PICICA: "Numa perspectiva materialista, de fato,
não adianta aferrar-se a elaborações teóricas ou cartilhas utópicas,
mas, sim, identificar movimentos e lutas reais que já estão constituindo
uma alternativa ao modelo da grande mídia e grande indústria cultural.
Desde os primeiros fóruns, consideramos acertado o diagnóstico da
importância de colocarem-se tarefas concretas para a coordenação de
movimentos sociais, redes militantes e/ou mídias auto-organizadas de
cauda longa. No sentido que esses vários agentes (pontos,
singularidades) se qualifiquem cada vez mais para, no limite,
constituirem-se como uma teia múltipla e politicamente organizada contra
o status quo. Noutras palavras, constituirem-se como um comum
produtivo, material e antagonista ao capitalismo: seja ele 1.0 ou 2.0,
analógico ou digital. (...)"
O comum e a exploração 2.0
2012-03-26 15:36:03
11/2/2012, UNINOMADE 2.0
O 3º Fórum de Mídias Livres (FML),
realizado em Porto Alegre no escopo do Fórum Mundial Temático 2012, foi
marcado pelo apelo à convergência. Os desafios para a democratização das
comunicações no Brasil dependem de uma mobilização abrangente, de amplo
espectro articulado em rede, dos grupos, coletivos e veículos que
trabalham à margem dos conglomerados das comunicações. A chegada de Ana
de Hollanda como ministra da cultura de Dilma, com suas relações íntimas
com o ECAD, a dita “classe artística” e a grande indústria fonográfica,
acabou por fechar as portas do governo aos novos protagonistas do campo
cultural e das mídias livres.
Em menos de um ano, o MinC da Holanda
tornou-se um reduto de defesa aristocrática da “arte” contra a cultura.
Daí os apelos no 3º Fórum quanto ao respeito às diferenças para a
expansão de redes contra-hegemônicas ao establishment representado pela
indústria cultural nacional e internacional. No “espírito do tempo”
dessa convergência, não há lugar para purismos, dogmatismos,
academicismos, para qualquer esboço de retorno a formas ultrapassadas de
militância, consideradas analógicas ou “1.0″.
A rede Universidade Nômade, inclusive por meio da Revista Global/Brasil,
participou dos dois fóruns anteriores, no Rio de Janeiro (2008) e em
Vitória (2009). Em ambos, não só debateu horizontalmente, como
contribuiu para a formulação de uma frente transversal de construção
para as novas mídias livres e/ou redes colaborativas. O que se traduziu,
por exemplo, na política dos Pontos de Mídia Livre.
Numa perspectiva materialista, de fato,
não adianta aferrar-se a elaborações teóricas ou cartilhas utópicas,
mas, sim, identificar movimentos e lutas reais que já estão constituindo
uma alternativa ao modelo da grande mídia e grande indústria cultural.
Desde os primeiros fóruns, consideramos acertado o diagnóstico da
importância de colocarem-se tarefas concretas para a coordenação de
movimentos sociais, redes militantes e/ou mídias auto-organizadas de
cauda longa. No sentido que esses vários agentes (pontos,
singularidades) se qualifiquem cada vez mais para, no limite,
constituirem-se como uma teia múltipla e politicamente organizada contra
o status quo. Noutras palavras, constituirem-se como um comum
produtivo, material e antagonista ao capitalismo: seja ele 1.0 ou 2.0,
analógico ou digital. (...)
Diante disso, vale a pena problematizar
o estado do processo de constituição de “mídias livres” e mais em geral
o movimento da “cultura” de resistência à restauração no MinC. O que
significa o apelo de convergência e ao que, afinal, se pretendem fazer
convergir as redes?
O que está em jogo nesses consensos
cada vez mais impermeáveis e institucionalizados, que são reproduzidos,
muitas vezes na sua essência acriticamente, nos fóruns e encontros
culturalivristas e midialivristas?
O que significa que as redes (no plural) agora devam constituir-se em uma só rede?
