julho 19, 2012

"Para onde a greve pode nos levar?", por Denis Correa

PICICA: "É um erro acreditar que a democracia é um sistema político natural, como se as pessoas fossem aptas de nascença a lidar com seus direitos e deveres. É preciso aprender em democracia, ensinar em democracia, num longo e infinito processo de autoeducação. E isto não se faz através de banca de negócios nos quais quem paga mais leva o capital político para casa. A deliberação democrática deve envolver critérios racionais e públicos. Se for do interesse das categorias de servidores públicos que os seus direitos não sejam desmantelados, é imperativo que tais direitos sejam isonômicos." 



Nos últimos dias, entrou numa fase crítica a greve dos docentes das Universidades, Institutos e Centros de Educação Federais. Após recusarem-se a negociar com os grevistas por quase 2 meses, o MEC e o MPOG finalmente ofereceram uma proposta de reajuste para a categoria na última sexta-feira 13 (curiosamente), ainda que muito aquém da reestruturação da carreira exigida pelos professores. Nesse meio tempo eclodiram também greves dos servidores das universidades (que entram em greve regularmente, e não perderiam mais esta oportunidade) e até mesmo greve de alunos por melhorias nas instituições de ensino, especialmente nas recém-fundadas universidades do REUNI, o projeto de expansão criado pelo governo federal, acusado pelos grevistas de ter sido “desordenado”.


O governo iniciou as negociações com os docentes após muita hesitação e cedendo pouco para a categoria. As reinvindicações dos grevistas são justas e (às vezes) racionais, apesar de que (aqui vai uma crítica bem pessoal) raramente tenha-se utilizado argumentos e atitudes equivalentes à condição de um movimento capitaneado pela elite científica e intelectual do país. Este texto, ao invés de entrar nas minúcias das questões desta greve específica, será uma tentativa de ir além das quedas de braço entre grevistas e governo, e de buscar a raiz do problema de forma que se possa ensaiar informalmente uma solução mais duradoura e racional no horizonte.


O movimento grevista do ensino federal obteve até agora relativo sucesso numa difícil empreitada: convencer a sociedade brasileira – que em sua maioria ganha muito menos do que um docente do ensino federal – de que a reinvindicação é justa. Os grevistas utilizaram de uma série de recursos para obter tal resultado, como cálculos sobre inflação para estabelecer que reajustes não são aumentos, ou a estratégica mais óbvia de não divulgar os salários pleiteados (a greve da polícia militar na Bahia e no Rio de Janeiro sofreu muito com as críticas com base na comparação da base salarial). Algumas táticas mais fantasmagóricas são aquelas em que os professores federais fingem que são iguais aos professores do ensino básico estadual, seus primos pobres que possuem salários muito inferiores e condições de trabalho muito piores.


O movimento também levantou a bandeira dos “10% do PIB para educação”, elencando o gráfico do site Auditoria Cidadã sobre a lei orçamentária de 2011, que prevê 45% do orçamento para “juros e amortizações” (há certo questionamento sobre a contabilidade da “rolagem da dívida”, ao que o site respondeu afirmando que o governo não fornece dados suficientes para realizar o cálculo, o que só reforça a necessidade de uma auditoria da dívida). O movimento grevista se fortalece ao associar-se à campanha dos 10% e à crítica da expansão universitária desordenada. No entanto, fica claro que esta é uma bandeira genérica, assim como as pequenas pautas locais das instituições com problemas graves de infraestrutura serão dissolvidas diante da pauta universal da reestruturação da carreira. Basta ler os pronunciamentos do Comando Nacional da Greve para perceber qual é a prioridade do movimento.


A greve é certamente uma luta política pelas prioridades de investimento do governo federal, o que a faz ser legítima e justa. A questão é: quais são os critérios que levam ao sucesso ou fracasso de uma greve? Qual é a dinâmica desta modalidade de deliberação política? Vamos abrir um pouco o cenário: o ano de 2012 foi tumultuado por muitas greves. Além das paralisações sazonais de bancários e professores do ensino básico, no começo do ano ocorreram as traumáticas greves das Polícias Militares Estaduais, especialmente no Rio de Janeiro e na Bahia. A paralisação do ensino federal foi menos traumática, devido à natureza do serviço prestado pelos docentes, mas não menos intensa: gradativamente o movimento grevista atingiu cerca de 95% das instituições federais, entre universidades e instituições de educação básica e tecnológica, uma adesão recorde.


A que se deve esta explosão de movimentos grevistas em 2012? Engana-se quem acha que as revoluções e levantes populares ocorrem nos períodos de maior pobreza e crise social. São os momentos de crescimento econômico que acirram os conflitos sociais, pois muito pior do que uma bancarrota generalizada é a “transparência da exploração”, expressão cunhada pelo historiador E. P. Thompson para explicar que, grosso modo, muito pior do que compartilhar a pobreza é continuar pobre enquanto outros enriquecem. É a visível melhoria na situação econômica do Brasil que lança a pólvora das greves.


