julho 25, 2012

"19J em Santa Maria, RS, Onetti", por Bruno Cava

PICICA: "Vamos fazer um exercício de embotamento. Não nos deixam sonhar, sempre há coisas demais para fazer. Para isso, que tal evitar a prosa torrencial, orientada para o esmagamento do leitor com invectivas e denúncias e comemorações exageradas? Depurar as narrativas autolaudatórias e entusiasmadas de movimento, arrancar-lhes os arroubos, o barroquismo em demasia, as arestas que de tão curvadas não ferem mais. Despir as exclamações das frases, diminuir o passo até o piano, o pianíssimo. Nem tanto as maravilhas de uma terra exuberante e perigosa, mas a superabundância das mil pequenas coisas. No conjunto, uma revolução cotidiana. Um transe que subtrai a massa publicitária, um exercício de estilo para a prosa política ficar magra e forte. Captar as pequenas empatias, os desenganos, os ódios destrutivos, as epifanias íntimas, todo esse segredo ético e político de pessoas determinadas a viver outro tempo e pisar noutra terra." 

19J em Santa Maria, RS, Onetti


Nunca tinha ido a Santa Maria, no centro do Rio Grande do Sul.  Mas ao desembarcar na rodoviária, não pude deixar de sentir um déjà vu. Uma estranha afinidade por uma cidade em que nunca estive, que foi crescendo com os dias. Vai entender as leis secretas da simpatia. Talvez seja porque conhecera a Santa María dos livros de um escritor uruguaio. Conhecera bem, de leituras insones e apaixonadas. De tal maneira que, em alguns lugares da cidade gaúcha, tive a sensação de estar sendo observado pelo dr. Díaz Grey. De jaleco branco na janela do consultório, me vendo passear friorento pelo centro. Logo me avisaram que não tinha nada a ver. Ainda acho que sim. É verdade que não encontrei a estátua de Juan Maria Brausen, mas bem que eu comi um xis.


Santa Maria, no epicentro do estado, entre a planície e a montanha, entre a austeridade das estâncias e a proliferação colorida das colônias, entre a severidade pampeira e a sofisticação dos muitos idiomas e culturas da serra. Terra de muitos tempos, mil presentes, passados e futuros, onde todos tomam chimarrão. Mas não o mesmo chimarrão. Racismo em todas as altitudes. Se dizem que há bairrismo no RS, mal sabem como ele se modula em variações de pertencimento. Racismo contra colono, o matuto vindo do estrangeiro que não se tornou gaúcho. Racismo de colono, o pequeno-branco que invoca a ascendência européia para se distinguir acima da negrada. E no meio disso, o sangue caboclo irriga tudo, essa raça de indesejados empurrada para cima e para baixo, desapropriada, moída e humilhada, mas que mesmo assim se levanta. Se levanta e faz da própria pobreza a dignidade de uma recusa e uma reafirmação de valentia.


Foi o desconcerto que as rajadas quentes do vento norte levaram à Santa Maria. Em 19 de julho (19J), o evento CIDADE-TRANSE ocupar resistir reexistir reuniu os grupos de contestação e afirmação de outro modo de produzir e viver a liberdade. Foi no Boteco do Rosário, co-organizado pela Universidade Nômade, no polo político e cultural da cidade, underground, de latência subjacente. Não foi um micro-evento com militantes de província, como outro bairrismo poderia supor. E sim um encontro onde o mundo inteiro estava dentro, cocktail de grupos, movimentos, coletivos e forças resistentes, com suas pautas e quereres e excessos, sua revolta de amor e raiva. A mobilização global do 19J também aconteceu na pequena Santa Maria, na Santa Maria viva, revoltada e generosa, que é pequena apenas nos mapas.


A ideia que eu tive em Santa Maria, nas duas, na única, é falar onettianamente dessas dinâmicas tão ricas de movimento. Colocar-me em pele de um Juan María Brausen, sonhador solitário e cismado. E então deitar na cama, acender um cigarro e, com muito tempo livre adiante, delirar uma alternativa de desejo a essas cidades e países de cimento Portland. Vamos fazer um exercício de embotamento. Não nos deixam sonhar, sempre há coisas demais para fazer. Para isso, que tal evitar a prosa torrencial, orientada para o esmagamento do leitor com invectivas e denúncias e comemorações exageradas? Depurar as narrativas autolaudatórias e entusiasmadas de movimento, arrancar-lhes os arroubos, o barroquismo em demasia, as arestas que de tão curvadas não ferem mais. Despir as exclamações das frases, diminuir o passo até o piano, o pianíssimo. Nem tanto as maravilhas de uma terra exuberante e perigosa, mas a superabundância das mil pequenas coisas. No conjunto, uma revolução cotidiana. Um transe que subtrai a massa publicitária, um exercício de estilo para a prosa política ficar magra e forte. Captar as pequenas empatias, os desenganos, os ódios destrutivos, as epifanias íntimas, todo esse segredo ético e político de pessoas determinadas a viver outro tempo e pisar noutra terra. Porque se tem bairrismo gaúcho, tem também barbarismo, o desconcerto muitas vezes violento a cortar em diagonal as “raças superiores”, que coabitam essa gente de muitos rostos. É isso que importa, o desarranjo das pequenas coisas, o transe das raças.


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para Talita, preenche o intervalo fugaz entre os tempos das coisas, intervalo tão pequeno, quase imperceptível, mas tão genioso de oscilações íntimas e esquisitices amáveis. estou descobrindo.


Fonte: Quadrado dos Loucos

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