AS REDES E OS NOVOS MODELOS DE NEGÓCIOS
De tempos para cá, se tornou costumeira
a expressão “gestor de redes” e “redesem rede“. Por gestão de redes se
entende a atividade de ligar os pontos e trançar os fios do que passa a
ser uma cadeia produtiva. O gestor opera como um agregador dos múltiplos
nós produtivos da economia da cultura. Por um lado, gere o fluxo de
equipamento e trabalhadores (gestão de eventos, carreiras, plataformas);
por outro, o fluxo do dinheiro (editais, patrocínios, investimentos,
lucros). Na música, por exemplo, significa articular bandas, casas de
show, plataformas, equipes técnicas, promoters, produtores,
publicitários, críticos e intelectuais.
Essas conexões compõem uma rede que o
gestor administra, promovendo o empreendedorismo dos participantes e sob
o guarda-chuva de uma marca.
A marca, por sua vez, é construída como
um modo de engajamento de seus trabalhadores, um jeito característico
de trabalhar, vestir-se, negociar, em suma, uma ética e uma estética,
uma forma de vida: um coletivo. O objetivo deste concerto passa a ser
implementar a marca até se obter um conglomerado de redes, integradas ou
“parceiras”.
Funciona como um brand management,
pelo qual se aplicam e aperfeiçoam processos e técnicas de marketing,
determinados pelas oportunidades (e ameaças), com vistas a expandir,
controlar e conservar os mercados. O processo vai produzindo sinergia e
se constituindo como mercado (cultura) flexível, eficiente, sinergético,
horizontal, em suma, “livre” como na expressão “livre mercado”. Tudo
isso se ensina tranquilamente nas faculdades de economia ou
administração da FGV, PUC, da COPPE/AD da UFRJ etc.
A REDE COMO NOVO MODELO DE NEGOCIO
Criado ao redor da música independente
(indie), o Fora do Eixo opera mais fortemente na cadeia produtiva da
música e se organiza no formato de coletivos de produtores. O FdE, aqui,
é fora do eixo produtivo das grandes gravadoras e produtoras, e não
somente fora do eixo RJ-SP. Para ser autônomo, é preciso não só fazer
música fora do mainstream, mas passar a ter controle sobre os processos
de distribuição, divulgação, organização de eventos, parcerias etc. Ele
conta com gestores “orgânicos” que se entregam 24 horas para a “causa”,
numa moral do trabalho que lembra tanto as vanguardas profissionalizadas
de militantes liberados quanto o executivo workaholic das
multinacionais.
Desde 2005, o FdE se expandiu à margem
das redes oligopólicas da indústria fonográfica, de laços amiúde
familiares e muito verticalizados. Ele se propõe a desenvolver a cauda
longa de produtores e bandas pelo país, sem se subordinar à indústria
cultural. Nesse intuito, vem organizando shows, festivais, turnês,
encontros, debates e fóruns, fornecendo plataformas e espaço para bandas
menores e artistas jovens, iniciantes ou com pequenos públicos. Nos
anos Lula, o FdE foi bem-sucedido em angariar sistematicamente verbas de
editais do Ministério da Cultura (MinC), bem como patrocínios (que
também são públicos) de empresas e bancos.
Assim como outros grupos
político-culturais aliados ao MinC de Gilberto Gil e Juca Ferreira,
encampou o discurso culturalivrista e digitalista, de contraposição aos
atravessadores tradicionais e à supervalorização do artista criador.
Trata-se de uma concepção de novos modelos de negócios, adaptados à era
digital, às licenças Creative Commons e à riqueza das redes onde a
informação não teria rivais.
Mais recentemente, o FdE começou a se
mover para o eixo. Nascido nas regiões centro-oeste e norte, instalou-se
com sucesso em São Paulo e Minas Gerais, e agora tenta avançar mais
decisivamente para o Rio de Janeiro e Pernambuco. Além disso, começou a
buscar parcerias com bandas, por assim dizer, menos alternativas,
contratando artistas de maior visibilidade, e também através de conexões
mais fortes com o setor público (governos estaduais e prefeituras) e
mesmo partidário (por meio do Partido da Cultura, de iniciativa do
próprio FdE).
