fevereiro 05, 2013

"A arte da crise no norte e no sul globais", por Bruno Cava

PICICA: "O ciclo de lutas disparado em 2011, com a primavera das revoluções árabes, o verão do 15-M europeu e o outono do Occupy norte-americano, gritou as primeiras dores de um novo mundo que brota da barriga do antigo. Embora comentaristas e teóricos se adiantem em não ver futuro no recente scramble de ocupações e revoltas, não se pode confundir o futuro da revolução com o devir revolucionário.  Quer dizer, as franjas de propagação e contágio, cujo maior rendimento é repropor o problema e mantê-lo em aberto, recusando em bloco as receitas cínicas e os falsos problemas. Essa abertura da crise, que a assume como condição a disputar e torcer, consiste na própria imaginação real em marcha. Forma-se num trabalho paciente pelas redes de elaboração, comunicação, cooperação e formulação, e então transforma. Enquanto os valores e medidas em vigência simplesmente não dão conta da situação, e ninguém nos corredores do poder sabe realmente o que fazer; só uma práxis e uma teoria sui generis podem expressar a realidade política do século 21. Uma práxis que o filósofo autonomista Antonio Negri chamaria de constituinte." 

A arte da crise no norte e no sul globais


O eixo norte passa pela pior crise desde a quebra da Bolsa de Nova Iorque de 1929. Esta afirmativa muito repetida nos últimos tempos segue plenamente válida em 2013. Nem Estados Unidos nem Europa se recuperaram das bancarrotas dos subprimes de Wall Street (2008-) e da dívida pública da zona do euro (2010-). O sistema financeiro cuidou de privatizar os ganhos por anos, e hoje continua tratando de socializar as perdas. O saque do que sobrou da riqueza social prossegue na ordem do dia. Simplesmente  não se tem ideia do que poderia refinanciar as dívidas contraídas nas últimas décadas. Os ganhos fabulosos dos ricos se mostram insustentáveis. No norte, o elo mais fraco da corrente continuam sendo os pobres, na Grécia, na Espanha, em Londres, os imigrantes, os negros, os muçulmanos, as mulheres, os precários novos e velhos.

A condição generalizada de precariedade distribui a culpa na base da pirâmide social, acusando as pessoas de fracasso. Como se cada um fosse co-responsável pelo fiasco de governos e bancos, e agora devesse se esforçar mais para salvar as contas públicas. Diante do quadro, os cabeças do sistema financeiro global falham em todos os flancos sobre como restaurar a marcha das economias. Culpabilizadas por sua “gastança”, as pessoas são constrangidas a trabalhar por menos, frequentemente pelo mínimo existencial, aceitando condições piores e progressivamente desgastantes.

Enquanto isso, o projeto de uma Europa unificada, berço e destino da civilização branca, vendido e revendido pelos apologetas do status quo, se tornou como nunca antes cínico. A troika (Banco Central Europeu, Comissão Européia e FMI) não faz mais do que receitar cortes fiscais e de serviços públicos, bem como a privatização dos bens comuns, medidas que incidem com mais ênfase nos territórios menos ricos da Europa. Mesmo o espaço unificado do euro se resume atualmente a uma arena em que os grandes devoram os pequenos. Curiosamente, para as políticas de pilhagem, adotou-se o rótulo atucanado da “austeridade”. Isto significa, noutras palavras, que são os pobres/precários que devem refinanciar os ricos, acatando tornar-se ainda mais “austeros” em seu padrão de vida já inferiorizado.

A consequência dessa equação impossível tem sido mais tumultos, mais organização de movimentos contestatórios e lutas radicais por outro modelo de crise. O ciclo de lutas disparado em 2011, com a primavera das revoluções árabes, o verão do 15-M europeu e o outono do Occupy norte-americano, gritou as primeiras dores de um novo mundo que brota da barriga do antigo. Embora comentaristas e teóricos se adiantem em não ver futuro no recente scramble de ocupações e revoltas, não se pode confundir o futuro da revolução com o devir revolucionário.  Quer dizer, as franjas de propagação e contágio, cujo maior rendimento é repropor o problema e mantê-lo em aberto, recusando em bloco as receitas cínicas e os falsos problemas. Essa abertura da crise, que a assume como condição a disputar e torcer, consiste na própria imaginação real em marcha. Forma-se num trabalho paciente pelas redes de elaboração, comunicação, cooperação e formulação, e então transforma. Enquanto os valores e medidas em vigência simplesmente não dão conta da situação, e ninguém nos corredores do poder sabe realmente o que fazer; só uma práxis e uma teoria sui generis podem expressar a realidade política do século 21. Uma práxis que o filósofo autonomista Antonio Negri chamaria de constituinte.

