PICICA: "O ministro Mangabeira Unger falou, em outra
entrevista recente, que o destino do homem é ser “grande, divino; não é
ser uma criança aprisionada em um paraíso verde”; e que “todas as
pessoas são espíritos que desejam transcender”. Uma fala
verdadeiramente pontifical, em suma. Bem, ministro, os índios
concordariam com o senhor que todas as pessoas são espíritos; talvez
não concordassem com a idéia algo extraordinária de que só os seres
humanos são pessoas, mas esse é um outro problema, fora de sua alçada.
Com certeza, porém, eles não concordariam com a idéia de que todos os
espíritos ou pessoas “desejam transcender”. Essa é uma afirmação que
soaria aos ouvidos deles inquietantemente parecida com aquela que vêm
ouvindo com tanta insistência durante os cinco séculos desde a chegada
dos europeus — a afirmação de que eles são crianças que precisam
curvar-se à mensagem divina da transcendência para se tornarem seres
humanos plenos, a saber, bons cristãos e bons cidadãos (entenda-se, com
muita fé e nenhuma terra). Estou falando, Ministro, da conversão e da
catequese forçadas, às quais se juntaram a sujeição econômica e
política dos povos indígenas; enfim, a história do genocídio americano." EM TEMPO: O texto é uma dica do professor Idelber Avelar; sua postagem é um repúdio à entrevista de Mangabeira Unger no Roda Viva, da TV Cultura-SP. Antes de ser "Ministro Extraordinário para Assuntos Estratégicos" no segundo governo Lula, Mangabeira deixou Harvard para apoiar a candidatura do 'pavio curto' Ciro Gomes. Não deu certo. Por ocasião do escândalo do 'mensalão', pediu publicamente a prisão de Lula. Habilidoso, o sindicalista-presidente agraciou-o com um cargo 'estratégico'; ao Ciro, idem. Data daí as heresias de Mangabeira sobre a Amazônia, um discurso muito conveniente ao neo-desenvolvimentismo que calou o PT do norte do Brasil.
Desenvolvimento econômico e reenvolvimento cosmopolítico:
da necessidade extensiva à suficiência intensiva
Eduardo Viveiros de Castro
da necessidade extensiva à suficiência intensiva
Eduardo Viveiros de Castro
“Quem vier depois que se arranje”
(“velho provérbio brasileiro” em epígrafe a Warren Dean,
A ferro e a fogo: história da destruição da mata atlântica)
A ferro e a fogo: história da destruição da mata atlântica)
Nota do autor:
Este texto canibaliza diferentes escritos, publicados em lugares e
momentos muito distintos. A primeira parte vem de um prefácio ao livro
pioneiro de R. Arnt & S. Schwartzmann, Um artifício orgânico: transição na Amazônia e ambientalismo (1985–1990) (Rio de Janeiro: Rocco, 1992). A terceira e a quarta partes, de um texto introdutório ao Almanaque Socioambiental 2008 (São Paulo: Instituto Socioambiental, 2007), obra que pode ser baixada da rede em http://ppbr.in/TMKcW5.
A segunda parte consiste em uma resposta (também divulgada
originalmente no site do ISA) a uma série de pronunciamentos que o
“Ministro Extraordinário para Assuntos Estratégicos”, Roberto
Mangabeira Unger, achou por bem fazer à midia impressa a respeito da
Amazônia, em meados de 2008. Naquele momento, o Presidente Lula e sua
Chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, manobravam agressivamente pela
aprovação da Medida Provisória 422, também conhecida como “Medida da
Grilagem”, que legalizava com total desfaçatez a apropriação
fradulenta, e quase sempre violenta, das terras públicas na Amazônia
por latifundiários e grandes interesses agronegociais. A ruidosa
aterrissagem de Mangabeira Unger no governo, trazido de Harvard para
vir dar legitimidade “científica” a essa política anti-ambientalista,
foi o insulto final que forçou a Ministra do Meio Ambiente, Marina
Silva, a deixar o cargo e, mais tarde, seu partido. A aprovação da MP
pelo Senado deu-se em julho de 2008. (Veja p.ex. http://ppbr.in/KDz5n4 para um resumo dos fatos, nomes e outros links pertinentes.)
