abril 22, 2012

"Sobre Escassez e Superabundância no Brasil", por Hugo Albuquerque

Sobre Escassez e Superabundância no Brasil 

PICICA: "O problema do atual governo termina por ser a dissonância entre a colateralidade de suas medidas, o resultado material de uma redistribuição funcional da renda em favor dos trabalhadores - e seu próprio acesso ao crédito - e a teleologia do Programa - moderno e keynesiano - que vê na produção maior o mesmo que produção melhor - como se o problema não fosse produzirmos em demasia porque o fazemos mal (e vice-versa), pois consumimos pouco, questões que o Keynesianismo jamais foi capaz de dar conta pelos motivos óbvios de seus propósitos."

Os Retirantes -- Portinari
Talvez o melhor livro de Giorgio Agamben seja o Reino e a Glória. Para além de todas as críticas que se possa fazer ao autor, à luz da filosofia da imanência, é preciso reconhecer sua competente pesquisa sobre como o conceito de economia foi moldado durante a Idade Média pela Teologia - e como os modernos são tributários disso, quando o aplicam para explicar (e ordenar, por tabela) as relações de produção entre os homens. 

Há uma questão fundamental que é, precisamente, o fato de que Deus quer que todos se salvem, mas mesmo assim nem todos se salvarão. De um lado, há a superabundância de bondade divina, do outro, a escassez da salvação. É um contraste que permeia o pensamento medieval, mas só irá encontrar sua concretização, ironicamente, no Moderno, com a estruturação da máquina estatal e a instauração do capitalismo.

Vivemos em um sistema econômico no qual as nossas necessidades são inventadas - ou até mais que isso, as próprias subjetividades são inventadas para que, a partir daí, padrões de consumo sejam construídos - e existe, portanto, uma superabundância de produtos - às custas da sociedade e da natureza - e, ao mesmo tempo, uma escassez de acesso a eles, pela problemática da não realização do valor: os trabalhadores gastam o que ganham, enquanto os capitalistas ganham o que gastam (e, por isso, não gastam tudo) como nos lembra Kalecki.

O sistema capitalista impulsiona para que todos enriqueceram, mas nem todos se enriqueceram, pois a riqueza é condição relativa à existência de pobreza. A aparente mobilidade capitalista - em comparação ao imobilismo estamental - cai por terra, pois a condição de existência do capitalismo é a mesma da mitologia cristã medieval: nem todos se salvarão, pois a salvação tem por condição lógica a não-salvação de outros tantos, uma vez que ela é relativa à necessária existência de uma danação. 

Há uma dificuldade quase crônica nas fileiras esquerdistas em compreender isso. Quando falamos no avanço do consumo dos mais pobres no governo Lula- e os problemas da esquerda em ver isso como algo positivo -, na questão industrial brasileira - enquanto partes expressiva da esquerda alardeiam que estamos cercados pelo fantasma da desindustrialização -  ou quando nos deparamos com a face medieval sob a máscara übermoderna dos veganos - como nos demonstrou, em um post irretocável de Lucas Portela - vemos isso.

Há um trecho de Lucas que merece um destaque especial:

"(...)que fome não é estarvação, porque há fome específica; que fome dá lucro, porque é gerando escassez que se especula sobre a superabundância alimentar. Portanto, caro vegan, se os pobres comessem mais carne poderíamos paradoxalmente produzir menos boi – desde que a ampliação do consumo adviesse da melhor distribuição, do impedimento canino pelo Estado de que o Capital especule com os víveres e comodities alimentares"

É exatamente essa bola que eu levantei quando tratava do avanço do consumo dos mais pobres no governo Lula: ainda que haja um sem-número de armadilhas - a capitulação ao desenvolvimentismo puro, p.ex. -, é fato que o aumento de consumo reordena para melhor a produção em suas múltiplas esferas e facetas. Inclusive porque um número de trabalhadores consumindo mais significa maior controle deles sobre a própria produção.


A questão chave, e certamente Dilma não o percebe, é que não é produzir mais, mas produzir melhor, o que seu governo faz colateralmente ao manter o estímulo ao mercado interno via consumo das famílias. Não é aumentar a superabundância, mas sim reduzi-la - e por tabela também a escassez - ao reorientar as relações de consumo. 

Ao fazer os produtores serem, gradualmente, senhores da própria produção, resolve-se a problemática central do capitalismo que é, precisamente, a dissonância entre uma coisa e outra. A partir daí, os padrões da produção passam a poder ser pensados em termos de sustentabilidade: a demanda concreta passa a assumir o lugar da demanda imaginária que o capitalismo produz. Podemos produzir menos, finalmente, porque, afinal de contas, não precisamos de tudo isso.

A insistência nossa sobre a dicotomia entre uma demanda concreta e uma demanda imaginária, antes de ser marxista é spinozana - e é de Marx por ele ter lido Spinoza - e se opõe ao projeto do moderno, sobretudo cartesiano, que não irá admitir, no fundo, essa distinção, reduzindo o funcionamento produtivo, tal como pensado a partir de Smith, não à toa, a um conveniente jogo de espelhos [e de especulação]: a demanda é naturalizada e, ao acontecer isso, tudo é reduzido ao mesmo cesto comum de supostas necessidades.

O problema do atual governo termina por ser a dissonância entre a colateralidade de suas medidas, o resultado material de uma redistribuição funcional da renda em favor dos trabalhadores - e seu próprio acesso ao crédito - e a teleologia do Programa - moderno e keynesiano - que vê na  produção maior o mesmo que produção melhor - como se o problema não fosse produzirmos em demasia porque o fazemos mal (e vice-versa), pois consumimos pouco, questões que o Keynesianismo jamais foi capaz de dar conta pelos motivos óbvios de seus propósitos.

Mas se a resposta para o desemprego não é o pleno emprego, também não quer dizer que o desemprego - supostamente estável e administrável - seja bom - e o mesmo se aplica entre a lógica de crescimento e estagnacionismo. A produção não precisa crescer, estagnar ou decrescer, ela precisa se ajustar à vida pondo-se em função dela - o que significa fazer um giro copernicano em relação ao que prevalece agora.

A partir daí, é preciso não apenas criticar o desenvolvimentismo dilmista, mas fazer, também, a crítica da crítica ao desenvolvimentismo, uma vez que ela tem se fiado nos seus mesmos paradigmas - quando não, dentro da sua lógica mesma, como quando vemos Marina ou Plínio, a exemplo de Serra, denunciando a desindustrialização. Uma produção melhor não é mais, nem menos, é apenas a melhor mesmo. Simples assim.
Fonte: O Descurvo

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