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O eixo sul, por sua vez, também está em crise. A mesma, só que diferente em seu desdobramento. O que é particularmente verdadeiro para o Brasil, a América do Sul, a Índia. Se, no norte, têm-se recessão, cortes e austeridade, por aqui se vive uma outra face da crise, a crise do crescimento. Na contratendência do fiasco capitalista no norte, os investimentos escoam para o sul atrás das enormes jazidas humanas de trabalho e servidão. Que são os investimentos por aqui, senão fluxos de poder-dinheiro atrás de instâncias de governo, capazes de extrair o valor que não conseguem mais obter no outro hemisfério? Só se investe onde e quando se tem expectativa de retorno. Retorno depende de autoridade, estabilidade e canalização dos lucros, noutras palavras, sustentabilidade da exploração. Mercados e estados são dobrados nessa necessidade global. Por aqui, o constrangimento a trabalhar pelo mínimo em condições desgastantes costuma ser a regra, mas nunca antes tanta gente tem sido incluída e educada para funcionar nesse regime.

O crescimento econômico no sul tem assumido uma dimensão unilateral e unidimensional. A dinâmica do crescimento, por um lado, reproduz as assimetrias e as relações de dominação, racismo e desigualdade que sempre marcaram o terceiro mundo. Por outro lado, reforça os velhos valores do capitalismo europeu: o estado, o mercado e o emprego (público ou privado). A qualidade de vida, o viver bem resta secundário em relação às necessidades macroeconômicas e a solidez das instâncias de mando. O crescimento, em seus efeitos sociais e políticos, tem se realizado de cima para baixo, e conforme uma métrica quantificadora. De cima para baixo, porque manejado por especialistas e tecnocratas, em essência conservadores, a serviço de quem paga mais, e segundo cartilhas (neo)desenvolvimentistas que remontam à era Vargas, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), o populismo do pós-guerra e as ditaduras. Como nunca, esquerda e direita se unificaram num granítico consenso, no interior de uma cada vez menos permeável máquina da representação política. Repete-se acriticamente a inelutabilidade do desenvolvimentismo, de próceres da esquerda da esquerda aos mais frios apologetas do presente. O otimismo certamente não virá da atuação desses yntelektuais.

No eixo sul, mudando-se o que tiver de ser mudado na análise, apesar do catastrofismo em que imergiram analistas, existem movimentos de tipo novo que desafiam os valores e medidas do desenvolvimentismo. Nos últimos 10 ou 15 anos sucederam profundas transformações no eixo sul do mundo. Por movimentos, podem-se considerar também transformações moleculares e pouco visíveis que ainda nem tenham nome. O tipo novo, aqui, também serve para qualificar movimentos mais antigos.  A disputa semivisível acontece igualmente por dentro dos movimentos existentes, em vez de simplesmente substitui-los, numa sucessão simplória do velho pelo novo.

Não há motivo para desencanto com a política. Guardadas as diferenças, o eixo sul antecipou em vários anos as lutas do norte. Desde a crise argentina de 2001, com piqueteros e cacerolazos, as greves no Equador e Paraguai, até o governo indigenista de Evo Morales na Bolívia, a partir de 2006; mas também e sobretudo com o governo de Lula (2003-), que foi uma construção de cauda longa de mobilizações que vêm desde a década de 1980, atualizando as forças vivas então representadas pelo MST, a CUT, o MNU, as pastorais, a UNE e o próprio PT. A dogmática insiste no fosso entre revolução e reforma, para reduzir os eventos sul-americanos a um “reformismo fraco”. A dificuldade em perceber mudanças significativas é a sina de quem se ressente de seu tempo. Na América do Sul, apoiada sobre espaços e tempos rasgados por algumas políticas de governo, aconteceu uma mudança de composição social, intensa e extensiva, que não por acaso foi acompanhada pela chuva de pedras de uma oposição truculenta, senão abertamente golpista.