As questões levantadas nessa colagem de textos mantêm, parece-me, sua atualidade e sua urgência. Basta pensar no que está-se passando na Câmara Federal, no momento em que escrevo (22 de maio de 2011), a propósito do Código Florestal. E no que continua a acontecer no (ou melhor, ao) planeta em ritmo cada vez mais acelerado.
Acrescentei um parágrafo final que me leva para um outro lugar, ainda mal-adentrado.
As questões levantadas nessa colagem de textos mantêm, parece-me, sua atualidade e sua urgência. Basta pensar no que está-se passando na Câmara Federal, no momento em que escrevo (22 de maio de 2011), a propósito do Código Florestal. E no que continua a acontecer no (ou melhor, ao) planeta em ritmo cada vez mais acelerado.
Acrescentei um parágrafo final que me leva para um outro lugar, ainda mal-adentrado.
I
Ao tornar-se umas das máscaras que a physis escolheu para ocultar-se a partir do quartel final do século passado, a Amazônia passou também a ser a arena onde se desenrola um drama decisivo: os atores nele envolvidos, conjugando de modo inédito a micro- e a macro-política, disputam o sentido do futuro. Deixando para trás a dialética do Estado e a da Natureza, estas duas totalidades imaginárias entreconstituídas por um confronto de onde sempre estiveram excluída a gente humana e suas miríades de associações com outras gentes, outras forças — pois ela se via ora convenientemente representada no primeiro, ora compulsoriamente assimilada à segunda —, abre-se agora o espaço para uma nova geofilosofia política. Trocando a naturalização da política pela politização da natureza, ligando diretamente a terra à Terra por cima das fronteiras, códigos e outros estriamentos das velhas territorializações estatais, a nova geopolítica, ou melhor, cosmopolítica do ambientalismo recusa ao Estado a guarda do infinito e o privilégio da totalização. E junto com o Estado, é a Natureza — uma certa idéia de Natureza — que deve mudar: deve deixar de exercer sua função tradicional de Supremo Tribunal Ontológico e abrir-se a uma cosmopraxis polívoca, múltipla, e simétrica.
Ao tornar-se umas das máscaras que a physis escolheu para ocultar-se a partir do quartel final do século passado, a Amazônia passou também a ser a arena onde se desenrola um drama decisivo: os atores nele envolvidos, conjugando de modo inédito a micro- e a macro-política, disputam o sentido do futuro. Deixando para trás a dialética do Estado e a da Natureza, estas duas totalidades imaginárias entreconstituídas por um confronto de onde sempre estiveram excluída a gente humana e suas miríades de associações com outras gentes, outras forças — pois ela se via ora convenientemente representada no primeiro, ora compulsoriamente assimilada à segunda —, abre-se agora o espaço para uma nova geofilosofia política. Trocando a naturalização da política pela politização da natureza, ligando diretamente a terra à Terra por cima das fronteiras, códigos e outros estriamentos das velhas territorializações estatais, a nova geopolítica, ou melhor, cosmopolítica do ambientalismo recusa ao Estado a guarda do infinito e o privilégio da totalização. E junto com o Estado, é a Natureza — uma certa idéia de Natureza — que deve mudar: deve deixar de exercer sua função tradicional de Supremo Tribunal Ontológico e abrir-se a uma cosmopraxis polívoca, múltipla, e simétrica.
Podem-se ver as coisas, é claro,
pela outra ponta, enxergando o antigo no novo. Cosmologia do
capitalismo tardio, ressacralização da história e da geografia que
fecha o ciclo aberto com a expansão quinhentista do Ocidente,
reterritorialização sobre toda a superfície do globo de um movimento
secular de desterritorialização local, nacional e continental, o
discurso ambientalista seria, nesse caso, a vingança final da
Totalidade. Ele anunciaria o advento de um medievo pós-iluminista: o
discurso da finitude e da transcendência, deixando o espaço–tempo das
relações entre o humano e o divino, seria agora articulado no confronto
entre a sociedade e a natureza. A selva amazônica ocuparia, hoje não
mais apenas alegoricamente, o lugar da catedral gótica: a copa das
árvores se torna o “dossel sagrado”, a Hiléia passa a ocupar o trono do
Logos. E a Sociedade, que até não muito tempo atrás era a matriz e o
modelo de toda ordem e de qualquer todo, vê-se agora como desordem e
causa de desordem, como húbris suicida que só poderá se redimir se
aceitar sua subordinação a uma totalidade e a uma ordem que a englobem e
determinem.