A PRIMEIRA GERAÇÃO DE CRÍTICAS AO NOVO MODELO DE NEGÓCIOS
O FdE como rede centralizadora de redes
já foi objeto de uma série contundente de críticas. Em geral, essas
associam uma análise correta do funcionamento material desse novo modelo
de negócios a uma perspectiva teórica e política ambígua, como se o FdE
fosse um “desvio” dos princípios da remuneração do “artista” ou até da
luta revolucionária.
Por corretas que elas possam ser no
plano da análise, essas críticas são politicamente insuficientes.
Contudo, merecem a atenção dos ativistas.
Dentre as críticas ao FdE, destacam-se: 1) a dependência de verbas estatais, 2) o caráter político do grupo, 3) a exploração dos artistas com o não-pagamento ou minoração dos cachês, e 4) um comportamento predatório dos mercados.
1) Quanto às verbas
estatais, argumenta-se que eles não são sustentáveis como projetos
culturais, que o dinheiro público acaba aplicado em iniciativas mais
amadoras e de pequeno público. Essa crítica tende a ser reacionária, na
medida em que a grande indústria supostamente “profissional” também
sobrevive de uma relação preferencial com os governos e, na prática,
tende a se beneficiar de montantes bem mais vultosos a título de isenção
fiscal, parcerias, facilitações e verbas de publicidade. Todos os
artistas medalhões com os quais se identifica a Ministra Buarque de
Hollanda recorrem aos subsídios estatais por meio das Leis de renúncia
fiscal. Ademais, o Estado tem por função constitucional promover o
acesso, a qualificação e a produção da cultura, que é por si mesma um
retorno social dos investimentos.
O sonho do capitalismo é todos viverem
de salário e venda de produtos, duas formas sociais do mesmo fenômeno de
mercantilização do trabalho, do mundo da mercadoria. A crise do
capitalismo global colocou a nu essas abstrações.
2) Quanto ao
componente político, à direita, a crítica tende a se contradizer, pois a
indústria cultural e a grande mídia igualmente mantêm uma agenda
política, rigorosamente ideológica mesmo ao silenciar a respeito de suas
opções e tendências. A diferença do FdE é assumir agressivamente a
pauta política, inclusive no jargão de seus membros. Já na vertente à
“esquerda”, o FdE banalizaria as lutas sociais e marchas, esvaziando o
seu caráter conflitivo e antagonista. Sua aparência esquerdista não
passaria de estratégia de marketing para cooptar o sentimento de revolta
e insatisfação da juventude. Porém, diz-se, não ataca o sistema; pelo
contrário, é parte dele. Essas avaliações, das quais o coletivo Passa
Palavra é emblemático, acabam reduzindo a crítica à denúncia do desvio
entre teoria e prática.
É preciso avançar a análise sobre a
matriz da exploração no contexto do capitalismo cognitivo, assim como a
composição de classe que lhe resiste, o que falta nessas análises em
comento. Não percebem como a teoria circula e viabiliza certas práticas e
vice-versa, como a teoria é pensamento estruturado e organizado para
fazer sentido e ser efetivo em determinado contexto de relações.
Numa perspectiva materialista, não
adianta acusar o FdE de anticapitalista de menos, ou de falsidade
ideológica, mas destrinchar a matriz prático-discursiva que possibilite
algo como o FdE avançar ao mesmo tempo sobre mercados e espaços
tradicionalmente ocupados pelas esquerdas. O que interessa não é
demonizar o FdE, como se fossem “traidores”, mas entender como, por
quais mecanismos um novo modelo de negócio avança e consegue fazer
operações de hegemonia nas redes de movimento. Até o ponto de ser –
mundo afora – apresentado academicamente como “rede de ativismo
descentralizado”.
