PICICA: "Mesmo que se constitua como obra ficcional e, portanto, sem
reprodução documental de acontecimento ou biografia, a inspiração para
esse enredo refere-se a um fato não apenas real, mas familiar. Trata-se
da trajetória de Gustaf Gründgens (1889 – 1963), ator de teatro que foi
casado com Érika Mann (1905 – 1969) – irmã de Klaus Mann – que, à
semelhança do filme, tornou-se amplamente conhecido e cultuado a partir
das suas relações sociais com a intelligentsia nazista. Em 1964,
Peter Gorski, o filho adotivo de Gründgens, começou um processo judicial
contra a publicação dessa obra, fato que obstaculizou a sua divulgação.
Foi apenas a partir do seu lançamento cinematográfico que o enredo
tecido por Klaus Mann tornou-se mundialmente conhecido."
Mephisto, ensaio sobre arte e alienação
HENRIQUE WELLEN*
Em 1936, Klaus Mann (1906 – 1943), filho do famoso escritor alemão Thomas Mann (1875 – 1956), publicou Mefisto, um livro que, pela capacidade de prenunciar os horrores que estavam germinando na Alemanha, e pelas indicações biográficas que apontava, se tornaria uma obra maldita. Foi somente depois de algumas décadas, quando esse romance foi adaptado por Ariane Mnouchkine para o teatro e, especialmente, em 1981, quando chegou às telas de cinema a partir da direção de István Szábo e foi brilhantemente encenado por Klaus Maria Brandauer no papel de protagonista, que se intensificou sua divulgação. Em relação a essa obra se observa que, mesmo apresentando algumas diferenças peculiares em relação à obra literária (como um comportamento menos instrumental do protagonista), como essas derivam, na sua maioria, ao atendimento das legalidades específicas de cada complexo estético, a adaptação cinematográfica dirigida por István Szábo possui uma grande fidelidade com a essência do romance de Klaus Mann.
Em semelhança com a obra magna de Goethe, Mephisto (que era também o nome original do livro) se fundamenta na história de Hendrik Höfgen, um ator de um pequeno grupo teatral que, inicialmente, mesmo possuindo elevados dotes artísticos, não detinha fama nem prestígio; e que passa a fazer muito sucesso, especialmente pelo seu desempenho como Mefistófeles, personagem da obra Fausto, a ponto de se tornar uma grande referência artística da Alemanha nazista.
Mesmo que se constitua como obra ficcional e, portanto, sem reprodução documental de acontecimento ou biografia, a inspiração para esse enredo refere-se a um fato não apenas real, mas familiar. Trata-se da trajetória de Gustaf Gründgens (1889 – 1963), ator de teatro que foi casado com Érika Mann (1905 – 1969) – irmã de Klaus Mann – que, à semelhança do filme, tornou-se amplamente conhecido e cultuado a partir das suas relações sociais com a intelligentsia nazista. Em 1964, Peter Gorski, o filho adotivo de Gründgens, começou um processo judicial contra a publicação dessa obra, fato que obstaculizou a sua divulgação. Foi apenas a partir do seu lançamento cinematográfico que o enredo tecido por Klaus Mann tornou-se mundialmente conhecido.
O filme trata, portanto, da trajetória de Hendrik Höfgen. Mas, quem era Hendrik Höfgen? O ele representava? De que era formado e forjado? Quais análises podem ser realizadas a partir da sua trajetória? Não obstante, uma observação é essencial: não seria fácil uma resposta superficial a essas perguntas. Na verdade, seria mesmo improvável uma caracterização específica sobre o personagem. A melhor de todas as qualificações sobre Höfgen seria, por mais subjetiva que pareça, a sua própria: eu sou apenas um ator.