Decerto, pode-se tomar o
movimento ambientalista como uma espécie de repetição do cristianismo, a
minar e ao mesmo tempo reinvestir, em nome de totalidades mais totais e
de universais mais concretos, as abstrações imperiais das Romas
modernas — com os brasileiros, aliás, no equívoco papel de bárbaros a
sermos convertidos pelos missionários desta neo-religião da classe
média (um replay naturista da velha ética protestante);
bárbaros, ainda por cima, depositários do Graal amazônico e fiadores da
salvação planetária. Decerto; é sempre possível desativar
algo, tomá-lo pelo lado morto que tudo que é vivo não pode deixar de
ter. Mas o ambientalismo pode também ser visto como um discurso
radicalmente novo, que recusa algumas partilhas fundadoras da Razão
ocidental (com licença do pleonasmo). Em particular, isso que chamamos,
quase sempre pejorativamente, de “ambientalismo” ou “ecologismo” é um
discurso que rejeita a idéia de que o Homo sapiens seja a
espécie eleita do universo — por outorga divina ou conquista histórica
—, titular exclusiva da condição de Sujeito e agente frente a uma
natureza vista como Objeto e paciente, como alvo inerte de uma praxis
prometeica. Ele problematiza a categoria da Produção enquanto último
avatar da transcendência — a idéia de que o humano produz e se produz
contra o não-humano, em um movimento infinito de espiritualização que
é, primeiro que tudo, a negação de uma matéria primeira. Em lugar
disto, ele propõe uma internalização da natureza, uma nova imanência e
um novo materialismo — a convicção de que a natureza não pode ser o
nome do que está “lá fora”, pois não há fora, nem dentro: o fora é o
nosso centro, e o cosmos é um denso tecido de dentros. Somos natureza,
ou não seremos.
Se a entendemos assim, como
idéia do real, então “natureza” designa o limite absoluto da história.
Esta é a paisagem de nossa época: o planeta, da estratosfera ao mais
profundo subsolo, está saturado do humano, de seus signos-sintomas como
de seus produtos-dejetos; a cultura se tornou coextensiva à natureza,
ecologia e antropologia convergiram para um foco único. Discurso do
fechamento da fronteira mundial, o ambientalismo impõe uma revisão
drástica dos paradigmas do progresso e do desenvolvimento indefinidos,
que continuam guiando nossas formas econômicas e projetos ideológicos.
Nossa concepção linear e cumulativa de história — congenitamente cega à
estrutura, às regulações sistêmicas, às causalidades circulares —
demorou demais a acordar para a constatação de que a miséria, a fome e a
injustiça não são o fruto do caráter ainda parcial, incompleto, da
marcha do progresso, mas seus “sub-produtos” necessários, que aumentam à
medida que tal marcha prossegue na mesma direção. (Quanto mais se
aumenta a “produção de alimentos”, mais gente passa fome na Terra.) O
terceiro mundo já é, porque sempre foi, parte do primeiro mundo, e está
em toda parte. Atravessamos o século XX com a cabeça do século XIX; o
choque do futuro promete ser duro para todos.
II
Ao contrário do que afirmou, em entrevista recente, o ministro extraordinário de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger, a Amazônia não é uma “coleção de árvores”.[1] Dois pontos para seu esclarecimento, senhor ministro.
Primeiro, coleções de árvores só
existem nos hortos botânicos, parques públicos ou jardins de
milionários. A Amazônia é um ecossistema, uma floresta composta de
árvores e de uma infinidade de outras espécies vivas — inclusive seres
humanos, que lá estão há pelo menos quinze mil anos. Essa floresta,
mesmo tomada em seu estrito aspecto arbóreo, é um gigantesco
agenciamento rizomático, ou seja, o exato oposto de uma coleção
descontínua de indivíduos independentes. (Todo ecossistema é um rizoma,
no sentido lógico-metafísico que o termo recebeu no Mil platôs.)