3) Outro bloco de
críticas circunda o pagamento dos cachês. O FdE aufere verbas públicas e
de patrocínio, porém não remunera diretamente a maioria dos artistas
que performam em seus shows e festivais. Geralmente paga passagens,
alimentação e hospedagem apenas para os músicos (e não à toda a equipe),
o que não deixa de consistir numa remuneração indireta, mas não os
cachês. Em parte, isto decorre da própria concepção de cultura como
cadeia produtiva. Em vez de ser encabeçada pelo artista-criador, como no
discurso reacionário do ECAD e do MinC da Dilma, a economia da cultura
se faz com a cauda longa de produtores, trabalhadores e serviços
agregados. Daí a menor importância conferida aos cachês, em relação à
retroalimentação do processo como um todo.
Ao atribuir ao artista um papel quase
sagrado na produção, deixando de lado o processo social como um todo,
essa crítica também é insuficiente, embora legitima na boca de artistas
que se recusam a entrar no esquema do Cubo Card: ou seja de receber
pagamentos com base em títulos emitidos pelo próprio FdE, algo como uma
moeda complementar.
4) Finalmente, quanto à
predação, o FdE não esconde a sua estratégia de inserção e dominação
dos mercados. Não à toa, num Fórum de Mídias Livres e no Fórum Social em
geral, o extremo pragmatismo de seus membros em contornar debates para
concentrar-se nas pautas do próprio grupo e suas possíveis convergências
(parcerias e negócios). Atualizando o par estratégia/tática, o FdE não
cansa de esclarecer que mantém a hegemonia sobre suas composições com
grupos estatais ou privados: o MinC, a Petrobrás, o Itaú Cultural, a
Coca-Cola etc, pois estaria “hackeando” essas instituições menos do que
sendo “hackeado” por elas.
Novamente, neste âmbito, o FdE lembra
tanto uma vanguarda leninista (na luta expansionista por hegemonia),
quanto uma multinacional (na luta expansionista pelo controle dos
mercados).
Se o linguajar é “pós-pós”, a prática é
bem aquela de uma captura de novas redes produtivas dentro de uma só
rede, sendo essa estruturada segundo os métodos mais tradicionais do
século 20. A pauta — importantissima — da flexibilização dos direitos
autorais acaba sustentando como que uma “vontade geral”.
Ora, quando tratada fora de um contexto
de luta contra a mercantilização da vida, a flexibilização dos direitos
autorais serve mais ao capital do que aos movimentos. Afinal, no novo
modelo de negócios que o Facebook ou a Google expressam bem, enquanto
muitos trabalham de graça (free, livre) em frente seus computadores,
investindo suas vidas na internet, poucos ganham rios de dinheiro no
mercado financeiro. O mesmo vale para o mercado fonográfico, e para
cultura digital em geral, onde muitos trabalham de graça enquanto os
gestores, ou produtores culturais dos grandes festivais e suas polpudas
verbas de publicidade, negociam milhões.
Esse é o novo modelo de negócios que
tenta rearticular o capital no campo dos comuns, para rearranjá-lo no
interior mesmo de sua nova crise.
Assim, a multidão é liquidada à crowdsourcing, o objeto da exploração do trabalho livre, no sentido de gratuito.
Mas, aqui também, o que interessa não é
“denunciar” os novos modelos de negócios, mas entender como eles
funcionam e por onde passam os conflitos que os atravessam.
A PERSPECTIVA DO COMUM
É urgente ir além dessas “denúncias”.
Isso significa recolocar a questão de um ponto de vista crítico e
materialista. Em vez de moralizar a questão ou contornar seus principais
enovelamentos práticos-discursivos, se faz necessário tomar mais
analiticamente a expansão das redes sob o discurso midialivrista e
culturalivrista (da qual o FdE é apenas um detalhe). Trata-se de
contextualizar essas dinâmicas produtivas sob a alcunha “cultura livre”
ou “mídia livre” sobre o pano de fundo do ciclo de lutas e revoluções
que se afirmou, claramente, ao longo do ano de 2011.
As lutas, ocupações, marchas e
acampadas globais exprimem um desejo de mudança e uma forma de
organização que as conferem um caráter antissistêmico. Contudo, a crise
global, essa proliferação de acontecimentos e embates, tanto pode
resultar numa ruptura com o capitalismo global financeirizado, quanto
numa nova reestruturação e captura, uma nova síntese, em suma, em algo
como um altercapitalismo (ou capitalismo 2.0).
