PICICA: "Apesar do reconhecimento da importância de se fortalecerem os transportes coletivos, não há qualquer sinalização no sentido daquilo que o próprio bisneto de Henri Ford já reconheceu: é insustentável a expectativa de que a base da mobilidade contemporânea seja o automóvel individual. Por mais que se mude o combustível e mesmo com o automóvel elétrico, o uso de ferro, plástico, vidro e borracha, para produzir anualmente 70 milhões de carros, como ocorre hoje, é incompatível com algo que possa se assemelhar ao título do documento, “o futuro que queremos”."
"Passar de quatro milhões para 6,3 milhões de automóveis produzidos anualmente, investir 700 bilhões de dólares em combustíveis fósseis e outros 250 bilhões em estradas, isso vai fazer certamente com que a economia brasileira cresça: mas será que é a melhor forma de responder às necessidades mais importantes de sua população?", pergunta o professor da USP.
Confira a entrevista.
“O conteúdo do documento final é especialmente preocupante, pois reflete a resistência governamental em reconhecer que não é possível manter universalmente o pé no acelerador do crescimento econômico (ainda que sob ares verdejantes) sem comprometer ainda mais a capacidade de os ecossistemas prestarem os serviços dos quais todos dependemos”, admiteRicardo Abramovay em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Segundo ele, “o exemplo mais emblemático está no item referente à crise alimentar. O documento reconhece, com razão, a existência inadmissível da fome e a necessidade urgente de suprimi-la. Reconhece ainda que há recursos para isso. Mas em nenhum momento o documento diz que o sobrepeso e a obesidade, hoje, atingem mais gente do que a própria fome. Não o faz porque isso exigiria recolocar o grande desafio do sistema alimentar mundial que não é simplesmente o de produzir mais alimentos e sim vincular as políticas agrícolas às reais necessidades da saúde pública”, conta.
Ricardo Abramovay (foto ao lado) é professor titular do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo FEA/USP, pesquisador do CNPq e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp. Ele é autor de Muito Além da Economia Verde (São Paulo: Planeta Sustentável/Abril, 2012).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Numa frase, o que foi a Rio+20, em sua opinião?
Ricardo Abramovay – Uma importante mobilização social, com diálogos significativos entre atores diversos, mas incapaz de fazer com que os governos atenuem a defesa dos interesses constituídos nos quais se apoiam e que explicam o uso predatório que se faz hoje dos recursos ecossistêmicos.
IHU On-Line – Como avalia o papel desempenhado pelo Brasil na Rio+20, enquanto liderança global, a partir das suas expectativas?
Ricardo Abramovay – O Brasil reafirmou trunfos reais (referentes à sua matriz energética e ao declínio do desmatamento), mas não soube transformar estas conquistas em base para exercer uma real liderança em direção ao desenvolvimento sustentável. A solução para o documento final (cortar os pontos que estavam entre parênteses, ou seja, eliminar qualquer polêmica) mostra a imensa dificuldade em que se encontra a governança global contemporânea.
IHU On-Line – Manteve-se no evento a ideia de que temas ambientais são formas usadas para impor barreiras comerciais não tarifárias?
Ricardo Abramovay – Sim e este é um dos aspectos em que o Brasil poderia ter exercido liderança global de forma construtiva. É verdade que, da mesma forma que em outros países da América Latina e da África, as exportações de commodities têm um peso fundamental (e crescente) na economia brasileira. Se a opção é por não renunciar às oportunidades que estes produtos representam (o que é discutível, claro), então, no mínimo, seria fundamental uma firme declaração no sentido de que o sistema econômico mundial, hoje, não paga os custos ambientais desta exploração. Tais custos devem ser calculados e incorporados ao sistema de preços ou traduzidos em restrições, ali onde esta incorporação não for possível. Várias organizações empresariais já estão reivindicando isso. O estudo apresentado pela KPMG no final de 2011 mostra que, de cada dólar produzido na economia global, 41 centavos correspondem a custos ambientais não pagos, considerando apenas três fatores: mudanças climáticas, água e lixo. Várias organizações empresariais já perceberam que esta pode ser uma vantagem concorrencial, mas não é uma vantagem competitiva benéfica para os países que detêm estes recursos. O Instituto Ethos fez uma firme declaração nesse sentido. No encontro que ocorreu no âmbito do Humanidade 2012, no Forte de Copacabana, organizado pela Fiesp e pela Firjan, Ana Toni do Greenpeace, conclamou o setor privado brasileiro a apoiar a ideia de desmatamento zero e não houve nenhuma manifestação de que isso seria um absurdo ou de que isso travaria o crescimento do país por parte dos empresários ali presentes. Ou seja, nivelar o comércio internacional por cima (associando-o a cláusulas socioambientais que impeçam trabalho escravo, infantil e a degradação dos ecossistemas) é vantajoso sob o ângulo competitivo. O suposto temor de que o meio ambiente seja usado como barreira não tarifária exprime o peso dos interesses ligados ao que há de mais atrasado em setores e em países dependentes de exportações que se apoiam na exploração predatória de recursos ecossistêmicos.