Recordemos que as árvores da região possuem, em geral, raízes pouco
profundas, sustentando-se por meio de um sistema radicular superficial
extensivamente interconectado e por sapopemas (raízes tabulares
externas), e alimentando-se, em boa medida, de sua própria matéria
decomposta pela ação simbiótica de bactérias, fungos e animais — e da
chuva, que é gerada pela evapotranspiração da mesma floresta. Antes que
apenas crescendo ou criando-se no solo, essa multiplicidade viva
sustenta ou cria seu próprio solo: uma floresta tautegórica ou
autopositiva.
Segundo, a Amazônia jamais foi
um vazio humano antes da invasão européia; ao contrário, seu nadir
demográfico foi alcançado após a invasão, em resultado das epidemias,
dos massacres metódicos, dos descimentos forçados das populações
nativas para fixação em missões e feitorias, e outras externalidades do
Destino Manifesto do Ocidente. Antes disso, as populações indígenas
haviam encontrado, ao longo de milênios de co-adaptação com o
ecossistema amazônico (ou eco-sistemas, pois a Amazônia não é uma só,
mas muitas), soluções de “sustentabilidade” incomparavelmente
superiores aos métodos modernos e estúpidos de desmatamento com
correntões, tratores, motosserras e desfolhantes, cujo objetivo é
sempre o de criar um espaço estriável, um ente agronômico abstrato,
próprio para a criação de gado ou a produção de vegetais
agroindustriais, ambos, gado e monoculturas, absolutamente dependentes
de insumos sintéticos (hormônios e antibióticos, fertilizantes e
agrotóxicos).
Uma enorme parte da floresta
amazônica sempre foi povoada, e não é há muitos séculos, milênios
talvez, floresta “primária”. A maioria das espécies úteis da Amazônia
proliferou diferencialmente em função das técnicas indígenas de
aproveitamento do território e de seus recursos: aquilo que tiramos da
floresta antes de tirar a floresta — a castanha, o açaí, a pupunha, o
cacau, o babaçu — foi posto lá pelos índios, foi naturalizado
por eles. A floresta, enfim, não é virgem. Mas note bem, Ministro, do
fato da floresta não ser mais virgem não se segue que seja legítimo
estuprá-la. (Os paralelos são simples de se imaginar, suponho.) Pois é
exatamente isso que se está fazendo.
A Amazônia está sofrendo um
violento processo de agressão — a Amazônia inteira, não a tal coleção
de árvores; toda a Amazônia, suas populações humanas tradicionais e
suas incontáveis populações não-humanas. Um novo modelo de
desenvolvimento, como tem sido reiteradamente pregado para o Brasil, um
que não seja a imitação simplória das receitas norte-européias,
precisa ser um modelo que ponha a floresta no centro da equação — pois
chegou-se a um momento da história do planeta onde a vida é o valor em
crise — a vida humana e não-humana. Não é mais possível fazer política
sem levar em consideração o quadro último em que toda política real é
feita, o quadro da imanência terrestre.
Usei a palavra imanência
deliberadamente aqui. O ministro Mangabeira Unger falou, em outra
entrevista recente, que o destino do homem é ser “grande, divino; não é
ser uma criança aprisionada em um paraíso verde”; e que “todas as
pessoas são espíritos que desejam transcender”. Uma fala
verdadeiramente pontifical, em suma. Bem, ministro, os índios
concordariam com o senhor que todas as pessoas são espíritos; talvez
não concordassem com a idéia algo extraordinária de que só os seres
humanos são pessoas, mas esse é um outro problema, fora de sua alçada.
Com certeza, porém, eles não concordariam com a idéia de que todos os
espíritos ou pessoas “desejam transcender”. Essa é uma afirmação que
soaria aos ouvidos deles inquietantemente parecida com aquela que vêm
ouvindo com tanta insistência durante os cinco séculos desde a chegada
dos europeus — a afirmação de que eles são crianças que precisam
curvar-se à mensagem divina da transcendência para se tornarem seres
humanos plenos, a saber, bons cristãos e bons cidadãos (entenda-se, com
muita fé e nenhuma terra). Estou falando, Ministro, da conversão e da
catequese forçadas, às quais se juntaram a sujeição econômica e
política dos povos indígenas; enfim, a história do genocídio americano.
