PICICA: "[...] a
caverna de Chauvet poderia ser vista como uma mensagem para o futuro, já
que existe um liame subterrâneo que une a consciência daqueles que
produziram aquelas imagens com a nossa própria forma de compreensão do
mundo. [...] Porém, compreender o sentido daquelas imagens está bastante além
das capacidades dos pesquisadores. Não há possibilidades de construir
uma narrativa que retire a estranheza daquele local."
O documentário A Caverna dos Sonhos Esquecidos,
do diretor alemão Werner Herzog, é construído a partir de uma
oportunidade muito singular: a descoberta de uma materialidade quase
inexplorada do passado humano. O material do filme é a caverna de
Chauvet, um sítio arqueológico encontrado recentemente na França. Este
local traz não apenas o registro fóssil de inúmeros animais que viveram e
morreram dentro da caverna, mas também a presença de algumas das
pinturas rupestres mais antigas já encontradas. A riqueza desse material
advém tanto de sua preservação, o sítio encontrava-se apartado da
existência humana em decorrência de um soterramento no local,
preservando uma memória de um tempo absolutamente ancestral (vale dizer
que a singularidade da experiência no interior da caverna, propiciada
pelo filme, é ainda maior quando temos em vista que, com a exceção de
pouquíssimos pesquisadores, ninguém tem autorização para visitar a
caverna), mas também da própria beleza do local. A riqueza das pinturas é
combinada com uma arquitetura natural muito rica, criando um ambiente
visualmente deslumbrante e encantador. Esse rico material é
potencializado pela opção estilística do filme, que utiliza a tecnologia
3D para ampliar o impacto das imagens no espectador. A partir desse
material, o diretor alemão realiza um documentário que, do ponto de
vista formal, é bastante clássico: as imagens captadas são ordenadas a
partir do discurso de um narrador (que é o próprio diretor), o qual
também é encarregado de introduzir o material externo à caverna
(basicamente, entrevistas com pesquisadores que estudaram o local e o
passado pré-histórico da humanidade). Ao lado desse discurso narrativo
clássico, porém, existe uma espécie de segundo discurso: o das próprias
imagens que são construídas no interior da caverna. Estas, que num
primeiro olhar funcionariam numa espécie de articulação com o próprio
narrador, acabam ganhando uma vida e um rumo próprio, que possibilita um
tensionamento, ou mesmo uma torção da narrativa de Herzog. Esse
movimento transforma o que seria um simples e comum documentário
histórico numa experiência muito interessante de descentramento e de
alteridade radical naquilo que entendemos por humanidade. Nesse sentido,
a principal característica da narrativa do filme é a tentativa de
empreender um esforço analítico, ou seja, apresentar, compreender e
explicar a natureza do material encontrado no interior da caverna. Esta
narrativa não está muito distante daquela que podemos encontrar numa
tese acadêmica, ou livro científico. Pretende-se, por meio do
levantamento sistemático de informações, explicar alguma coisa de forma
clara, ordenada e a partir de critérios de cientificidade bem
assegurados. Para isso, o filme utiliza não apenas as palavras dos
especialistas, mas também os fartos recursos tecnológicos que estão a
disposição dos estudiosos. Nesse sentido, o nexo central que pretende
ser demonstrado nessa narrativa é que aquele local funciona como uma
espécie de cena inaugural da alma do homem moderno, no qual a construção
de imagens figurativas, que poderiam ser classificadas como arte, se
constitui como meio privilegiado de expressão e compreensão do mundo.
