julho 12, 2012

"Arte e loucura na modernidade brasileira. Entrevista especial com Gustavo Henrique Dionisio" (IHU)

PICICA: "IHU On-Line – Recentemente, Thomas Szasz, um dos defensores da separação entre psiquiatria e Estado, disse à IHU On-Line que loucura não é silenciada pela razão, e sim pela psiquiatria. O senhor concorda? Gustavo Henrique Dionisio – Como psicanalista, dificilmente posso concordar com a ideia de que haveria uma relação de exclusão entre loucura e razão; nada é mais absurdo. A razão, além disso, é apenas uma parte de nossa experiência psíquica. Isso que chamamos de doença mental, e que poderíamos identificar com a psicose, foi pensado por um Lacan, por exemplo, a partir de um “operador” psíquico elementar, que sobrevive ao lado do recalcamento, algo que ele chama de “foraclusão”. Esta foraclusão, que de certa maneira procura explicar a dinâmica estrutural do funcionamento psicótico, nos habita a todos em algum momento, psicóticos ou não. Nesse sentido, concordo quando Szasz sugere que, assim como a escravidão, a psiquiatria deveria ser abolida." EM TEMPO: Esta postagem é dedicada ao professor Manoel Galvão, que passou a usar a psicanálise como prática de resistência à psiquiatria carcerária, constituindo-se num dos precursores da reforma psiquiátrica em território amazonense. Ao seu lado, o estudante de medicina Humberto Mendonça, que se foi muito cedo, não sem antes deixar seu testemunho de compromisso com o fim dos manicômios em sua curta vida profissional. Dois queridos amigos; dolorosa ausência. 

Arte e loucura na modernidade brasileira. Entrevista especial com Gustavo Henrique Dionisio

“Se as imagens revelam alguma coisa a respeito da loucura é porque trazem à tona algo da loucura de todos nós, humanos que somos”, declara o psicanalista.

Confira a entrevista.



“Ao observar o cotidiano dos pacientes no hospital, que é comum passarem o dia sem nenhum tipo de atividade, ela se deparou com uma intensa vontade de expressão. O curioso para Nise era o fato de que os pacientes utilizavam qualquer coisa que tinham à mão para preencher as paredes do hospital com escritos, desenhos, garatujas etc.”. É a partir dessa narrativa que Gustavo Dionisio, autor de O antídoto do mal: crítica de arte e loucura na modernidade brasileira (Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2012), recupera a trajetória da psiquiatra Nise da Silveira, que, nos 1940, organizou um ateliê de pintura no Centro Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro. À época, a prática gerou uma melhora psíquica em alguns pacientes e suscitou “hipóteses a respeito da capacidade terapêutica da atividade que acabava de inaugurar ali”, destaca.


Em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail, Dionisio comenta as repercussões da iniciativa de Nise em relação à compreensão da arte e da psiquiatria. No último caso, assegura, não houve uma “mudança na forma como a psiquiatria entende o doente mental (...). Mas não tenho dúvida, por outro lado, do quanto à iniciativa da doutora Nise participou historicamente disto que hoje chamamos de ‘paradigma psicossocial’ no tratamento à saúde mental. Ora, houve mesmo uma mudança, mas não sei se ela se opera na psiquiatria”.


Gustavo Dionisio é graduado em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, mestre e doutor em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. É professor assistente do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade Estadual Paulista – FCL-Unesp. É também membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos – EBEP-SP, assim como colabora com outras instituições psicanalíticas. Também é autor de Pede-se abrir os olhos. Psicanálise e reflexão estética hoje (Ed. Annablume).


Confira a entrevista.


IHU On-Line – Como a arte contribuiu para o tratamento psiquiátrico, considerando o trabalho da psiquiatra Nise da Silveira, que organizou um ateliê de pintura e modelagem com os pacientes do Centro Psiquiátrico Pedro II?


