Não penso brincar o carnaval esse ano. Melhor seria esquecer a cidade, fugir pra bem longe. No Recife, é quase impossível se distanciar do carnaval. Ele cerca você por todos os lados, feito cão perseguindo raposa. Não existem bairros imunes, nem lugares sagrados. Quando menos esperamos, aparece uma troça pela frente, um brincante solitário, alguém tocando clarinete ou bandolim.
Recife é uma cidade bem estranha. Gilberto Freyre esmiuçou suas particularidades, mas não conseguiu enquadrá-lo num estudo de sociologia. Ele achava o Recife masculino, enquanto Salvador era feminina. Pode ser mesmo. Nenhuma cidade do Brasil fez tantas revoluções com mortes e derramamento de sangue. O Império, por razões políticas, instituiu a Inconfidência Mineira como data magna, mesmo só tendo havido dois mártires por lá. Os mineiros desejavam a emancipação de Portugal. Os pernambucanos, paraibanos, rio-grandenses e alguns heróis cearenses brigavam pela república e separação do Brasil. 
Na marcha de bloco Evocação número 1, o maestro Nelson Ferreira canta um Recife que adormecia e ficava a sonhar, ao som da triste melodia.  A cidade cheirando a maré do rio Capibaribe sonhava ser república já em 1817. Juntou-se com os revolucionários das outras províncias e tentaram a façanha, porém nada conseguiram.  Mais de mil homens foram mortos e banidos. Tentaram novamente em 1824 e houve mais mortes e repressão. Depois de tantas lutas inglórias, tristezas e melancolias, os recifenses se embriagaram nos sonhos dos maracatus e blocos. A força revolucionária sentou praça no carnaval.
No Brasil, tudo desemboca no carnaval. Fala-se em carnavalização da cultura. Do lado de cá do nordeste, o Natal, o São João e a Quaresma, que antes possuíam comemorações específicas, com música, culinária, dança e liturgia próprias, tornaram-se um show com os mesmo artistas. Pra onde você for, encontrará palanques armados com Ivetes Sangalos, Aviões do Forró e caipiras universitários. E cachês altos pagos pelas prefeituras ou governos, com o dinheiro dos impostos que poderiam ser usados na educação. A fórmula antiga dos romanos – pão e circo – ainda não encontrou nada que a substitua: bota-se o povo na praça, enche a cabeça dele até de madrugada com muito axé, forró e sertanejo. A indústria milionária da cerveja se encarrega do resto. Pão, circo, violência e muita alienação mascarada de cultura.
Não sou saudosista, mas faço guerra ao carnaval negócio. Hoje, quem exporta e vende alegria fabricada são as TVs, as rádios, os jornais, as secretarias de cultura e turismo – de prefeituras e governos –, e as empresas privadas, sobretudo o ramo de bebidas, que embolsa mais alto do que a nossa orgulhosa Petrobras. 
Os políticos de ocasião também faturam alto. Dá voto aparecer no desfile do Galo da Madrugada, ou num camarote do sambódromo. Esses dois são os melhores exemplos de máquinas carnavalescas azeitadas. Dizem que é bom para o turismo e a economia. Será mesmo? Vocês já pensaram no alto custo desse carnaval? 
O centro do Recife e o bairro antigo são devastados, se transformam em praças de guerra, com barricadas, tapumes e edifícios improvisados em camarins e camarotes. Lá embaixo, ao rés do chão, os foliões se agitam possessos como as bacantes. Nos espaços privados, servidos com o melhor uísque e canapés finos, os de sempre, os mais privilegiados, olham os de baixo e acenam. 
Na pista, o calor excede os 45 graus. Nos camarotes, os aparelhos de ar condicionado garantem os 18 graus. Tudo tão democrático e carnavalesco. Igualzinho à República de 1817, que manteve a escravidão para não quebrar os senhores de engenho.