PICICA: "O Direito não é uma língua
estrangeira como o inglês ou o latim são em relação ao português ou ao
grego: o Direito é a língua portuguesa ou grega em outro regime de
funcionamento. Diante do Direito pátrio, somos como estrangeiros que não
conhecem a própria língua. Mas qual é o regime de funcionamento
daquela linguagem que atende, no “vernáculo comum”, pelo nome de
“juridiquês”?"
Juridiquês
Alexandre Nodari
"Se tivesse sido possível construir a torre de Babel sem escalá-la até o topo, ela teria sido permitida"
(Kafka)
1. Tramita no Congresso Nacional um
projeto de lei, de autoria de Maria do Rosário, que pretende acrescer
ao artigo 458 do Código de Processo Civil, que diz respeito aos
“requisitos essenciais da sentença”, um quarto inciso, tornando
obrigatória “a reprodução do dispositivo da sentença em linguagem
coloquial, sem a utilização de termos exclusivos da Linguagem
técnico-jurídica e acrescida das considerações que a autoridade
Judicial entender necessárias, de modo que a prestação jurisdicional
possa ser plenamente compreendida por qualquer pessoa do povo”. É
evidente que a proposta visa ampliar o acesso à Justiça e tem intenção
democratizadora. Todavia, se, por si só, o projeto parece ser razoável,
confrontado com a torrente de leis ou projetos de lei que visam
regular cada aspecto da vida humana, do cigarro à linguagem (há poucos
anos, o comunista-ruralista Aldo Rebelo tentou banir os estrangeirismos
do português), não há como não termos uma postura ao menos cética
diante dele. Se o projeto em si pode ser bom, contextualizado com a
inflação normativa que visa purificar cada aspecto da vida humana, não
há como não termos ressalvas. O desejo de limpeza, de higienização, de
clareza, atravessa a sociedade como um todo – e tal desejo atende a
anseios do poder, ou, pelo menos, é canalizado por ele. Dominique
Laporte, em sua História da merda, lembra que foi no mesmo ano
de 1539 que a França: 1) primeiro obrigou que as leis, os atos
administrativos, os processos judiciais e os documentos notariais,
fossem redigidos em vernáculo, eliminando as ambigüidades e incertezas
do latim, e possibilitando a “clareza”; 2) e, logo a seguir, proibiu
que os cidadãos jogassem na rua seus excrementos – suas fezes e suas
urinas. Limpar a linguagem e limpar a cidade: a centralização do poder
que daria naquilo que chamamos vulgarmente de absolutismo tem suas
raízes nessa vontade de pureza e limpeza, nesse ideal cristalino.
Todavia, para além desse “desejo de clareza”, é interessante atentarmos
para uma espécie de ato falho contido na “Justificação” do projeto de
lei; talvez não seja, de fato, um ato falho, mas algo intencional, o
que pouco importa. O parágrafo final da justificativa fala em “tradução
para o vernáculo comum do texto técnico da sentença judicial”, como se
as sentenças não fossem escritas em português. Há aí uma verdade
essencial sobre o Direito: ele é uma linguagem diferente do “vernáculo
comum”. Na famosa Apologia de Sócrates, o velho sábio, ao
falar diante do tribunal que o acusava de impiedade, diz ser “um
estrangeiro à língua” que ali se fala, e pede pra ser tratado como se
fosse um estrangeiro que não sabe o grego. O Direito não é uma língua
estrangeira como o inglês ou o latim são em relação ao português ou ao
grego: o Direito é a língua portuguesa ou grega em outro regime de
funcionamento. Diante do Direito pátrio, somos como estrangeiros que não
conhecem a própria língua. Mas qual é o regime de funcionamento
daquela linguagem que atende, no “vernáculo comum”, pelo nome de
“juridiquês”?
2. Em um belíssimo texto sobre a figura do notário,
Salvatore Satta, um dos juristas mais brilhantes do século XX, resumiu
o “drama” do escrivão ou escrevente, esses mediadores entre os plebeus
e os juristas, do seguinte modo: “Conhecer o querer que aquele que
quer não conhece”. Não é que “aquele que quer” não conheça o seu
querer; “aquele que quer” não sabe traduzi-lo juridicamente. Ou seja,
continua Satta, o que o notário faz, de fato, é “reduzir a vontade da
parte enquanto vontade do ordenamento”. Eis o sentido do brocardo latino
Da mihi factum, dabo tibi jus (“Exponha o fato e te direi o
direito”): reduzir a “volição em vista de um escopo prático que a parte
se propõe a atingir enquanto vontade jurídica e juridicamente
tipificada”, ou seja, traduzir uma vontade, um fato, um ato da vida, em
tipos jurídicos. O Direito não lida propriamente com fatos ou atos, mas
com fatos ou atos jurídicos, que correspondam a certos tipos
previstos. Passar um ato ou fato da vida ao Direito é tipificá-lo.