Evitando qualquer ranço esquerdista, cujo ânimo por vezes não passa de uma obsessão neurótica e nada generosa de estar sempre “mais à esquerda”, não consigo deixar de reconhecer o fato que pobres e movimentos foram capazes de verdade. Eles souberam desenrolar as possibilidades reais por dentro do crescimento econômico, apegaram-se e reforçaram dinâmicas que os favoreceram, e requalificaram-se no processo. Qualificaram-no de baixo para cima, capilarmente, fazendo do pouco arrancado dos enormes lucros do crescimento uma oportunidade para a organização e reinvenção de classe. Foi uma década de permanente mobilização social, quando se soube reapropriar-se do incremento de renda, consumo, acesso à educação superior, direitos básicos e voz, — apesar do desenvolvimentismo de cima. Os problemas do subcontinente mudaram, isso num nível profundo, o que toca à própria definição do que seja um processo revolucionário.

Este paradoxo, desenvolvimento simultâneo e antagonista do capitalismo e da composição de classe, permanece o horizonte insuperável de crítica e crise, no eixo sul.

A crise do crescimento vivenciada hoje talvez consista, antes de mais nada, no fechamento das ambivalências e frinchas que os governos escavaram no bloco tradicional de poder no terceiro mundo. O esgotamento tendencial dos governos sul-americanos, quanto às forças vivas que lhes conferiram consistência histórica e política, um fenômeno mais nítido na presente década, é o problema principal a lidar-se na crise. E não, como supõem os identitários de esquerda, algum erro congênito ou traição originária, mais uma reedição da narrativa cristã da queda, nesse moto contínuo de hipóteses segundo a qual os mencionados governos estariam fadados desde a origem a meramente reproduzir o capital, atuando a serviço das velhas elites brancas, a bancocracia ou, com se queira, o imperialismo norte-americano (ou chinês).

A crise, em qualquer caso, é menos um problema de crescer mais ou menos, do que como crescer. A luta é pela superabundância e democracia material, muito além do que qualquer retórica voltada à contenção ou austeridade. Aliás, peças do próprio discurso do capital. Quer dizer, o nó górdio do eixo sul passa por como qualificar as medidas que suportam esse crescimento, como torcê-las no sentido dos movimentos e pobres, forçá-las conflitivamente pela redistribuição de riqueza e propriedade, a retomada das condições da produção e o exercício material dos direitos. Assim como o avanço da franja capitalista, a inclusão social — renda, consumo, emprego, educação etc —não deixa de conduzir a dois efeitos concomitantes e antagônicos.

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O diagnóstico comum do norte e do sul é que a crise tem produzido um fortalecimento do estado.

O modelo da crise, quer para sair dela, quer para dela extrair vantagens locais, continua sendo a modernidade europeia e seus saberes conservadores. Por estado moderno, se diz um conjunto atuante de racionalidades e valores, certo modo de medir a riqueza e determinar os parâmetros políticos e jurídicos que guiam autoridades, instituições e o próprio debate público. Na Europa, nos Estados Unidos, no Brasil, na Argentina ou na Índia, as tendências e contratendências do capitalismo hoje significam uma necessidade maior de controle social, maior e mais eficiente capacidade de reunir consensos e dirigir os esforços coletivos. O sistema financeirizado azeita as engrenagens e os contrapesos situados entre os eixos e nas múltiplas escalas, macro e micro. Os fluxos financeiros alimentam as máquinas de consenso que se façam necessárias, seja para o controle da recessão e seus tumultos, no norte; seja dos transbordamentos e contraefeitos do crescimento e das mobilizações, no sul. Num e noutro caso, o fortalecimento de um novo capitalismo da crise passa pela mediação estatal, seu direito e sua política orgânica.

É irônico como, hoje, os governos do norte comecem a confessar o fracasso de seu projeto de modernização, e os do sul, na contramão dessa constatação, nutram o desejo de ser iguais ao norte. O norte fracassa, mas as instituições do sul parecem ineptas em firmar um projeto alternativo de modernidade e modo de produção social. Os governos acompanham as velhas classes médias brancas wanna-be europeias ou norte-americanas, quando esses macroprojetos é que vêm naufragando a olhos vivos. O modo inteligente de colocar o problema, possivelmente, possa ser justamente o sul não querer ser como o norte. Ser diferente, ser radicalmente outro. O sul querer ser o sul, num caminho inovador e herético aos cânones do capitalismo europeu. Esta é a aposta, por exemplo, do cientista político Giuseppe Cocco no livro MundoBraz (2010). Em seu encontro com o antropólogo Eduardo V. de Castro, Cocco fala em devir-Brasil do mundo e devir-mundo do Brasil. Mais do que proteger ou defender uma identidade brasileira, a raiz latinoamericana ou algum indianismo reacionário (à Escola da Anta), o caso está em repensar a tradição oswaldiana numa matriz de política e direito além da modernidade capitalista, como práxis constituinte. Um devir-sul do sul que igualmente atue para, surpreendentemente, salvar o norte de seus becos sem saída.