Os índios não estão
“aprisionados em um paraíso verde”, ministro. A Amazônia não é um
paraíso dado por Deus; ao contrário, é uma laboriosa construção
co-adaptativa, um sistema em equilíbrio dinâmico onde entraram a
engenhosidade técnica humana (indígena) e as infinitas engenhosidades
naturais das espécies que ocupam a região. E os índios não estão
aprisionados lá. A idéia de que o paraíso é, no fundo, uma prisão para o
homem tem uma longa história no pensamento ocidental. Mas são as duas
idéias que pertencem ao Velho Mundo, a de paraíso e a de prisão. Os
índios não têm nada com isso. Tire-os da prisão conceitual em que o
senhor os colocou, ministro. E deixemos o paraíso para quem precisa de
paraíso.
Em ainda outro texto, Mangabeira
Unger defendeu a tese de que as populações indígenas precisam ser
“liberadas” de sua abjeção antropológica. A tese, com o devido respeito
ministerial, beira a insolência metafísica. Os índios que sofrem de
depressão, suicídio, alcoolismo, como lamenta o ministro, são
justamente os índios que não dispõem de terras — os Guarani do MS, por
exemplo —, não os índios da Amazônia como os Yanomami, povo forte e
feliz, justamente por gozar de um território à medida de suas
necessidades vitais e espirituais. As áreas indígenas da Amazônia são as
áreas menos desmatadas do país, são elas que detêm a devastação nas
fronteiras; e elas são peça essencial no processo de regularização ou
estabilização jurídica da situação fundiária caótica que é a Amazônia, o
paraíso da grilagem, da pistolagem, do narcotráfico, do contrabando e
do subsídio. E o que nos propõe o Ministro? Um plano nacional de
regularização fundiária que é uma repetição do velho e famigerado
princípio do Uti possidetis: a legalização da grilagem já
estabelecida. Os espertos e os bandidos, mais uma vez, levam a melhor.
Nunca como antes na história deste país foi tão como sempre na história
deste país.
Naturalmente, os índios sofrem
com vários problemas, muitos deles causados pela incúria dos órgaos e
agências de estado que deveriam fazer respeitar seus direitos
constitucionais, e é preciso “liberá-los” da incompetência ou da
ganância do Soberano. Mas também não se pode negar que os índios
conhecem outras dificuldades de adaptação às formas socioeconômicas (e
espirituais) da sociedade nacional. Não porque lhes faltem
oportunidades — ainda que estas lhes faltem, em muitíssimos casos—, mas
porque suas culturas e sociedades escolheram desde muito cedo na
história um caminho civilizacional radicalmente distinto do nosso. Esse
caminho é o que se poderia chamar de uma via da imanência em lugar de uma via da transcendência.
As culturas indígenas não estão
fundadas no princípio de que a essência do ser humano é o desejo e a
necessidade, a falta e a ânsia. Seu modo de vida, seu “sistema” de
vida, no sentido mais radical possível, é outro. Os índios são os
senhores da imanência: o que nós não podemos senão pensar, eles vivem. E
o que eles pensam, nós não somos mais capazes sequer de imaginar. Que
transcendência exatamente temos nós, os orgulhosos neo-brasileiros,
supostos representantes da Razão e da Modernidade, a oferecer a eles? É
mais fácil os índios virem nos libertarem que nós irmos libertar a
eles. Pelo menos em espírito. Transcenda sua ânsia de transcendência,
Ministro.
III
O Brasil hoje se embala em grandiosos sonhos de crescimento. Na contramão do milenarismo disseminado no país — “chegou a nossa vez!” (a vez de quê, exatamente? de exploramos algum país mais pobre que o nosso?) —, estou convicto de que é urgente, não “parar para pensar”, mas pensar para não parar; é urgente começar a pensar bem para não parar de vez. É preciso aprender a decrescer para não morrer. O Brasil é grande, mas o mundo é pequeno. A Terra não vai nada bem, neste começo de século. Há hoje uma insustentabilidade aguda dos padrões globais de geração, distribuição e consumo da energia necessária à vida humana. Nosso país é um dos poucos que ainda têm viabilidade do ponto de vista de sua base de recursos. O Brasil ostenta uma das populações histórica e culturalmente mais diversificadas do mundo: 220 povos indígenas, uma imensidão de descendentes de africanos, de imigrantes europeus e asiáticos, de árabes, de judeus; gentes rurais e urbanas das mais diferentes origens étnicas e culturais, habitando uma variedade de formações naturais que, por sua vez, abrigam a mais rica biodiversidade do planeta. Sociodiversidade e biodiversidade deveriam ser nossos principais trunfos em um mundo em acelerado processo de globalização. Mas eis-nos aqui, ainda e sempre, teimando em serrar o galho em que estamos sentados, com uma política de comércio exterior que vem aplicando um modelo de desenvolvimento ambientalmente suicida, economicamente retrógrado, socialmente empobrecedor e culturalmente alienante. devastamos mais da metade de nosso país acreditando que era preciso deixar a natureza para entrar na história; pois eis agora que esta última, com sua costumeira predileção pela ironia, exige-nos como passaporte justamente a natureza.