Em Mephisto, a visão superficial e aparente dos acontecimentos é negada, e o que mais instiga o expectador é a abordagem precisa e complexa sobre a realidade. Nesse meio, o protagonista vive envolvido pelas determinações sociais e políticas do seu contexto social e, para conseguir ascender socialmente, precisa agir cotidianamente como um ator. Dentre suas principais características encontra-se a ambição. Mas essa não acontece de forma maniqueísta, simplesmente pela ganância financeira ou de status social. Sua complexidade está em que, para manter a ambição ele deve, freqüentemente, se deparar com valores e comportamentos, mas tentar utilizá-los para proveito particular. É um ator e como ator vive a realidade. E, ao consubstanciar esses dois ethos, aproxima-se do sincretismo tão criticado por Goethe, que não perdoava no ser humano os defeitos do ator.
Anseia pelo sucesso. Por um sucesso que lhe é merecido pela suas grandes habilidades de ator. Na sua trajetória marcada internamente pela vontade de vencer e pela sua fragilidade, e externamente, pelo signo da sociedade elitista que lhe cede apenas pequenos espaços para sua valorização, o ator precisa evocar suas melhores habilidades artísticas e se fazer sedutor e poderoso perante os demais. O contexto social impõe o dilema de uma sociedade que se dualiza pela complexidade ao mesmo tempo potencialmente progressista e irracional da Alemanha na primeira metade do século XX, que foi iniciado por um forte movimento de esquerda e, contraditoriamente, findado com a ascensão e dominação do nazismo. Höfgen tem diante de si duas possibilidades que não apenas marcam suas escolhas, como balizam a então sociedade alemã: a luta comunista ou a adesão ao nazismo.
Dois personagens marcam esses embriões de sociedade na obra analisada: Miklas – o ascendente ao nazismo, e Otto, o defensor do comunismo. Ambos perpassam a vida de Höfgen. Inicialmente ele está próximo de Otto e lhe faz promessas, nunca cumpridas, de auxiliar na construção de um teatro revolucionário. Percebe-se que o protagonista realmente deseja fazer parte desse projeto e vê no comunismo a única forma de emancipação da arte. Mas, em várias ocasiões, se depara com a impossibilidade de trilhar por esse caminho, uma vez que esse não conduz ao seu desejo de sucesso. A sua relação com Otto, que representa a relação com a própria vertente do projeto social de emancipação humana, será um recurso marcante em todo o filme. Höfgen estará constantemente diante desse dilema: se dedicar à arte revolucionária, ou seguir em frente na sua busca inconseqüente de sucesso? Não sem sofrimentos, escolhe, cada vez mais, o segundo caminho. E por isso, a outra possibilidade torna-se para ele, ao mesmo tempo, sua má consciência e um seguro para tempos futuros e instáveis.
Pela sua sagacidade, o protagonista não pode alegar ingenuidade perante o processo social que o envolve. Sabe das mortes, das torturas, da repressão, e de tantos outros horrores praticados. Mas, ainda que seja intimamente contrário a essas práticas, não consegue se postar contra elas, pois não almeja realizar uma ação corajosa e despojada de individualismo. Dedicar-se a uma causa social seria, para ele, uma práxis improvável, pois está perpassado por um individualismo possessivo e, sob uma manipulada defesa da autonomia da arte, intenta se acomodar à sombra dos poderosos.
A relação com o amigo comunista, assim como os afagos dispensados a empregados judeus, voltam-se para ofuscar, na sua consciência, a verdadeira face do seu comportamento traidor. Trata-se, pois, de um crápula. Esse fato fica mais bem explicitado na relação com outra personagem importante: a sua amante e professora negra. Juliette, ou a princesa de Tebab, é utilizada como um objeto de adoração e de remanso para Höfgen. Mas, nem por isso, ele se dedica à sua proteção. Defende-a, desde que isso não prejudique a sua carreira. Sente pela sua precária situação e pelas constantes ameaças físicas e morais sofridas. Tenta amenizar isso, desde que não lhe traga prejuízos. E, no momento em que ela se torna uma ameaça sobre a sua imagem, ele a trata simplesmente como uma mercadoria. Importante mercadoria que pode lhe fornecer atributos desejáveis, mas que pode se livrar quando quiser. Assegura que não danifiquem sua mercadoria, mas se livra dela. Esse momento é marcante para elucidar a amplitude dos limites usados para sua promoção pessoal. Juliette é tida por ele como um dos objetos mais preciosos de sua vida. Apresenta, com laivos de sinceridade, sentimentos de amor por ela. Não um amor aventureiro, mas um amor de verdade. Mesmo assim, diante do perigo ela é tratada como uma mercadoria. Valiosa, mas uma mercadoria.
