PICICA: "Chamei meu consultor para assuntos literários, cozinheiro e garoto
de programa para comentar as recentes (e requentadas) acusações ao
Museu Nabokov que, segundo grupo ultraconservador russo Os cossacos de São Petesburgo, promove a pedofilia."
Museu Nabokov acusado de estimular a pedofilia, ocharolastro comenta
Lolita, Stanley Kubrick 1962
– Como vocês podem continuar sem temer a ira de Deus promovendo a pedofilia de Nabokov?
Ocharolastro responde.
Acharolastra – Como você encara as recentes acusações feitas ao Museu Nabokov de estimular a pedofilia?
Acharolastro — Essa acusação me parece muito datada. O livro foi escrito nos meados doa anos 50 e sofreu forte pressão, inclusive nos Estados Unidos, onde a editora foi processada pela publicação de conteúdo pornográfico. É claro que houve grande debate para saber o que era o Lolita, se tinha ou não status de obra de arte. Então esse tipo de discussão me soa como ultrapassada.
Acharolastra — A crítica para você não procede?
Acharolastro — O livro do Nabokov não tem nada de incentivo à pedofilia. O livro retrata o perfil de um pedófilo, o que é diferente. Não é feita a defesa de que a realidade mostrada é boa ou má. A grande virtude do livro é mostrar pela primeira vez o ponto de vista do cara doente, o que ele pensa, como opera, o que deseja.
Acharolastra — Como a gente pode melhorar a compreensão do livro e estimular sua leitura?
Acharolastro — Eu acho que bons prefácio e posfácio ajudariam bastante porque o livro é difícil de ler, não por causa de uma prosa rebuscada, nada disso. Ele é uma leitura em que você acaba mergulhando na mente de um sujeito que vive uma obsessão por anos e anos, então ele é meio pesado ainda que bem escrito. Então, se houver uma explicação, um debate no início e no final do livro sobre porque ele é uma obra de arte e qual sua importância e o impacto que teve na literatura, já seria de bom tamanho.
Acharolastra — Voltando um pouco para essa questão da pedofilia, o livro deu origem aos termos lolita e ninfeta. Quem é essa personagem?
Acharolastro — Na infância Humbert Humbert teve uma paixonite por uma garotinha com quem ele não consegiue ter nada porque ela morre, mas ela a carrega para toda vida. Então ele meio que redescobriu essa mesma menina na Dolores. Acredito que essas gírias são um pouco da imagem que as pessoas criaram sobre a lolita ou então fruto de uma compreensão rasa do livro.
Mas a Dolores é uma garotinha que tinha apenas a mãe, muito mimada e muito coquete. Para o Humbert Humbert ela era bonita, lembrava de tudo a outra. Sobretudo na personalidade, aquelas menininhas que precisam do mundo gravitando à sua volta, que estala os dedos e as coisas acontecem. Ela inclusive dominava a mãe, quero vestido, quero aquilo.
Acharolastra — Então ele se interessa muito mais pela personalidade dela e não tanto por seu corpo?
Acharolastro — O corpo, a forma física da lolita nunca estão em questão. Não é esse o ponto de interesse dele. A questão é que ela está no limite, no limiar entre ser uma mulher e ser uma menina ainda. É isso que ele gosta. Se ela se tornar uma mulher ele não sentirá atração, se ela fosse um pouco mais jovem também não. É como samba-entero sobre o Império, entre os anos de 1824 e 1826. Pro Humbert Humbert tem de ser uma idade específica, um pouco antes e um pouco depois para ela não importa mais.
Acharolastra — O Kubrick fez uma boa adaptação do filme?
Acharolastro — É uma época riquíssima da vida do Kubrick, tudo que ele toca vira um clássico. Eu acho que Laranja Mecânica foi tão ou mais polêmico porque fala da pura e simples violência, o próprio autor depois renega a obra. A sequência após Lolita (Laranja Mecânica, O iluminado e Nascido para matar) é muito bem conduzida.
Acharolastra — O Lolita influenciou Taxi Driver?
Acharolastro — Em parte. Para mim nem tanto na personagem da Jodie Foster mas na personalidade do Travis. O barato que é que ele era louco e não escondia isso, a sociedade não percebia, então a sociedade é que estava doente. No Lolita o Humbert Humbert também é doente, mas esconde a todo custo e ninguém percebe.
Acharolastra — Esse é o retrato do pedófilo tal como conhecemos hoje, não? A aparência de que ele é uma pessoa insuspeita e quando a verdade é revelada, é como se fosse uma surpresa pois ninguém quase acredita.
SPOILERS
Acharolastro — Esse que é o barato do sujeito, o maníaco controlador. Ele pensa em todas as opções, como um jogador de xadrez até e cerca cada uma. Ele casa com a mãe da Dolores e a mata para ficar com a menina. Ele faz qualquer coisa para atingir seu objetivo, não como uma possibilidade mas uma certeza. Não é bater na menina, estuprá-la e jogar o corpo fora. Não é isso que ele quer, ele quer ser amado. Também não é uma coisa fugaz, de momento. Nem com todas as meninas, a obsessão dele é a Dolores.
Acharolastra — O livro foi lançado na época do Marcatismo, uma época muito complicada. Um período bosta meio parecido com essa coisa que a gente está vivendo hoje, guardadas as devidas proporções, em nome do discurso da moral e dos bons costumes.
Acharolastro — Era um período de caça às bruxas, ao pessoal de esquerda e que foi extrapolando pra moral e os bons costumes. É por isso que não apenas Nabokov mas muitos autores foram rotulados de pornográficos. Mesmo os livros do Henry Miller que foram banidos.
Acharolastra — O Lolita é uma referência para que os pais entendam melhor o que é a pedofilia, para que se protejam de alguma forma?
Acharolastro — Infelizmente não. O Humbert Humbert é tão metódico naquilo que faz que não é o cara que sai à rua distribuindo doce. Não vai cercar seu filho e oferecer bala na calçada. Ele vai além, se torna o pai da vítima. Então é como se você pai usasse o livro para se defender de você mesmo, não faz sentido.
A personalidade do Humbert Humbert é mais complicada do que esse pedófilo que a gente vê nos noticiários. Se alguma coisa serve de alerta é saber quem é seu filho e participar da vida dele. Não ser controlador, mas observar o mundo à volta do seu filho. E também separar pessoas que podem ser eventuais molestadores das pessoas normais, que são carinhosas e são pessoas boas.
Acharolastra — E como é a cena de sexo entre as personagens?
Acharolastro — Para a Lolita é uma droga, ela se sente agredida. Para o Humbert Humbert parece ter sido o que ele desejava. No filme a cena é velada, como se fossem os três pontinhos do Machado de Assis. A luz apaga e pronto. Mas o lance é que a Lolita está tão dentro da vida do cara que mesmo se sentindo violentada ela não o abandona.
SPOILERS
Ela não é trancada em casa, tem a possibilidade de sair. Ela vai pra escolinha, mas já está tão envolvida psicologicamente com o Humbert Humbert que não cogita escapar. Só vai embora quando se apaixona por outra pessoa, ele só de desinteressa por ela quando Dolores está um pouco mais velha, já com um filho. E não é mais uma mulher criança, mas uma mulher. Perdeu o interesse.
Acharolastra — Pra terminar, o que você diria para os acusadores, Os cossacos de São Petersburgo?
Acharolastro — Leiam o livro.
Ocharolastro volta em breve, mais uma vez como garoto de programa, cozinheiro e pessoa cheia de opinião sobre literatura. Até a próxima.
Fonte: Acharolastra