Gustavo Henrique Dionisio – Como constatou Nise da Silveira, a potencialidade terapêutica encontrada nas atividades expressivas se revelaria desde o início de suas investigações a respeito da condição psicótica. No entanto, isso revela de fato uma constatação, ou seja, foi algo observado ao longo de sua prática no Centro Psiquiátrico Pedro II: a ideia de oferecer atividades artístico-expressivas aos seus pacientes não foi pensada de antemão. A prática surgiu de maneira espontânea e se deu a partir de uma situação específica: ao observar o cotidiano dos pacientes no hospital, que é comum passarem o dia sem nenhum tipo de atividade, ela se deparou com uma intensa vontade de expressão. O curioso para Nise era o fato de que os pacientes utilizavam qualquer coisa que tinham à mão para preencher as paredes do hospital com escritos, desenhos, garatujas etc. “Por que essa necessidade?”, ela então se perguntou. Esse foi o detalhe que a estimularia oferecer as atividades de pintura, desenho e escultura no ateliê que criaria, nos anos 1940, ali no CPPII. Com o tempo, Nise começou a observar uma melhora psíquica em alguns de seus pacientes, de modo a criar hipóteses a respeito da capacidade terapêutica da atividade que acabava de inaugurar ali.


IHU On-Line – A arte produzida pelos pacientes do Centro Psiquiátrico Pedro II foi estigmatizada? Que críticas surgiram no momento?


Gustavo Henrique Dionisio – Sim! E não foi pouco estigmatizada. Como constato em minha pesquisa para “O antídoto do mal: crítica de arte e loucura na modernidade brasileira”, houve grande resistência diante das obras produzidas pelos pacientes. Alguns críticos não concordavam com a ideia de que as imagens eram verdadeiramente artísticas, mas isso se deu, sobretudo, em função da condição psicológica dos autores. Em primeiro lugar, a resistência de boa parte da imprensa se perguntava: como tais sujeitos, em condições tão degradantes, conseguiriam pintar? E mais: como conseguiam apresentar obras que dialogavam diretamente com o meio artístico do momento, sem no entanto serem artistas? Pois bem, essa problemática estimularia um largo debate sobre a “síndrome de artisticidade” das imagens surgidas no interior do CPPII. De um lado havia parte da crítica que considerava artísticos os trabalhos, na qual situamos nomes como Mario Pedrosa, Sergio Milliet e Antonio Bento, críticos mais atentos à arte que lhes era contemporânea. A outra parte, contrária e mais conservadora, era basicamente composta por Quirino Campofiorito, crítico e pintor de tradição novecentista. Com efeito, ele nunca aceitaria dar caráter artístico às imagens.


IHU On-Line – A partir de que momento houve uma mudança de paradigma no sentido de compreender tais produções como arte?

Gustavo Henrique Dionisio –
Não sei dizer se se trata de uma questão de tempo, pois me parece que essa mudança tem mais a ver com uma certa lógica. A propósito, acho muito pertinente declarar isto: sem a presença de Mario Pedrosa, acredito que os trabalhos dos pacientes dificilmente teriam vindo a público. Quer dizer: Pedrosa reconheceu desde o início o potencial artístico dos trabalhos, e para isso chegou a cunhar um termo – “arte virgem” – que procurava circunscrever o fenômeno. Para Pedrosa, portanto, as pinturas dos pacientes do CPPII deveriam ganhar um capítulo definitivo na história da arte moderna. Desse modo, o acolhimento às imagens foi ocorrendo paulatinamente, sobretudo porque a Dra. Nise fazia questão de organizar exposições para o conjunto dos trabalhos, ainda que nunca tenha declarado, a plenos pulmões, que se tratava de arte. Sua aceitação era tácita, evidentemente, mas isso ocorreu apenas acredito eu, em função de uma posição “metodológica” que ela visava afirmar. Do contrário, talvez seu trabalho (de Nise) caísse totalmente em descrédito.



IHU On-Line – Pode-se dizer que, depois da introdução da produção artística e do reconhecimento destas produções como arte, houve mudanças na forma como a psiquiatria trata o doente mental? De que maneira o trabalho de Nise da Silveira, a partir da arte, trouxe elementos para pensar a reforma psiquiátrica brasileira?
Gustavo Henrique Dionisio – Essa é uma questão muito pertinente. Acredito não poder dizer que houve uma mudança na forma como a psiquiatria entende o doente mental, não sei se é bem isso o que se deve sublinhar. Mas não tenho dúvida, por outro lado, do quanto à iniciativa da doutora Nise participou historicamente disto que hoje chamamos de “paradigma psicossocial” no tratamento à saúde mental. Ora, houve mesmo uma mudança, mas não sei se ela se opera na psiquiatria... Como se sabe, a reforma psiquiátrica brasileira tem larga influência da reforma italiana, isto é, aquela iniciada com Franco Basaglia em Trieste. Isso não impediu, entretanto, que uma prática como aquela realizada por Nise no CPPII deixasse de inspirar toda uma reflexão crítica a respeito do modo como a loucura é encarada em nossa sociedade. Ademais, costumo defender que a abertura do Museu de Imagens do Inconsciente configuraria uma pré-história de nossa reforma, ou seja, Nise teria sido uma espécie de antipsiquiatra “avant la lettre”.