IHU On-Line – Em que medida os grandes problemas socioambientais do século XXI (e suas possíveis soluções) foram contemplados nas discussões da Rio+20?
Ricardo Abramovay – Os dois maiores problemas socioambientais contemporâneos estão ausentes do documento final, embora estejam nos documentos que diversas agências das Nações Unidas (e não só o PNUMA), que prepararam desde 2011, em estudos das grandes consultorias globais (além do já citado da KPMG, a McKinsey e a PwC, também produziram estudos importantes) e em pesquisas feitas por grandes ONGs globais (WWF, Greenpeace, Global Footprint Network, por exemplo). O primeiro refere-se aos limites. É chocante que as palavras limites e fronteiras sequer apareçam no documento final da Rio+20. Ou seja, o ponto de partida de qualquer reflexão consistente sobre o mundo contemporâneo, o fato óbvio de que há fronteiras ecossistêmicas que já foram ultrapassadas, o que ameaça a vida social, simplesmente não está no texto. E, no entanto, o setor privado, as Nações Unidas e as grandes ONGs globais convergem no reconhecimento do perigo que o desrespeito a estes limites representa para as sociedades humanas. É compreensível que Ban-Ki Moon tenha expresso sua decepção (voltando atrás, logo após): não poderia ser maior o contraste entre o documento final e o texto que os experts convocados por ele produziram, no início de 2012 para a Rio+20. Não se trata apenas de linguagem, que é muito mais fria, é verdade, num texto a ser assinado por quase 200 países do que num trabalho de um grupo de consultores: trata-se de conteúdo. E o conteúdo do documento final é especialmente preocupante, pois reflete a resistência governamental em reconhecer que não é possível manter universalmente o pé no acelerador do crescimento econômico (ainda que sob ares verdejantes) sem comprometer ainda mais a capacidade de os ecossistemas prestarem os serviços dos quais todos dependemos.
O segundo problema socioambiental solenemente ignorado no documento é a desigualdade. É verdade que o termo “equitativo” aparece no documento muitas vezes e que há, ao menos, sete manifestações para que se reduzam as desigualdades. Mas tudo se passa como se a redução da desigualdade consistisse apenas em promover a emancipação social dos que se encontram na base da pirâmide, sem que, em nenhum momento, se faça menção ao poder sobre o uso dos recursos daqueles que, em todo o mundo e não só nos países desenvolvidos, respondem pela maior parte da pressão sobre os ecossistemas. O desafio da nossa geração não é apenas o fato de que hoje emitimos sete toneladas de gases de efeito estufa per capita (num total de quase 50 gigatoneladas, globalmente) e que temos que baixar este total para 2 toneladas em 2050 (num total de 20 gigatoneladas, quando o mundo tiver entre 9 e 10 bilhões de habitantes). O desafio é que, hoje, o consumo norte-americano, em média, corresponde à emissão de 20 toneladas per capita e o do indiano a menos de duas. Por mais que a inovação tecnológica avance (e tem que avançar muito, é claro) com este nível de desigualdade, ela, por si só, não dá conta do recado.
IHU On-Line – O debate sobre a redução do consumo e do crescimento, para além das inovações tecnológicas, foi contemplado na Conferência?
Ricardo Abramovay – Não. O exemplo mais emblemático está no item referente à crise alimentar. O documento reconhece, com razão, a existência inadmissível da fome e a necessidade urgente de suprimi-la. Reconhece ainda que há recursos para isso. Mas em nenhum momento o documento diz que o sobrepeso e a obesidade, hoje, atingem mais gente do que a própria fome. Não o faz porque isso exigiria recolocar o grande desafio do sistema alimentar mundial que não é simplesmente o de produzir mais alimentos e sim vincular as políticas agrícolas às reais necessidades da saúde pública.