IV
A diversidade das formas de vida na Terra é consubstancial à vida enquanto forma da matéria. Essa diversidade é o movimento mesmo da vida enquanto informação, tomada de forma que interioriza a diferença – as variações de potencial existentes em um universo constituído pela distribuição heterogênea de matéria/energia – para produzir mais diferença, isto é, mais informação. A vida, nesse sentido, é uma exponenciação: um redobramento ou multiplicação da diferença por si mesma. Isso se aplica igualmente à vida humana. A diversidade de modos de vida humanos é uma diversidade dos modos de nos relacionarmos com a vida em geral, e com as inumeráveis formas singulares de vida que ocupam (informam) todos os nichos possíveis desse mundo que conhecemos. A diversidade humana, social ou cultural, é uma manifestação da diversidade ambiental, ou natural – é a ela que nos constitui como uma forma singular da vida, nosso modo próprio de interiorizar a diversidade “externa” (ambiental) e assim reproduzi-la. Por isso a presente crise ambiental é, para os humanos, imediatamente também crise cultural, crise de diversidade, ameaça à vida humana.
A crise se instala quando se
perde de vista o caráter relativo, reversível e recursivo da distinção
entre ambiente e sociedade. Paul Valéry constatava sombrio, pouco
depois da Primeira Guerra Mundial, que “nós, civilizações [européias],
sabemos agora que somos mortais”. Neste começo crepuscular do presente
século, passamos a saber que, além de mortais, “nós, civilizações”,
somos mortíferas, e mortíferas não apenas para nós, mas para um número
incalculável de espécies vivas. Nós, humanos modernos, filhos das
civilizações mortais de Valéry, parece que ainda não desesquecemos que
vivemos da vida, que pertencemos ao mundo e não o contrário. Já
soubemos disso; algumas civilizações ainda sabem disso; muitas outras,
várias das quais matamos, sabiam disso. Mas hoje, começa a ficar
urgentemente claro até para “nós mesmos” que é do supremo e urgente
interesse da espécie humana abandonar uma perspectiva antropocêntrica.
Se a exigência parece paradoxal, é porque ela o é; tal é nossa presente
condição. Mas nem todo paradoxo implica uma impossibilidade; os rumos
que nossa civilização tomou nada têm de necessário, do ponto de vista da
espécie. É possível mudar de rumo, ainda que isso signifique mudar
muito daquilo que muitos considerariam como a essência mesma da nossa
civilização. Nosso curioso modo de dizer “nós”, por exemplo,
excluindo-nos dos outros, isto é, do “ambiente”.
O que chamamos ambiente é uma
sociedade de sociedades, como o que chamamos sociedade é um ambiente de
ambientes. O que é “ambiente” para uma dada sociedade será “sociedade”
para um outro ambiente, e assim por diante. Ecologia é sociologia, e
reciprocamente. Como dizia o grande sociólogo Gabriel Tarde, “toda
coisa é uma sociedade, todo fenômeno é um fato social”. Toda
diversidade é ao mesmo tempo um fato social e um fato ambiental;
impossível separá-los sem que não nos despenhemos no abismo assim
aberto, ao destruirmos nossas próprias condições de existência.
A diversidade é, portanto, um
valor superior para a vida. A vida vive da diferença; toda vez que uma
diferença se anula, há morte. “Existir é diferir”, continuava Tarde; “é
a diversidade, não a unidade, que está no coração das coisas”. Dessa
forma, é a própria idéia de valor, o valor de todo valor, por assim
dizer – o coração da realidade –, que supõe e afirma a diversidade.