Nos últimos 10 anos (ou 18 anos, para evitar picuinhas partidárias) o Brasil sofreu um sensível processo de desenvolvimento econômico. Os fatores desta transformação foram muitos, mas vamos deixar por bem citar: (1) a estabilidade monetária com o Real, (2) o crescimento do consumo de commodities brasileiras no mercado exterior (efeito China), e (3) as políticas de distribuição de renda. Estes três fatores geraram um efeito cascata no desenvolvimento do mercado interno brasileiro. O clima de otimismo e euforia, ainda mais impulsionado pela descoberta do Pré-sal e pelo nacionalismo tacanho em volta da Copa do Mundo, é o responsável pelo acirramento das greves. O argumento se cristaliza nos bordões: “se tem dinheiro para deputados/bancos/Copa, tem para educação/saúde/segurança”. Trata-se de reconhecer que o bolo cresceu, mas o grande problema é como reparti-lo.


A educação pública deste país já esteve pior, muito pior. O descaso do governo nunca foi novidade para ninguém. É justamente o fato de que o investimento em educação não acompanha a maré de otimismo econômico que gera uma indignação tão profunda não só em professores, mas na sociedade como um todo. Nas últimas décadas a educação pública cresceu e melhorou muito, em todos os níveis. O problema é que deveria ter melhorado muito mais. A atual situação de euforia econômica revela a transparência do descaso do governo pela educação. No entanto, a pergunta que se deve colocar é: os movimentos grevistas realmente colaboram para compreender e resolver este problema? Ou a questão se apresenta mais sobre quem ganha os melhores e os piores salários do serviço público federal?


A atual paralisação dos docentes federais, pelas limitações próprias do contexto histórico em que ocorre, segue a lógica dos mecanismos de poder do Estado brasileiro, nos quais as únicas demandas efetivas são aquelas exigidas por quem possui influência e moeda de troca para pressionar as instâncias deliberativas. Isto vale tanto para cargos eletivos quanto concursados. Como não há uma base legal e política que regulamente o reajuste salarial periódico de servidores, os aumentos ocorrem conforme o prestígio e influência da categoria pleiteante. O primeiro reajuste é sempre dos cargos dos poderes legislativos, no topo da pirâmide, legislando em causa própria. Em seguida os altos escalões dos poderes Executivo e Judiciário fazem o mesmo, sob a égide da isonomia salarial. Por fim, os funcionários públicos menos abastados entram em greve para conquistar reajustes muito mais humildes, mas sob os mesmos princípios, e nem sempre logram sucesso. Não por acaso a principal plataforma do começo da greve dos docentes federais era a equiparação salarial com a carreira do Ministério de Ciência e Tecnologia. O sucesso de uma greve depende muito mais da influência e do poder da categoria em questão do que da legitimidade da reivindicação.


O Brasil não é (por enquanto) um paraíso neoliberal (para a infelicidade da esquerda resmungona que adoraria ter mais motivos para odiar o mundo). Setores relevantes da educação, saúde e segurança são geridos pelo poder público, embora a grande expansão das últimas décadas tenha ocorrido principalmente no setor privado. E aqui cabe ceder um pouco e reconhecer que o governo do PT ao menos investiu no ensino superior público, expandindo as instituições existentes (ainda que desordenadamente), enquanto que a tendência anterior era de estagnação frente ao crescimento vertiginoso da educação privada. No entanto, a educação não é a grande prioridade federal porque a partilha do bolo do desenvolvimento econômico brasileiro ocorre ao sabor de disputas e quedas de braço entre administradores públicos, servidores e o setor privado na sua eterna bandeira por menos impostos. Não há um debate público sobre soluções razoáveis para se administrar democrática e racionalmente o crescimento econômico do país.


Cargos eletivos possuem a prerrogativa de legislar em causa própria sem enfrentar empecilho maior que resmungos da imprensa. Por outro lado, servidores concursados possuem diferentes gradações de margem de manobra para movimentos reivindicatórios. Algumas categorias obtém sucesso facilmente, outras não. Não são somente diferenças oriundas da hierarquia do trabalho especializado, mas também diferenças entre serviço federal e serviço estadual, ou áreas do serviço público com servidores que, por simples prestígio ou oportunismo, possuem salários que chegam ao dobro ou triplo daqueles que possuem a mesma formação e titularidade. No Brasil há uma democracia instalada por cima de uma lógica de país imperial, cuja capital Brasília funciona como uma corte luxuosa que consome a maioria dos recursos públicos na manutenção da sua própria condição de centro de poder. Os reajustes e os sucessos dos movimentos grevistas têm como único critério a sua proximidade e a sua capacidade de pressionar este centro de poder.