O outro exemplo é o dos transportes e das cidades sustentáveis. Apesar do reconhecimento da importância de se fortalecerem os transportes coletivos, não há qualquer sinalização no sentido daquilo que o próprio bisneto de Henri Ford já reconheceu: é insustentável a expectativa de que a base da mobilidade contemporânea seja o automóvel individual. Por mais que se mude o combustível e mesmo com o automóvel elétrico, o uso de ferro, plástico, vidro e borracha, para produzir anualmente 70 milhões de carros, como ocorre hoje, é incompatível com algo que possa se assemelhar ao título do documento, “o futuro que queremos”.
IHU On-Line – Quem foram os grandes atores, os protagonistas da Rio+20?
Ricardo Abramovay – Empresas, organizações empresariais e, ao mesmo tempo, organizações não governamentais globais em diálogo com empresas, que acabaram propiciando a formulação de um amplo conjunto de propostas. Na verdade, existe uma aproximação entre estes campos sociais que em 1992 praticamente não tinham diálogo. Mas há duas ressalvas importantes. Em primeiro lugar, neste diálogo nenhuma das partes se descaracteriza: as empresas continuam tendo como objetivo central seus ganhos privados e as ONGs continuam sendo veículos de mobilização social. Mas há um enriquecimento mútuo, uma abertura a horizontes novos nestes contatos e, por aí, chances de mudanças sociais cujo alcance não está dado de antemão.
A segunda ressalva é que não se trata de propor a supressão ou o amesquinhamento do papel dos governos. Pelo contrário, por mais que haja empresas voltadas a novas formas de produção e até de consumo, são os governos que constituem os legítimos representantes da sociedade e cabe a eles a orientação estratégica deste processo. Nosso grande problema é que a ótica e o tempo dos governos parece ser ainda mais curto e mais limitado dos que os de muitas empresas, o que dificulta uma governança global voltada ao desenvolvimento sustentável.
IHU On-Line – E a rediscussão sobre o PIB? Foi contemplada? De que forma?
Ricardo Abramovay – Este é um dos pontos mais frustrantes do documento. O texto usa de forma recorrente uma expressão obscura (crescimento econômico equitativo) e a única menção à rica discussão sobre o PIB, objeto do relatório Stiglitz, de um relatório de pesquisadores da economia ecológica, produzido para a ONU, de trabalhos do Banco Mundial e da OCDE, é, no parágrafo 38: “reconhecemos a necessidade de medidas mais amplas de progresso que complementem o produto interno bruto”.
Em primeiro lugar, estes complementos já existem e vão desde o IDH às centenas de indicadores globais, nacionais e locais de bem-estar produzidos por organizações privadas, governamentais e até associativas. Mas, sobretudo, a questão não é só de medida: a questão é saber se o crescimento econômico (agora supostamente equitativo e verde) corresponde ao futuro que queremos. Por exemplo, passar de quatro milhões para 6,3 milhões de automóveis produzidos anualmente, investir 700 bilhões de dólares em combustíveis fósseis e outros 250 bilhões em estradas, isso vai fazer certamente com que a economia brasileira cresça: mas será que é a melhor forma de responder às necessidades mais importantes de sua população? É enganosa a ideia de que é preciso complementar o PIB: ele é uma medida errada a respeito do que é riqueza e a respeito da capacidade de a riqueza propiciar prosperidade. Isso foi completamente escamoteado do texto.
IHU On-Line – Quais poderiam ser citados como os principais objetivos para o chamado “desenvolvimento sustentável”? Eles estiveram em pauta durante a Conferência?
Ricardo Abramovay – Os parágrafos 245 a 251 referem-se a esse ponto. É positivo que sejam mencionados objetivos de desenvolvimento sustentável que devem ser “voltados à ação, concisos, fáceis de comunicar, limitados em número, globais e aplicáveis universalmente para todos os países, levando em conta realidades nacionais diferentes...”. Será formado um grupo de trinta especialistas que, em consulta com a sociedade civil e as Nações Unidas, devem apresentar um relatório para a próxima Assembleia Geral, propondo o que podem ser estes objetivos, com validade a partir de 2015. Se um documento destes conseguir estabelecer limites e horizontes de inovação para o uso do espaço carbono, da água, dos oceanos e do solo a partir de 2015, será um ganho muito considerável.
Fonte: IHU
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