IHU On-Line – O que essas obras de arte revelam sobre a loucura e sobre a subjetividade dos sujeitos?


Gustavo Henrique Dionisio – Sobre a loucura de cada sujeito particular, diria que as obras não revelam nada! Com isso quero dizer que pensar na imagem como reveladora da personalidade de alguém é uma tendência já hoje bastante conhecida – como ocorreu naquela leitura que Quirino Campofiorito fez, como mencionei há pouco – que é a da patologização. A meu ver, é claro que todo trabalho artístico carrega o corpo do artista (assim como sua subjetividade, evidentemente!), não há dúvida quanto a isso; mas transformar a imagem em índice patográfico, em prova diagnóstica, é também comparar a obra com o “teste psicológico”, o que definitivamente ela não é. Essa vontade, que poderíamos chamar de uma psicologia selvagem, se revela, aliás, a prática mais comum, talvez porque nos seduza a ideia de decifrar a vida psicológica de alguém à luz do que essa pessoa faz – a propósito, publiquei recentemente um trabalho sobre esse assunto num livro chamado “Pede-se abrir os olhos. Psicanálise e reflexão estética hoje” (Editora Annablume, com auxílio da Fapesp). Nem preciso afirmar que penso de outro modo. Com isso, por exemplo, uma série de abordagens se autorizaria a dizer, sem muita dificuldade, algo aproximado disto: “se pinta assim, psicótico; se pinta assado, neurótico”, e assim por diante. Enfim, se as imagens revelam alguma coisa a respeito da loucura é porque trazem à tona algo da loucura de todos nós, humanos que somos.


IHU On-Line – Recentemente, Thomas Szasz, um dos defensores da separação entre psiquiatria e Estado, disse à IHU On-Line que loucura não é silenciada pela razão, e sim pela psiquiatria. O senhor concorda?


Gustavo Henrique Dionisio – Como psicanalista, dificilmente posso concordar com a ideia de que haveria uma relação de exclusão entre loucura e razão; nada é mais absurdo. A razão, além disso, é apenas uma parte de nossa experiência psíquica. Isso que chamamos de doença mental, e que poderíamos identificar com a psicose, foi pensado por um Lacan, por exemplo, a partir de um “operador” psíquico elementar, que sobrevive ao lado do recalcamento, algo que ele chama de “foraclusão”. Esta foraclusão, que de certa maneira procura explicar a dinâmica estrutural do funcionamento psicótico, nos habita a todos em algum momento, psicóticos ou não. Nesse sentido, concordo quando Szasz sugere que, assim como a escravidão, a psiquiatria deveria ser abolida.


IHU On-Line – Como podemos compreender uma certa mentalidade existente em nossos dias segundo a qual a ciência é superior à arte, e esta deve estar submetida àquela?
Gustavo Henrique Dionisio – Sua questão é muito interessante e toca num problema enorme, impossível de se esgotar aqui. Há alguns dias saiu, no jornal O Estado de São Paulo, uma bela matéria sobre a subserviência para a qual as artes foram empurradas ao longo do desenvolvimento da ciência. Para mim, trata-se de um obscurantismo micropolítico sem igual em nossa história. Isso também carrega, mais ou menos em filigrana, outro problema bastante complexo, que é a vontade “interdisciplinar/transdisciplinar”, espraiada a torto e à direito e de cima para baixo no cenário universitário (e digo isso pensando de modo mais amplo, estrutural talvez, ou seja, nessa grande instituição que é o discurso universitário). A formação na fronteira das ciências é ótima, todos sabemos – é inclusive o meu caso –, mas não parece ser o que se pratica majoritariamente ali. Raríssimas são as exceções. Ora, trata-se de uma condição a ser pensada incansavelmente por aqueles que habitam esse lugar, no qual também me incluo.


Fonte: IHU

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