fevereiro 11, 2013

"Desalojados pela Copa do Mundo" (Entrevista com Raquel Rolnik)

PICICA: "A primeira grande violação é no direito à informação. As comunidades vão procurar saber o que vai acontecer com elas, qual o projeto, mas não existe."

Entrevista

Henry Milléo/ Gazeta do Povo
Henry Milléo/ Gazeta do Povo / A Vila Nova Costeira, em São José dos Pinhais, é uma ocupação feita há duas décadas: 300 famílias terão de abandonar a boa estrutura local, ruas asfaltadas, energia elétrica e água em todas as casas A Vila Nova Costeira, em São José dos Pinhais, é uma ocupação feita há duas décadas: 300 famílias terão de abandonar a boa estrutura local, ruas asfaltadas, energia elétrica e água em todas as casas
Impacto social

Desalojados pela Copa do Mundo

Raquel Rolnik, arquiteta e urbanista, professora da USP e relatora especial para o Direito à Moradia Adequada da ONU
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Publicado em 06/10/2012 | Fernanda Trisotto

 / Raquel Rolnik, arquiteta e urbanista, professora da USP e relatora especial para o Direito à Moradia Adequada da ONU
Raquel Rolnik, arquiteta e urbanista, professora da USP e relatora especial para o Direito à Moradia Adequada da ONU

As reformas que estão sendo realizadas em Curitiba e região metropolitana como preparação para a Copa do Mundo não afetam apenas a infraestrutura das cidades, mas mudam a vida de muitas pessoas que precisam deixar suas casas para que os terrenos sejam usados para obras de expansão viária e aeroportuária. Em muitos casos, famílias que vivem em ocupações irregulares, com melhor ou pior infraestrutura, precisam ser removidas desses locais para que obras de grande porte possam ocorrer. No entanto, algumas não sabem para onde irão, nem se conseguirão manter uma estrutura de vida semelhante a que levam. Para verificar essa situação, a arquiteta e professora da Universidade de São Paulo Raquel Rolnik, que é relatora especial para o Direito à Moradia Adequada da Organização das Nações Unidas (ONU), esteve em Curitiba, onde participou de um evento promovido pelo Ministério Público e UFPR e visitou duas comunidades da região metropolitana que serão afetadas pelas obras da Copa. Enquanto seguia da Vila Nova Costeira, em São José dos Pinhais, em direção ao Guarituba, em Piraquara, Raquel conversou com a Gazeta do Povo sobre a situação de Curitiba e outras capitais e a questão habitacional no Brasil.

Jardim Guarituba, em Piraquara

O Guarituba é uma das maiores áreas de ocupação irregular do país, onde moram cerca de 50 mil pessoas. No bairro, estão sendo construídas 846 casas pelo programa Minha Casa, Minha Vida, no Conjunto Madre Teresa de Calcutá. Por enquanto, os moradores – cuja maioria havia sido removida do Jardim Holandês –, convivem com as obras. Na região, as vilas Olga Benário, Santos Dumont e Irmã Araújo já foram palco de ações violentas de despejo.

Desocupação
O Ministério Público do Paraná emitiu uma recomendação aos promotores de Justiça de todo o estado para que zelem pela não violação de direitos humanos dos moradores, em casos de desocupações forçadas. O documento foi assinado pelo procurador-geral de Justiça, Gilberto Giacoia, na quinta-feira.

Direito
à moradia não se restringe a ter uma casa apenas, segundo a Organização das Nações Unidas. A moradia adequada é tomada como uma porta de entrada para outros direitos humanos, como a educação, saúde, trabalho e meios de sobrevivência e meio ambiente saudável.

Como surgiu o interesse em entender a relação entre megaeventos e o direito à moradia?
 
Desde que assumi a relatoria, em 2008, comecei a receber várias denúncias de lugares diferentes falando de violação do direito à moradia no âmbito da preparação de cidades e países para megaeventos esportivos. Estudei o tema e apresentei um relatório temático sobre o assunto em 2010. O Comitê Olímpico Internacional me recebeu imediatamente e começamos a discutir como integrar o direito à moradia no processo de seleção dos países e o acompanhamento das implementações. A Fifa nem respondeu às minhas cartas.


O que você percebeu que ocorria nessas cidades?

Boa parte delas acaba removendo muitas famílias. A questão fundamental do direito à moradia não é que não se pode remover, mas é como trabalhar os deslocamentos e as remoções respeitando o direito à moradia adequada. Foi observando a urgência e necessidade das obras e das reformas que vi que elas estavam simplesmente negligenciando esse direito. 

As políticas públicas de habitação são adequadas a esse cenário de grandes eventos?

O tratamento das famílias que estão na cidade formal, com escritura registrada, é um, e o tratamento das que não têm uma escritura registrada, embora estejam ocupando um terreno público com autorização do proprietário, que é a prefeitura, por mais de 20 anos em alguns casos, é outro. Elas têm pela lei brasileira o direito de ver reconhecida sua posse sobre esse terreno e isso é absolutamente relevado, como se isso não existisse. 

Como está a o direito à moradia adequada nas cidades que realizam obras para a Copa?

Já fiz visitas ao Rio de Janeiro, a Fortaleza, São Pau­lo, Porto Alegre e agora Curitiba. Infelizmente, o quadro é muito parecido em todas as cidades. No Rio de Janeiro, que está com o quadro mais avançado, as remoções começaram com a derrubada de casas com as coisas dos moradores dentro pelas empreiteiras responsáveis pelas obras de infraestrutura, tudo irregular e ilegal. Em Porto Alegre, no ano passado, as remoções que foram feitas para a ampliação do aeroporto tinham muitos problemas. As pessoas foram jogadas em áreas sem infraestrutura. A partir dali, houve um compromisso da prefeitura em mudar o sistema. 

O que você observou nas comunidades visitadas em Curitiba?

Na Nova Costeira [perto do Aeroporto Afonso Pena, em São José dos Pinhais], já está acontecendo uma violação ao direito da moradia adequada claramente antes de a obra começar. A primeira grande violação é no direito à informação. As comunidades vão procurar saber o que vai acontecer com elas, qual o projeto, mas não existe. Aí, aparece um dia alguém dentro da casa sem papel nenhum para dizer ‘ah isso aqui vai ser desapropriado e você não pode construir mais nada’ e começa a tirar fotografias. Isso não é a maneira adequada de informar as pessoas. Para a remoção ser legal, sob o ponto de vista dos direitos humanos, ela tem de oferecer às famílias moradia nova igual ou melhor a que ela está. Isso pode se dar por meio de uma compensação financeira ou reassentamento. 

Em Piraquara, no Gua­rituba, áreas de proteção permanente foram ocupadas. Como equacionar esse problema?

Muitas remoções ocorrem pela justificativa da preservação ambiental e vejo atitudes discriminatórias: vi um condomínio de luxo ser aprovado no mesmo lugar em que uma comunidade de baixa renda está sendo removida em São Paulo, na subprefeitura do Butantã. O direito do meio ambiente e da moradia adequada são equivalentes, então é necessário equacionar os dois. Se você tira uma família do lugar em que ela está e não tem outro lugar para ir, você está produzindo um novo assentamento precário. 

Os moradores do Con­junto Madre Tereza de Calcutá, no Guarituba, reclamam das más condições das moradias e a ocorrência de brigas de gangues de diferentes bairros que foram reassentadas no local. Como você avalia esse tipo de situação?

Isso aqui é uma formação clara de um problema social, a política pública construindo um problema social com a visão de que casa é depósito de gente. Moradia adequada não é container de gente. 

Fonte: Gazeta do Povo

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