservador-reacionário” lutando desde, sei lá, sempre pelo destino dos povos. Isso é fruto de uma educação maniqueísta em História.

E aqui está o pretexto ideal para eu indicar um outro livro lançado recentemente, e que tem relação direta com A construção nacional. Estou falando de Perspectivas da cidadania no Brasil Império. Volume também colaborativo, e também organizado por José Murilo de Carvalho, juntamente com Adriana Pereira Campos, professora da UFES. A obra é mais uma produção do prolífico Centro de Estudos do Oitocentos, grupo que reúne um grande número de pesquisadores de nove universidades públicas do RJ, MG e ES.

O Centro apresenta “cidadania” como um barco bem amplo, capaz de acomodar análises que vão do comércio de livros no Rio de Janeiro até as agitações sociais da Província Oriental. Então o leitor às vezes pode ficar procurando sem muito sucesso a relação entre o ensaio que está lendo e o que acabou de ler. Apesar disso, a leitura geralmente compensa. E é inevitável eu dar como exemplo, aqui também, mais um texto do Murilo, “A Involução da Participação Eleitoral no Brasil, 1821-1930”. Pois é, involução. Se às vezes nos vemos presos no binário “Conservadores X Progressistas”, também nos vemos limitados no túnel do tempo mental que se nega a abandonar a ideia de que progresso temporal equivale a progresso social. Durma-se com uma afirmação dessas: a legislação eleitoral de 1821 “foi, sem dúvida, a mais liberal da história do país até a Constituição de 1988”.

Os documentos e números desenterrados por Murilo para sustentar a tese acima são bastante convincentes. Nas eleições de 1835 e 1872, o Brasil teve participação do eleitorado superior a quase todos os países europeus no mesmo período. O que quebrou as pernas da embrionária participação democrática brasileira foram as restrições eleitorais de 1881; agora, para comparecer às urnas, era preciso ter atestado de alfabetização. Não é preciso nenhum grande esforço para compreender o impacto dessa limitação no Brasil do final do século 19. E, se sabemos que a legislação de 1821 não limitava os eleitores por renda, alfabetização ou determinados empregos, compreendemos por que a conclusão do autor – “só em 1945 é que foram superados os números de 1872” – é mais do que plausível.

Ah sim, o binário. O deputado conservador Francisco Belisário lançou O sistema eleitoral nesse mesmo 1872 de razoável participação popular. No ano anterior, como vimos, o Ventre Livre foi aprovado, e Belisário viu aí um sintoma da doença da pressão dos eleitores sobre seus representantes. Para resolver essa distorção, só mesmo dissolvendo o povo, defendeu o autor, “essa turbamulta, ignorante, desconhecida e dependente.” (Eu acho que uma reedição d’O sistema eleitoral em 2006 teria vendido bastante. Mas enfim.)

O binário fica trincado quando sabemos que poucos liberais se opuseram às restrições de 1881 – as exceções foram as de hábito: Nabuco, José Bonifácio e mais um punhado; e se despedaça de vez quando sabemos que já no final dos anos 1860 havia republicanos radicais, como o pernambucano Sinfrônio Coutinho, se manifestando contra o voto de analfabetos com argumentos pouco convincentes.

Leia os dois livros também por isso, para abandonar mais um pouco os maniqueísmos em relação ao passado.

::: A construção nacional (1830-1889) ::: José Murilo de Carvalho (coord.) :::
::: Objetiva, 2012, 328 páginas :::
::: compre na Livraria Cultura :::

::: Perspectivas da cidadania no Brasil Império :::
::: José Murilo de Carvalho e Adriana Pereira Campos (orgs.) :::
::: Civilização Brasileira, 2012, 532 páginas :::
::: compre na Livraria Cultura :::

Fonte: Amálgama

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