Não obstante, não devemos entender o personagem de maneira simplista, como se ele fosse, tal qual o modelo ad eterno apresentado por ideólogos burgueses, como detentor de uma natureza egoísta. A sua subjetividade é perpassada por contradições valorativas e práticas. Ele chega a fantasiar o pertencimento a uma causa coletiva que lhe forneça sentido de vida, pois sente inveja das pessoas que dão sua vida pelos outros (como é o caso de Otto). É um sujeito concreto que dá respostas a sua realidade e, sendo criado numa família pobre e cotidianamente humilhada pela classe dominante, prometeu, desde tenra idade, passar para o outro lado. Apresenta repugnância por integrantes dessa classe, mas, para ter sucesso, precisa se transformar em um deles. Tem asco do nazismo, mas para ser valorizado, precisa aproximar-se, ajoelhar-se e propagar suas idéias. E, como a sua revolta pessoal não supera os limites privados e individualistas, Höfgen não somente não conseguiu alcançar uma práxis humanista e revolucionária, como, desejando uma transição particular para a classe dominante, torna-se um gendarme da ordem societária. Nesse sentido peculiar, as suas elevadas qualidades artísticas tornaram-se, contraditoriamente, ingredientes catalisadores para a sua decadência humana. Da arte à alienação.
Esse é o maior dos méritos de Mephisto que, conjugando uma direção precisa e grandes performances artísticas (com destaque para a impressionante atuação de Klaus Maria Brandauer), conseguiu-se adaptar e retratar a complexidade do texto de Klaus Mann e, assim, apresentar ao público a tipicidade realista de um personagem exemplar da Alemanha nazista. E, por expressar artisticamente a essência dessa particularidade história, conduzindo o expectador a uma catarse artística, essa obra nos possibilita uma reflexão sobre a nossa própria sociedade. Assim, ainda que resguarde qualidades específicas daquele momento histórico e daquela sociedade, podemos observar nos padrões atuais de comportamento várias das características nela expostas que, tendo consciência ou não, perpassam nossas vidas e nossas personalidades. Vivemos numa sociedade que cotidianamente nos leva a situações análogas àquelas vivenciadas por Höfgen. Nossa subjetividade, ainda que possua diversas especificidades, também possui marcas daquela complexidade, pois, na conjuntura história atual, as relações sociais também conduzem – em maior ou menor parte – a práticas similares às de Mephisto. Talvez seria melhor dizer que a nossa sociedade também nos apresenta Mephisto como referência para nossos atos. É um fantasma que está ao nosso lado.
A injustiça social não é um axioma produzido pelo logicismo ou silogismo mais rasteiros. É um fato real, e como real deve ser tratado. Tratado não somente na objetividade, mas também na subjetividade. Enquanto isso existir na realidade, na sociedade, deve ser evocado na consciência das pessoas. Enquanto não abolir a sua causa, que determina que uma classe pode viver livremente da espoliação da outra que trabalha para a sustentar, a realidade e a consciência serão consubstanciadas pela injustiça. Enquanto não forem destruídos os obstáculos sociais que impossibilitam a relação complementar entre indivíduo e sociedade, a sombra de Mephisto será uma fiel companheira. Estará à espreita para nos socorrer que for chamada. Enquanto a mercadoria permanecer como elemento nuclear da mediação social, Hendrik Höfgen será um exemplar típico. Enquanto isso repousarão sobre a objetivação arte não apenas a artificialidade, mas também a alienação.
Ficha Técnica
Título: Mephisto
Título original: Mephisto
País: Alemanha / Hungria / Áustria
Ano: 1981
Duração: 166 minutos
Direção: István Szábo
* HENRIQUE ANDRÉ RAMOS WELLEN é Doutor em Serviço Social (UFRJ) e professor da Escola de Serviço Social da UFRJ.
Fonte: Blog da Revista Espaço Acadêmico
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