É verdade que a morte de uns é a
vida de outros e que, neste sentido, as diferenças que formam a
condição irredutível do mundo jamais se anulam realmente, apenas mudam
de lugar (o “princípio de conservação da energia”). Mas nem todo lugar é
igualmente bom para nós, humanos. Nem todo lugar tem o mesmo valor.
(Ecologia é isso: avaliação do lugar). Diversidade socioambiental é a
condição de uma vida rica, uma vida capaz de articular o maior número
possível de diferenças significativas. Vida, valor e sentido,
finalmente, são os três nomes, ou efeitos, da diferença.
Falar em diversidade
socioambiental não é fazer uma constatação, mas um chamado à luta. Não
se trata de celebrar ou lamentar uma diversidade passada, residualmente
mantida ou irrecuperavelmente perdida – uma diferença diferenciada,
estática, sedimentada em identidades separadas e prontas para consumo.
Sabemos como a diversidade socioambiental, tomada como mera variedade
no mundo, pode ser usada para substituir as verdadeiras diferenças por
diferenças factícias, por distinções narcisistas que repetem ao infinito
a morna identidade dos consumidores, tanto mais parecidos entre si
quanto mais diferentes se imaginam.
Mas a bandeira da diversidade
real aponta para o futuro, para uma diferença diferenciante, um devir
onde não é apenas o plural (a variedade sob o comando de uma unidade
superior), mas o múltiplo (a variação complexa que não se deixa
totalizar por uma transcendência) que está em jogo. A diversidade
socioambiental é o que se quer produzir, promover, favorecer. Não é uma
questão de preservação, mas de perseverança. Não é um problema de
controle ou de progresso tecnológico, mas de auto-determinação
política. É um problema, em suma, de mudar de vida, porque em outro e
muito mais grave sentido, vida, só há uma. Mudar de vida – mudar de
modo de vida; mudar de “sistema”. O capitalismo é um sistema
político-religioso cujo princípio consiste em tirar das pessoas o que
elas têm e fazê-las desejar o que não têm, sempre. Outro nome desse
princípio é “desenvolvimento econômico”.
Os economistas são os teólogos
da contemporaneidade. Não por acaso Marx falava nas sutilezas
metafisicas e nas argúcias teológicas envolvidas no conceito de
mercadoria. Mas justamente, não podemos mais suportar mais essa teologia
do desenvolvimento, a equação entre desenvolvimento e crescimento. O
mundo dos economistas recomeca a prestar atenção às teses de N.
Georgescu-Roegen sobre o decrescimento, os custos termodinâmicos da
economia, e à idéia de que existe um crescimento deseconômico, que ocorre quando os aumentos na produção custam mais em recursos e bem-estar que os “bens” produzidos.
A noção tão louvada de
“desenvolvimento sustentável” — não se pode negar as boas intenções de
quase todos que a formularam e defendem — é, no fundo, apenas um modo
de tornar sustentável a noção de desenvolvimento, a qual já deveria ter
ido para a usina de reciclagem das idéias.[2] Ela é uma contradição em termos. Não existe desenvolvimento capitalista
sustentável; e, salvo engano, a imensa maioria dos defensores do
desenvolvimento sustentável não imagina uma alternativa ao capitalismo.
Por que não o fazem, esta é uma outra e muito mais vasta questão. Mas
de qualquer forma, em lugar de enredar-se nas aporias do
desenvolvimento sustentável, penso que seria mais interessante
começarmos a desenvolver (se posso usar a palavra) um conceito de suficiência antropológica.
Não se trata aqui de auto-suficiência, visto que a vida é diferença,
relação com a alteridade, abertura para o exterior em vista da
interiorização perpétua, sempre inacabada, desse exterior (o fora nos
mantém, somos o fora, diferimos de nós mesmos a cada instante). Mas se
trata sim de auto-determinação, de capacidade de determinar para si
mesmo, como projeto político, uma vida que seja boa o bastante.[3]
O desenvolvimento é
sempre suposto ser uma necessidade antropológica, exatamente porque ele
supõe uma antropologia da necessidade. Estamos aqui em plena teologia
da falta e da queda, da insaciabilidade infinita do desejo humano
perante os meios materiais finitos de satisfazê-los. Este é o coração da
“racionalidade” ocidental, como tão bem mostrou Marshall Sahlins;
esta, na verdade, é a origem de nossa religião do “desenvolvimento” (a
economia do Gênesis é a gênese da Economia, trocadilha
Sahlins). Mas essa concepção econômico-teológica da necessidade é, em
todos os sentidos, desnecessária. Baste-nos o objetivo da suficiência.