Esse capitalismo já se anuncia como um
regime de acumulação que abre mão da retórica e até das instituições
democráticas, servindo como exemplo o caso da Itália, onde o sistema
financeiro global decidiu compor ele mesmo o gabinete de governo do
país, com o primeiro-ministro Mário Monti. Por isso, é preciso assumir a
situação de crise na sua dimensão ambivalente, propugnando pelo
aprofundamento do ciclo de lutas, ou seja, pela radicalização da crise.
Daí a relevância de uma perspectiva da
crise que não perca de vista a dimensão antagonista, em vez de convergir
convenientemente para uma síntese neutralizada.
Dito isto, uma boa maneira de apreender as alternativas da crise se dá por meio da perspectiva da constituição do comum.
O comum, na esteira do marxismo
operaísta, da filosofia da diferença e da antropologia canibal, é uma
organização política das relações produtivas e materiais. Não só como
modalidade de convivência, cooperação e produção, mas também como base
material para a autoformação e autovalorização do trabalho, das redes
colaborativas, da criação de formas de vida a partir de formas de vida,
da constituição antropofágica de perspectivas de mundos além do
capitalismo. O comum está além do público-estatal e do privado, como
esfera transversal onde cultura, economia e política se amalgamam
gerando potências de vida: biopolítica e auto-valorização.
Trata-se da ocupação intensiva do
espaço e do tempo, sob outra gramática organizacional. Uma organização
heterogênea que se constitui não para nivelar as diferenças, mas para
produzir a partir delas, gerando novos entes e processos. Sob a
perspectiva do comum, se podem abordar e elaborar estratégias para
muitos campos políticos: a gestão de recursos naturais e da própria
relação entre natureza e cultura; a produção e reprodução da vida social
(saúde, educação, políticas da mulher, ações afirmativas); a geração,
circulação, distribuição e alocação de energia, renda, conhecimento e
direitos.
Por outro lado, é preciso admitir que a
constituição do comum não ocorre com a produção de um espaço homogêneo e
consensual, como se superasse a luta de classe numa convergência
definitiva.
O comum é substância híbrida que não é
eclética, mas atravessada por atritos e conflitos, e que troca energia a
todo momento entre as divisões sociais e as pautas políticas, entre a
materialidade da pobreza e a reapropriação da riqueza social. Ademais, o
comum que interessa é necessariamente antagonista.
Mas não é antagonista porque se opõe a
alguma grande entidade chamada Capital, ao qual devêssemos convergir
para efetuar uma luta contra-hegemônica. O discurso da contra-hegemonia
não questiona o poder, mas se limita meramente a disputá-lo, numa prisão
dialética. O comum antagoniza o capital como relação social, dentro da
qual estamos todos, da mesma maneira que as relações de poder. Por isso,
não tem cabimento dissociar fins e meios, o que geralmente está
implicado no par estratégia/tática. A relação social do capital não pode
ser combatida senão na afirmação de relações outras, além de seus
rendimentos como métrica, exploração e subordinação produtivas.
O comum, portanto, é menos o fim do
caminho que o ponto de partida, é menos a saída da luta do que o próprio
terreno onde a luta entre comunismo e capitalismo passa a acontecer.
Discordando dos saint-simonianos
digitais (ou tecnutopistas) e dos ultraliberais das redes, é preciso
admitir que a centralidade do comum não significa que as dinâmicas
produtivas que o constituem não sejam objeto de novas investidas do
capitalismo, pós-moderno ou cognitivo. Quer dizer, da reconfiguração das
relações sociais atravessadas pela divisão de classe e pelo comando
capitalista.
O domínio do comum também (ou sobretudo) é passível de expropriação.
Mas como se controla o trabalho em dinâmicas de comuns criativos e colaborativas?
Qual é a tal diferença entre o
capitalismo “analógico” e “capitalismo digital” (para usar um dos
chavões binários dos intelectuais apologéticos do “pós-pós”)?
