PICICA: "O exemplo mais recente da queda de um mestre é,
certamente, a renuncia do Papa Bento XVI. Essa deveria ser uma
oportunidade para cristãos e católicos questionarem seus mestres, e uma
oportunidade única para a Igreja Católica questionar a si mesma, seus
dogmas, seu modelo institucional e seus lideres. No entanto,
infelizmente, neste caso, temo que a solução dada seja, simplesmente,
inventar outro mestre para, rapidamente, ocupar o lugar que ficou vazio."
Foto: Revista Veja - Bento XVI
Quando um Mestre cai.
psicanalista
Assisti nesta semana ao filme A Última Estação, do diretor Michael Hoffman. Trata-se de uma ficção baseada nos últimos dias de Leon Tolstoi, grande escritor e filósofo russo do século XIX, autor de livros imortais como Guerra e Paz. Sua vida política foi intensa e influenciou de maneira importante o pensamento anarquista. Tolstoi era um pacifista, um crítico das instituições e contrário à propriedade privada.
O filme é encantador. E dentre tantas outras coisas, me fez pensar sobre o fascínio que nos causam grandes mestres e líderes, sejam eles vinculados à política, à religião, à filosofia ou à ciência, assim como nos conforta seguir, estudar e propagar suas obras, teorias e ideais que, afinal, sempre carregam algum espírito revolucionário e inovador.
Tolstoi transformou-se, no final de sua vida - como bem retrata o filme - num ídolo, num mito, num quase-deus para o povo russo e num deus para seus seguidores. Mas, como é sempre o destino de grandes mestres da humanidade, percebemos que suas ideias e ideais acabaram se tornando maiores que ele mesmo, com tamanho suficiente para atravessarem uma espécie de divisor de águas, um ponto no qual uma teoria deixa de ser um manifesto revolucionário e inovador, para se transformar para alguns em dogma, ou seja, numa Verdade com V maiúsculo (a única verdade). E nesse ponto, infelizmente, ao adquirirem estatuto Verdade, ou melhor, por adquirirem estatuto de Verdade, é que tais ideias começam a perder grande parte da sua vitalidade e potência originais.
No filme é possível perceber que as ideias de Tolstoi já atravessaram o ponto do qual estamos falando. Tanto que, em certos diálogos, o próprio Tolstoi demonstra ter mudado sua visão sobre muitas das coisas que defendia e pregava em seus livros e manifestos, no entanto, como elas já haviam se transformado em dogmas, em receitas a serem seguidas e disseminadas, não podem mais mudar. Já estão fixadas, como numa fotografia. Por isso, Tolstoi chega a ser repreendido por seus discípulos em várias situações durante o filme. São eles que dizem ao Mestre como deve agir, falar e ser. Curiosamente, tentam ensinar Tolstoi a ser Tolstoi. A cena do filme mais significativa para explicar o que estamos dizendo é a seguinte: Após ser repreendido por Vladimir Chertkov, seu maior amigo e mais fiel discípulo, por fazer algo fora dos princípios pregados pelo Movimento Tolstoiano, Tolstoi diz ao amigo: _ Você é mais tolstoiano do que eu.
Então, fiquei pensando que é mesmo lamentável quando uma teoria (filosófica, religiosa ou científica), mesmo a mais revolucionária, viva e potente, criada inicialmente para contradizer ou questionar uma outra, perca toda a sua vitalidade, por ser tratada como dogma, como a Verdade; única e imutável. Mas, quem sabe isso não seja mesmo parte de uma espécie de dialética que movimenta o mundo? E quem sabe, afinal, precisemos mesmo de mestres e, hoje, mais ainda, de teorias, dogmas e receitas que expliquem a existência e nos digam como lidar com ela? Quem sabe isso explique a multiplicação das religiões fundamentalistas e a epidemia das publicações de auto-ajuda? Quem sabe?
O que sabemos é que vida, apesar de ser uma experiência incrível, não é necessariamente fácil. E assim sendo, manter-se à deriva o tempo todo, sem nenhum tipo de saber, mestre ou questão que nos guie de alguma forma, apesar de ser um ideal libertário de felicidade para muitos, acreditem, não é exatamente uma benção, é na verdade uma experiência atormentadora; é a experiência da loucura. Mas, quem sabe, possamos, por outro lado, compreender que nossos mestres e suas teorias maravilhosas, apesar de necessários em certa medida, são apenas contingência? Porque, afinal, o mundo não para de girar. E quem sabe precisemos considerar o fato de que todas as verdades devam ser, necessariamente, escritas com letra minúscula?
No filme Forrest Gump temos o protagonista, imortalizado pelo ator Tom Hanks, que em certo momento da trama decide correr pelos EUA, sem paradeiro, a fim de compensar o vazio que sente. Depois de um tempo de jornada, Forrest começa, sem que ele mesmo busque por isso, agregar seguidores. São pessoas comuns que decidem correr junto dele, fazer da jornada de Forrest, também a sua própria jornada. E há uma passagem clássica no filme em que Forrest, depois de correr por mais de três anos, sendo acompanhado por dezenas de seguidores, simplesmente pára de correr. Sem dar maiores explicações, vira-se para traz e, caminhando, diz apenas que decidiu voltar para casa. O mais interessante desta cena, inesquecível, é a cara de decepção e surpresa dos seguidores de Forrest, eles se entreolham sem acreditar, parecem mergulhar no vácuo, como se não soubessem ou não tivessem mais para onde ir.
O que os seguidores de Forrest, os seguidores de Tolstoi, e todos nós seguidores de alguma espécie de Mestre precisamos saber é que, tal qual a todos nós, ele, o Mestre, também é limitado, assim como são limitadas suas ideias, ensinamentos e visões de mundo. Grandes Mestres e grandes ensinamentos são capazes sim, de servir de leme para nossa existência, e sem isso, possivelmente, mergulharíamos no caos. Vale lembrar a importância dos nossos primeiros mestres, os pais (ou quem cumpre essa função) e seus ensinamentos. Mas é possível também aprender a caminhar sozinho, em pares, ou em grupos, sem um líder para nos guiar, assim como é possível e desejável criarmos nossas próprias teorias, nossa própria obra.
Mestres não são eternos e todas as teorias, no final, mostrarão suas falhas. E para não deixar de mencionar meu mestre castrado, Freud, sempre que um líder cai, eleva-se a oportunidade de seus seguidores se unirem em irmandade, a fim de criarem seus próprios caminhos alternativos. O exemplo mais recente da queda de um mestre é, certamente, a renuncia do Papa Bento XVI. Essa deveria ser uma oportunidade para cristãos e católicos questionarem seus mestres, e uma oportunidade única para a Igreja Católica questionar a si mesma, seus dogmas, seu modelo institucional e seus lideres. No entanto, infelizmente, neste caso, temo que a solução dada seja, simplesmente, inventar outro mestre para, rapidamente, ocupar o lugar que ficou vazio.
Fonte: Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar...
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