Contra a teologia da necessidade, uma pragmática da suficiência. Contra
a aceleração do crescimento, a aceleração das transferências de
riqueza, ou circulação livre das diferenças; contra a teoria
economicista do desenvolvimento necessário, a cosmo-pragmática da ação
suficiente: a improdução como meta, a involução intensiva como
projeto coletivo de vida. Contra o mundo do “tudo é necessário, nada é
suficiente”, e a favor de um mundo onde “muito pouco é necessário,
quase tudo é suficiente”. Quem sabe assim tenhamos um mundo a deixar
para nossos filhos.
Concluo com uma nota fantasista,
e pessimista. Imaginem um daqueles filmes B de ficção científica em
que a Terra é invadida por uma raça de alienígenas, que se fazem passar
por humanos para dominar o planeta e utilizar seus recursos, porque
seu mundo de origem já se esgotou. Em geral, nesses filmes os
alienígenas se alimentam dos próprios humanos: de seu sangue, sua
energia mental, algo assim. Agora, imaginem que essa história já
aconteceu. Imaginem que a raça alienígena seja, na verdade, nós mesmos.
Fomos invadidos por uma raça disfarçada de humanos, e descobrimos que
eles ganharam: nós somos eles. Ou haveria talvez duas espécies de
humanos? Uma alienígena e outra indígena? Talvez seja toda a espécie,
por inteiro, que estaria dividida em dois, o alienígena coabitando com o
indígena dentro do mesmo corpo: um ligeiro desajuste de sensibilidade
nos fez perceber essa auto-colonização. (Ou quem sabe o invasor é a
alma, o nativo o corpo. Origem extraterrestre da alma: já sabemos que a
linguagem, pelo menos, é um vírus do espaço exterior.) Seríamos,
assim, todos indígenas, índios invadidos pelos europeus; todos
nós, inclusive, é claro, os europeus (eles foram um dos primeiros
povos indígenas a serem invadidos). Uma perfeita duplicação em
intensão, fim das partições em extensão: os invasores são os invadidos,
os colonizados são os colonizadores. Acordamos para um pesadelo
incompreensível.
Hora de reler Oswald de Andrade. O homem nu compreenderá.
[1] Ver a nota
introdutória. R. Mangabeira Unger deixou-se levar por um arroubo de
contrafactualização retórica, dizendo que a Amazônia era “mais que uma
coleção de árvores; há gente lá”. Gente que precisa de Desenvolvimento
trazido pelo Estado, é claro. Digamos então que a Amazônia, para
Mangabeira, é sim uma coleção de árvores, mais uma coleção de gente, ambas as coleções essas compostas de súditos do Soberano. Em lugar de um coletivo reunindo humanos e não-humanos, duas coleções separadasde indivíduos (árvores, pessoas) eles mesmos separados, coletados todos pelo Coletor Universal. [Voltar ao texto]
[2] Seria preciso um dia ensaiar um diálogo entre as idéias de Georgescu-Roegen e as de Georges Bataille sobre a “economia generalizada”. O princípio do dispêndio anti-produtivo de Bataille pode ser criativamente interpretado no quadro de um projeto que rejeita um “crescimento econômico” tecnicamente possível mas antropologicamente absurdo. [Voltar ao texto]
[3]
Estou aludindo aqui ao célebre e genial conceito de Donald Winnicott, o
da “good enough mother”, a mulher que seja “boa mãe o bastante” para
criar um filho suficientemente normal, que é tudo o que é preciso — que é mesmo o melhor que qualquer um pode ser. [Voltar ao texto][2] Seria preciso um dia ensaiar um diálogo entre as idéias de Georgescu-Roegen e as de Georges Bataille sobre a “economia generalizada”. O princípio do dispêndio anti-produtivo de Bataille pode ser criativamente interpretado no quadro de um projeto que rejeita um “crescimento econômico” tecnicamente possível mas antropologicamente absurdo. [Voltar ao texto]
Fonte: Sopro - planfleto político-cultural
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