Para muitos autores, vive-se uma crise que não é só econômica ou financeira, mas política, jurídica, antropológica, ontológica. Ela é multidimensional. O problema não pode ser reportado meramente à economia, essa que se lê nos jornais, sem imaginação e mistificada por jargões, memes publicitários e métricas quantitativas. Seria achatá-la nos termos da própria farsa economicista que se apresenta como técnica neutra, onde alguns iluminados contratados pelo peso em ouro emitem de cima, muito de cima, em pedante colóquio, os diktats reacionários sobre como “sair da crise”. A crise é mais profunda, pois envolve concepções sobre a sociedade, a cultura e a natureza. E simultaneamente menos profunda, porque as suas razões e causas podem ser percebidas nos gestos mais prosaicos, nas relações que pairam aqui e agora, intermediando o mundo humano e do trabalho. A crise revela como os problemas reais da gente, enfim, encontram-se muito mal colocados pelo discurso oficial.

Dito isto, fica claro como a retórica de esquerda contra o neoliberalismo está se tornando infértil, senão totalmente obsoleta. Na década de 1990, resistia-se ao modo de regulação neoliberal mediante a apologia do estado, como bastião do interesse geral contra a contaminação dos interesses privados e empresariais. Opondo o público e o privado, contrapunha-se às privatizações dizendo vivas à esfera estatal e ao funcionalismo público. Contra a globalização predatória, o capital nacional: isto é, a subordinação do trabalhador pátrio pelo bom patrão verde e amarelo. Como se o sal da terra não fosse igualmente salgado nos olhos do pobre, que sabe muito bem que a mão que explora e oprime não tem bandeira. Esse discurso antineoliberal, em pleno século 21, não parece fazer mais sentido. Está-se numa época em que estado e mercado, ou público e privado, não passam de dois momentos muito bem acomodados na matriz unilateral e unidimensional, na lógica com que a crise vem sendo estruturada pelos governos, no norte ou no sul. É preciso mudar.

Isto pode significar que, para uma transformação sul-sul do mundo, seja preciso abandonar a gramática universalista tipicamente europeia e jacobina do estado e do público. Em vez de adotar uma terceira via, uma segunda via que ultrapasse em bloco a modernidade europeia e seus polos dialéticos: indivíduo x coletivo, particular x universal, mercado x estado, liberdade x igualdade, economia x política, família x estado, presente x futuro, reconhecimento x efetividade etc. Para isso, as bases materiais dessa transformação devem ser copesquisadas no “fora” da modernidade europeia. E precisam ser pescrutadas na prática concreta das relações e transformações que já existam e se enredem entre si. Isto é, no que grupos e sujeitos já estão fazendo, no que sonham e como funcionam — talvez há décadas, séculos, como alternativa existente à razão capitalista moderna. O capitalismo desde sempre não coloniza outra coisa que não o seu “fora”, inscrevendo os agentes da produção viva (o viver mesmo!) em seu corpo mortiço e decadente.

Há quem investigue essa perspectiva de perspectivas dentre o caldo histórico-político dos ameríndios, no devir de raças insurrectas à sociedade branca, patriarcal e aburguesada. Persegue assim a descolonização do pensamento e suas imagens, com o que delirava Oswald de Andrade, o tropicalismo e o cinema glauberiano. E há quem a procure na experiência potente e criativa dos pobres e favelas, nessa alteridade radical que constitui a cidade sul-americana, e diante do que as velhas elites têm horror, horror. Nada, aqui, de contentar-se talmudicamente com a pobreza, nalgum novo e radical chic pietismo cristão. O caso é reconhecer a dupla face da pobreza, sem romantizá-la em qualquer direção. Com efeito, quer-se inusitadamente sair por dentro da crise, no comum produtivo que jamais deixou de estar na base mesma das contradições e paradoxos do modo  de produção capitalista. O capitalismo distingue-se da escravidão e servidão não porque oprima e brutalize (o que é óbvio), mas porque precisa explorar o viver dos pobres. O capital explora a riqueza dos pobres, ou não é capital.

Importa menos o lugar preciso para situar a crise e a crítica, do que a arte de manejá-la como práxis constituinte, além de fórmulas, memes e cátedras— uma tarefa aberta de organização, animação e desejo conjunto.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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