As diferenças entre ensino federal e estadual, por exemplo, vão muito além da discrepância resultante da diferença de cargo e titularidade, pois é a própria capacidade reivindicatória que é muito menor e menos influente. O ensino estadual possui greves sazonais e raramente tem suas reivindicações atendidas. A situação chegou ao cúmulo de o governador Tarso Genro não pagar o piso salarial nacional estabelecido por ele mesmo enquanto ministro. No estado da Bahia, o governador Jacques Wagner – ex-grevista eleito dentro de um partido fundado por grevistas – cortou salários de professores em greve. Todos reivindicando salários muito inferiores aos dos docentes federais, que igualmente estão insatisfeitos. Para reforçar a desigualdade e arbitrariedade, sequer é necessário elencar os muitos outros bons salários de carreira pública disputados pelos concurseiros Brasil afora. A desigualdade no Brasil é flagrante em todos os níveis sociais, no contraste entre a favela e o bairro nobre, mas também no fato de que um assessor parlamentar pode ganhar muitas vezes mais que um pesquisador renomado. A utilização dos recursos públicos para interesses privados é a regra, não a exceção (mesmo quando ocorridos dentro da lei).


Voltemos ao bolo. Ele cresceu; como reparti-lo? A lógica que rege atualmente a isonomia salarial brasileira é a do “ao vencedor, as batatas”, uma simples queda de braço pseudopolítica. Os professores federais têm obtido certo sucesso porque existem condições para tal: eles estão vinculados ao centro de poder, não temem ter seus salários cortados, pois possuem autonomia administrativa. A única resistência que enfrentam é da disputa entre os sindicatos nacionais, de um lado o sindicato grevista ANDES, e do outro o PROIFES, mais aberto às propostas do governo ou simplesmente pelego. Os professores estaduais não possuem nenhuma dessas vantagens. Quando entram em greve, são vítimas das mais torpes retaliações, como cortes de salários, ou até mesmo o cassetete da polícia militar. A arbitrariedade com o dinheiro público se evidencia quando legisladores, juízes e ministros podem utilizar seu vasto poder político para conquistar reajustes salariais regularmente, em porcentagens muito maiores do que aqueles que estão abaixo na cadeia alimentar. Esta lei da selva reflete a ideia de “socialdemocracia meio avacalhada”, termo que exprime muito bem a natureza da vida política brasileira. A lógica de que, quanto mais perto do centro macrocefálico do poder, maior a margem de manobra e a capacidade de impor sues interesses, não tem nada da moderna socialdemocracia, mas é resquício dos hábitos imperiais e coronelistas deste país.


Os países europeus que inventaram a socialdemocracia, que combina economia de mercado com Estado de bem-estar social, também sofreram com greves constantes. No entanto, eles não ficaram imunes às ondas neoliberais dos anos 80 e 90, que acabaram na maior crise financeira da história recente do continente. A questão que se deve colocar é se o Estado de bem-estar social brasileiro sobreviverá se continuar arraigado a vícios antigos responsáveis pela manutenção da nossa histórica desigualdade social. E aqui não quero dizer que os reajustes salariais exigidos pelos docentes federais são altos demais, apenas quero dizer que se devem criar critérios racionais e democráticos para realizar o ajuste salarial de todos os serviços públicos. Isto significa critérios que irão nortear o investimento público e servir de parâmetro para movimentos reivindicatórios. Enquanto este tema for alvo de disputas sazonais entre trabalhadores e governo, não haverá estabilidade no serviço público e ele será vítima fácil de greves constantes ou crises internacionais que iniciam políticas de desmantelamento. O setor privado já reclama dos altos rendimentos do emprego público (basta ver um artigo de 2009 do Valor Econômico que causou uma resposta da presidência do IPEA, artigo que revela como as elites do setor público e privado tentam convencer uma a outra sobre quem é a menos rica).


É um erro acreditar que a democracia é um sistema político natural, como se as pessoas fossem aptas de nascença a lidar com seus direitos e deveres. É preciso aprender em democracia, ensinar em democracia, num longo e infinito processo de autoeducação. E isto não se faz através de banca de negócios nos quais quem paga mais leva o capital político para casa. A deliberação democrática deve envolver critérios racionais e públicos. Se for do interesse das categorias de servidores públicos que os seus direitos não sejam desmantelados, é imperativo que tais direitos sejam isonômicos.


Que critérios adotar? Como dividir o bolo? A questão é tão econômica quanto política. Deve levar em consideração inflação e PIB, mas também a isonomia salarial e a publicidade de todas as informações, num mundo em que cada vez mais o controle da informação significa poder. E é inútil pensar que nossos legisladores farão isso por conta própria, pois eles certamente seriam os maiores prejudicados pela racionalização de reajustes salariais.

Denis Correa

 
Mestre em História pela UFRGS e professor da UFRB.


Fonte: Amálgama

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