Esta postura diante do mundo, que pode agora ser compreendido a partir
de um universo simbólico e não apenas na concretude das coisas mesmas, é
o que afasta o homem da natureza e dá o pontapé inicial naquilo que
chamamos de cultura. Ainda que essa formulação não seja claramente
enunciada no texto do filme, ela aparece no interstício de todo o
discurso que é narrado pelo diretor. Não seria difícil, inclusive,
relacionar a arte figurativa feita nas paredes da caverna com a essência
do cinema moderno. Tanto lá quanto cá, o que existe é uma preocupação
em narrar simbolicamente o mundo que cerca a humanidade. Assim, a
caverna de Chauvet poderia ser vista como uma mensagem para o futuro, já
que existe um liame subterrâneo que une a consciência daqueles que
produziram aquelas imagens com a nossa própria forma de compreensão do
mundo. Essa interpretação, que percorre a integralidade do filme, é
claramente enunciada no excessivo epílogo do documentário. Os dois
crocodilos albinos que se observam revelariam uma espécie de jogo
especular entre passado e futuro, no qual a própria definição de
humanidade seria organizada: o humano como a capacidade de representar
figurativamente o mundo. Esse discurso analítico, porém, é tensionado
pelo discurso que encontramos nas próprias imagens que foram captadas no
interior da caverna. Estas são espantosas e misteriosas. As pinturas
produzidas nas paredes, as formações rochosas que se formaram pelas
superfícies da caverna, os restos de animais que viveram e morreram lá,
enfim, todo o local é constituído por imagens que despertam uma espécie
de fascinação no observador. Esta fascinação, em grande medida, advém da
estranheza e do distanciamento, do estar diante de um universo
particular e singular, um mundo estrangeiro, enfim. Por mais que à
visibilidade da caverna esteja sobreposto outro discurso, que tenta
explicá-la e traduzi-la, tudo permanece incerto, confuso, distante de
nós. Isso fica muito claro quando pensamos na oposição mais elementar de
nosso pensamento, entre natureza e cultura. Como operar com tal
oposição no interior da caverna de Chauvet? Tudo lá se encontra num
espaço que impede o discernimento claro entre o que é humano
(figurativo, simbólico) e o que é natural e concreto. A própria
separação entre humano e animal é suspensa na única figura humana que
fora pintada naquelas paredes (a mulher que tem seu corpo misturado com o
de um animal). Bem distante do liame que é construído na narrativa do
filme, o que observamos é uma cisão entre nós, os homens modernos, e
aquilo que emana das imagens que foram paralisadas no tempo dentro da
caverna. As imagens encontradas no interior da caverna funcionam
justamente na suspensão das categorias e oposições que fundamentam o
pensamento moderno. Nesse sentido, a vontade de saber do
pesquisador-documentarista é sempre superada pela impossibilidade mesma
de reduzir aquilo às categorias de nosso pensamento. As explicações dos
especialistas não podem ir muito adiante da mera descrição formal e
topológica do interior da caverna. Isso permite, por exemplo, afirmar
que o indivíduo que fez as pinturas (ou parte delas) tinha 1,80 de
altura. Porém, compreender o sentido daquelas imagens está bastante além
das capacidades dos pesquisadores. Não há possibilidades de construir
uma narrativa que retire a estranheza daquele local. É apenas no campo
das suposições que o narrador (suportado pelo discurso dos
especialistas) pode dizer que um determinado crânio funcionava como um
instrumento ritual para os homens que passaram pela caverna. Estamos,
assim, diante de um regime de visibilidade diverso do nosso, que não
pode ser simplesmente enquadrado numa espécie de genealogia da
sensibilidade moderna, mas que justamente coloca essa sensibilidade em
questionamento. É esse processo que possibilita tanto o assombro quanto o
deslumbramento no espectador, como se fosse possível vislumbrar por
algum momento a existência de um mundo outro, de uma humanidade outra,
tão distante e misterioso, com uma potência que lhe é própria e que pede
tão-somente nossa contemplação. Nesse caso, o momento mais luminoso do
filme é justamente o momento em que essa vontade de explicar é suspensa,
e podemos observar no silencioso respeitoso as belas imagens que foram
registradas no interior da caverna.
Fonte: Ensaios Ababelados
A Caverna dos Sonhos Esquecidos de Werner Herzog