Sobre Escassez e Superabundância no Brasil
PICICA: "O problema do atual governo termina por ser a dissonância entre a colateralidade de suas medidas, o resultado material de uma redistribuição funcional da renda em favor dos trabalhadores - e seu próprio acesso ao crédito - e a teleologia do Programa - moderno e keynesiano - que vê na produção maior o mesmo que produção melhor - como se o problema não fosse produzirmos em demasia porque o fazemos mal (e vice-versa), pois consumimos pouco, questões que o Keynesianismo jamais foi capaz de dar conta pelos motivos óbvios de seus propósitos."
Os Retirantes -- Portinari |
Talvez o melhor livro de Giorgio Agamben seja o Reino e a Glória. Para
além de todas as críticas que se possa fazer ao autor, à luz da
filosofia da imanência, é preciso reconhecer sua competente pesquisa
sobre como o conceito de economia foi moldado durante a Idade Média pela
Teologia - e como os modernos são tributários disso, quando o aplicam
para explicar (e ordenar, por tabela) as relações de produção entre os
homens.
Há
uma questão fundamental que é, precisamente, o fato de que Deus quer
que todos se salvem, mas mesmo assim nem todos se salvarão. De um lado,
há a superabundância de bondade divina, do outro, a escassez da
salvação. É um contraste que permeia o pensamento medieval, mas só irá
encontrar sua concretização, ironicamente, no Moderno, com a
estruturação da máquina estatal e a instauração do capitalismo.
Vivemos
em um sistema econômico no qual as nossas necessidades são inventadas -
ou até mais que isso, as próprias subjetividades são inventadas para
que, a partir daí, padrões de consumo sejam construídos - e existe,
portanto, uma superabundância de produtos - às custas da sociedade e da
natureza - e, ao mesmo tempo, uma escassez de acesso a eles, pela
problemática da não realização do valor: os trabalhadores gastam o que
ganham, enquanto os capitalistas ganham o que gastam (e, por isso, não
gastam tudo) como nos lembra Kalecki.
O
sistema capitalista impulsiona para que todos enriqueceram, mas nem
todos se enriqueceram, pois a riqueza é condição relativa à existência
de pobreza. A aparente mobilidade capitalista - em comparação ao
imobilismo estamental - cai por terra, pois a condição de existência do
capitalismo é a mesma da mitologia cristã medieval: nem todos se
salvarão, pois a salvação tem por condição lógica a não-salvação de
outros tantos, uma vez que ela é relativa à necessária existência de uma
danação.
Há uma dificuldade quase crônica nas fileiras esquerdistas em compreender isso. Quando falamos no avanço do consumo dos mais pobres no governo Lula- e os problemas da esquerda em ver isso como algo positivo -, na questão industrial brasileira -
enquanto partes expressiva da esquerda alardeiam que estamos cercados
pelo fantasma da desindustrialização - ou quando nos deparamos com a
face medieval sob a máscara übermoderna dos veganos - como nos demonstrou, em um post irretocável de Lucas Portela - vemos isso.
Há um trecho de Lucas que merece um destaque especial:
"(...)que fome não é estarvação, porque há fome específica; que fome dá lucro, porque é gerando escassez que se especula sobre a superabundância alimentar. Portanto, caro vegan, se os pobres comessem mais carne poderíamos paradoxalmente produzir menos boi – desde que a ampliação do consumo adviesse da melhor distribuição, do impedimento canino pelo Estado de que o Capital especule com os víveres e comodities alimentares"
É
exatamente essa bola que eu levantei quando tratava do avanço do
consumo dos mais pobres no governo Lula: ainda que haja um sem-número de
armadilhas - a capitulação ao desenvolvimentismo puro, p.ex. -, é fato
que o aumento de consumo reordena para melhor a produção em suas
múltiplas esferas e facetas. Inclusive porque um número de trabalhadores
consumindo mais significa maior controle deles sobre a própria
produção.
A
questão chave, e certamente Dilma não o percebe, é que não é produzir
mais, mas produzir melhor, o que seu governo faz colateralmente ao
manter o estímulo ao mercado interno via consumo das famílias. Não é
aumentar a superabundância, mas sim reduzi-la - e por tabela também a
escassez - ao reorientar as relações de consumo.
Ao
fazer os produtores serem, gradualmente, senhores da própria produção,
resolve-se a problemática central do capitalismo que é, precisamente, a
dissonância entre uma coisa e outra. A partir daí, os padrões da
produção passam a poder ser pensados em termos de sustentabilidade: a
demanda concreta passa a assumir o lugar da demanda imaginária que o
capitalismo produz. Podemos produzir menos, finalmente, porque, afinal
de contas, não precisamos de tudo isso.
A
insistência nossa sobre a dicotomia entre uma demanda concreta e uma
demanda imaginária, antes de ser marxista é spinozana - e é de Marx por ele ter lido Spinoza
- e se opõe ao projeto do moderno, sobretudo cartesiano, que não irá
admitir, no fundo, essa distinção, reduzindo o funcionamento produtivo,
tal como pensado a partir de Smith, não à toa, a um conveniente
jogo de espelhos [e de especulação]: a demanda é naturalizada e, ao
acontecer isso, tudo é reduzido ao mesmo cesto comum de supostas
necessidades.
O problema do atual governo termina por ser a dissonância
entre a colateralidade de suas medidas, o resultado material de uma
redistribuição funcional da renda em favor dos trabalhadores - e seu
próprio acesso ao crédito - e a teleologia do Programa - moderno e
keynesiano - que vê na produção maior o mesmo que produção melhor -
como se o problema não fosse produzirmos em demasia porque o fazemos mal
(e vice-versa), pois consumimos pouco, questões que o Keynesianismo
jamais foi capaz de dar conta pelos motivos óbvios de seus propósitos.
Mas
se a resposta para o desemprego não é o pleno emprego, também não quer
dizer que o desemprego - supostamente estável e administrável - seja bom
- e o mesmo se aplica entre a lógica de crescimento e estagnacionismo. A
produção não precisa crescer, estagnar ou decrescer, ela precisa se
ajustar à vida pondo-se em função dela - o que significa fazer um giro
copernicano em relação ao que prevalece agora.
A
partir daí, é preciso não apenas criticar o desenvolvimentismo
dilmista, mas fazer, também, a crítica da crítica ao desenvolvimentismo,
uma vez que ela tem se fiado nos seus mesmos paradigmas - quando não,
dentro da sua lógica mesma, como quando vemos Marina ou Plínio, a
exemplo de Serra, denunciando a desindustrialização. Uma produção melhor não é mais, nem menos, é apenas a melhor mesmo. Simples assim.
Fonte: O Descurvo
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