Com efeito, o que muda é a exploração: o
capitalismo 1.0 organizava a cooperação entre as forças produtivas para
poder explorá-las. O “comum” era assim “produzido” (e imediatamente
subsumido) na divisão capitalista do trabalho (na relação salarial) e
explorado indiretamente, por meio dessa divisão técnica. O capitalismo
2.0, ao contrário, explora diretamente o comum (a colaboração) que já
existe, como condição prévia: o trabalho colaborativo entre as
singularidades (os pontos). No capitalismo 1.0, a exploração determina a
colaboração. Um paradoxo que emerge na ambiguidade dos temas do
“emprego”.
No capitalismo 2.0, a colaboração é
condição da exploração e por isso pode acontecer por fora da relação de
emprego, na precarização da relação salarial, no terreno da
empregabilidade (workfare).
A empresa capitalista, neste cenário,
não pode mais controlar diretamente a produção. Porque, na economia da
cultura e do conhecimento, a dinâmica do valor está concentrada no
capital variável. Noutras palavras, não está mais atrelada ao domínio
dos meios de produção e das máquinas, nas condições objetivas da
produção, mas na própria subjetividade, na capacidade de os sujeitos
cooperarem, criarem em conjunto e se reinventarem.
A vida como um todo é investida, à
medida que a subjetividade atravessa não só o tempo de trabalho
propriamente dito, mas as ações mais cotidianas, o dia a dia, a
linguagem, a ética e a estética dos sujeitos. É por isso que, no
capitalismo cognitivo, a produção social ocupa todas as esferas da
existência: o lazer, a educação, os esportes, as relações amorosas, a
família, o Estado etc.
Não admira as atividades da
publicidade, isto é, a cognição sistemática dos valores de uso,
conseguir enxergar valor a ser expropriado por toda parte. Desta forma,
busca subsumir as potências de vida em produtos vendáveis, em um
imaginário ou em estilos de vida que determinada marca representa.
A atividade por excelência do capitalismo cognitivo é o brand management, que opera nas condições subjetivas da produção social.
Por um lado, essa administração
capitalista das subjetividades extrai uma quantidade imensa de
mais-valia a partir do comum, ao passo que camufla a exploração ao
contar com a participação direta dos explorados, assim neutralizando e
mistificando o antagonismo entre exploradores e explorados.
Por outro, a multidão dos expropriados
pode organizar-se autonomamente e dispensar o gestor capitalista. Isto
significa conferir um caráter afirmativo, radicalmente democrático e
antagonista ao comum. Ou o comum é uma prática política, ou não é. (...)
… E O HOMEM CORDIAL VIROU “PÓS-PÓS”
O debate nas redes passou a ser
patrulhado pelo mais último jargão: todo dissenso é rancoroso,
desatualizado, analógico. O discurso tem que ser “novo” e “pós” e, nessa
medida, será “digital”, plugado, pós-rancor. O homem cordial passou a
esconder seu autoritarismo soberbo atrás do pensamento binário do
“Pós-Pós”.
Ao expor o processo interno de
centralização dos calendários de eventos, o FdE não faz mais do que
revelar novamente a relação do capital (social). Discordâncias e
dissensos significam inscrição em “listas de queimados”, expressando o
comando subjacente à gestão das redes. Ao pautar o Fórum de Mídias
Livres com o discurso da convergência, ele e suas redes parceiras não
fazem mais (e não permitem que se debata mais) do que uma reprodução e
alastramento do modelo deles, que, do ponto de vista do novo negócio,
vem dando certo. Vem dando certo porque se concilia bem com o
funcionamento do Estado e do mercado, quiçá de modo mais eficiente e
sinergético do que os modelos antigos, oligárquicos e familiares.
A apropriação do comum depende que
todos não só participem da contra-hegemonia, mas invistam a
subjetividade, que sejam subsumidos como subjetividades. Não basta
trabalhar, é preciso se integrar 24 horas por dia à “causa”, e com
entusiasmo. O discurso do pós-rancor aí se inscreve funcionalmente.
Assim, se alguém dissente, só pode estar numa vibe ruim, rancorosa, e
isso não é só ruim para o consenso, mas para a própria subjetividade que
depende da cooperação engajada e integral em primeiro lugar. O
capitalismo cognitivo prescreve mais uma subjetividade do que tarefas
propriamente ditas. Daí é preciso que todos cooperem felizes numa lógica
de trabalho grátis (free, livre), ou do contrário não se pode extrair a
renda do comum.
No fundo, talvez, o capitalismo desde
sempre seja gestão de redes com o propósito de obter mais-valor e
acumular a riqueza. E desde pelo menos o modelo japonês, que a
sociologia do trabalho conhece por toyotismo, subsista a ideia de gestão
horizontal de redes, um outro nome para o controle dos trabalhadores.
Por isso, às vezes, a resistência por dentro do comum pode se dar com a
não-colaboração. Através da não-colaboração, a ética hacker se mostra mais potente, hackeando consensos e comitês. A ética hacker
nesse sentido é uma prática sabotadora e radical. A colaboração entre
os hackers se dá através da não-colaboração com práticas
antidemocráticas, cada ato de desestabilização e/ou destruição feito
pelos hackers é também um ato de cooperação, entre singularidades que se
mantêm enquanto tais: o fazer-se da multidão!
O BRASIL VIVO COMO POLÍTICA DO COMUM
Nos últimos tempos, tem ficado claro
como é indispensável produzir o dissenso por dentro dos fóruns,
congregações, discursos e práticas do culturalivrismo, midialivrismo e
digitalismo. Da mesma maneira que tem ficado claro que a democracia
depende das praças Tahrir, Puerta del Sol, Liberty Park e de
Pinheirinho. Para que tudo isso não convirja nalguma matriz para um novo
capitalismo e não a sua ruptura. É preciso, imediatamente, romper
certos consensos, não só sobre a cultura livre, mas também sobre o
código aberto, o software livre, a horizontalidade de redes e os
creative commons.
Isso pode acontecer, como propomos,
dentro de uma perspectiva antagonista de comum. Sair dos cercamentos
(enclosures), com efeito, não significa contornar a apropriação do
trabalho, mas somente um tipo dela. Tem acontecido uma verdadeira
multiplicação das formas rentistas de valorização do capital, que poucos
têm-se proposto a analisar, mais preocupados em ver a questão como um
problema jurídico ou de sustentabilidade profissional.
Embora o software livre conviva bem com
marcas consagradas, ele permanece como importante terreno de lutas, que
pode e deve ser articulado com as lutas pelo hardware livre e pela
banda larga, onde persiste uma gigantesca extração de renda.
As lutas não podem ser resumidas às
frentes digitalistas, nem a um retorno nostálgico ao 1.0, de tomada dos
meios de produção simplesmente objetivos.
De qualquer modo, é fundamental
repensar as formas de organização, para contestar o núcleo do modo de
produção na apropriação do trabalho social. Só assim se pode manter
aberto o horizonte de lutas, contra as sínteses conciliadoras.
Confrontado pelo ciclo de lutas, o capitalismo se reinventa, e as
teorias precisam se colocar à altura das lutas que estão a um passo a
frente.
Não há solução dos quebra-cabeças da
gestão e da sustentabilidade, a não ser em lutas e políticas públicas
que assumam as dimensões biopolíticas da produção do comum. Está em
questão o reconhecimento das dimensões produtivas da vida e da diferença
como condição da geração da própria vida.
Enfim, não se trata de organizar um
show, ou um festival, ou um projeto, mas uma política viva, permanente,
da cultura do trabalho, uma política do Brasil vivo. A política dos
Pontos de Cultura, aliando dinâmicas de redes e formas transversais com
uma base material de renda e liberdade, já é um esboço dessa saída
potente à crise, contra todas as tentativas de reestruturação do
altercapitalismo ou capitalismo 2.0.
A política dos Pontos afirma
experiências do comum, tão inovadoras e potentes, ao intensificar a
produção desejante e os processos de auto-valorização e autonomia e,
assim, abrir todos os mercados e marcas à multidão de diferenças e à
proliferação de lutas sociais que é o comunismo mesmo, aqui e agora.
Fonte: NOVAe
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