Nesse sentido, o tipo talvez seja o elemento gramatical básico da
linguagem jurídica. Mas o que exatamente é um tipo? Quem melhor
refletiu sobre a noção de “tipo” não foi um jurista, mas um sociólogo,
Max Weber, sedimentando, com os chamados “tipo ideais”, seu método em
oposição ao método empírico-comparatista de Durkheim. Para Weber, os
tipos puros ou ideais não poderiam ser encontrados “na realidade”; o
que existia “de fato” era sempre um compósito, mais ou menos híbrido,
de tipos que – e daí a sua natureza circular – se construíam a partir
de elementos dispersos nesta mesma “realidade” em que eram aplicados. A
própria etimologia de tipo já indica este seu caráter ambíguo, entre a
empiria e a abstração: o grego typos significa imagem,
vestígio, rastro, ou seja, ausência, índice de uma presença imemorial.
Para usar um exemplo de Vilém Flusser: os “typoi são como
vestígios que os pés de um pássaro deixam na área da praia. Então, a
palavra significa que esses vestígios podem ser utilizados como modelos
para classificação do pássaro mencionado”. As duas formas de Direito
que o Ocidente conhece são as duas facetas do tipo: a de matriz
romano-gerâmica baseia-se nas leis, na abstração, no tipo, para chegar
ao caso empírico; e a Common Law, ao contrário, parte dos
casos empíricos para convertê-los em típicos, em abstratos. Mas, como
diz Satta, na tipificação, há uma redução, algo se perde – inclusive a
linguagem comum.
3. O tipo atende a uma necessidade básica do funcionamento do Direito, e do modus operandi de
sua linguagem específica (ou típica): a prescrição. “Se” acontece ou
está presente o tipo X, “então” a conseqüência, a sanção, é Y. O
problema de todo processo reside em saber se o acontecimento A da vida
corresponde ou não ao tipo X para que a conseqüência Y se dê. Como as
normas se fundamentam em tipos, que não passam de linguagem sem relação
necessária com as coisas e os fatos da vida, é preciso uma construção
discursiva que conecte o acontecimento da vida ao tipo jurídico – se o
Direito fosse pura subsunção, lembra Giorgio Agamben, poderíamos
abdicar desse imenso aparato judicial chamado processo, e que envolve
não só o juiz, o advogado e o promotor, mas inúmeros outros mediadores
entre a linguagem comum e a linguagem jurídica (o notário, o
taquígrafo, etc.). Por isso, para que se dê essa tipificação, não só o
fato relevante juridicamente precisa passar à forma de tipo, como
também tudo aquilo que o cerca, para que haja a redução da
singularidade à tipificação, ou seja, à reprodução daquele caso típico
(na forma de jurisprudência). Sabemos bem como isso funciona: dos
boletins de ocorrência até as sentenças, os fatos da vida são narrados
em uma linguagem que os torna típicos, abstratos – e reprodutíveis.
Ítalo Calvino sintetizou de forma magistral esse “inquietante” processo
de tradução:
O escrivão está diante da máquina de escrever. O interrogado, sentado em frente a ele, responde às perguntas gaguejando ligeiramente, mas preocupado em dizer, com a maior exatidão possível, tudo o que tem de dizer e nem uma palavra a mais: “De manhã cedo, estava indo ao porão para ligar o aquecedor quando encontrei todos aqueles frascos de vinho atrás da caixa de carvão. Peguei um para tomar no jantar. Não estava sabendo que a casa de bebidas lá em cima havia sido arrombada”. Impassível, o escrivão bate rápido nas teclas sua fiel transcrição: “O abaixo assinado, tendo se dirigido ao porão nas primeiras horas da manhã para dar início ao funcionamento da instalação térmica, declara ter casualmente deparado com boa quantidade de produtos vinícolas, localizados na parte posterior do recepiente destinado ao armazenamento do combustível, e ter efetuado a retirada de um dos referidos artigos com a intenção de consumi-lo durante a refeição vespertina, não estando a par do acontecido arrombamento do estabelecimento comercial sobranceiro.” |
Calvino chamou a isso de “terror semântico”, ou
“antilíngua”: “a fuga diante de cada vocábulo que tenha por si só um
significado” – o perigo, a seu ver, era que essa “antilíngua” invadisse a
vida comum. Mas nessa fuga diante do vocábulo que tenha por si só um
significado, há um avanço para os vocábulos que abranjam mais de um
significado, que podem, portanto, ser reproduzidos em várias situações.
Essa reprodutibilidade é, como já sublinhamos, essencial à linguagem
baseada em tipos – é ela que diferencia, segundo Flusser, a noção de
tipo da noção de caractere, que privilegia aquilo que é característico,
isto é, próprio.
4. Portanto, o tipo, como elemento
básico da gramática jurídica, serve para tornar reprodutíveis as normas
diante da singularidade dos acontecimentos da vida; mas, para tanto,
ele abstrai (d)esses acontecimentos. Os processos e as normas,
compostos de inúmeros tipos, correm, desse modo, ao largo da vida, como
se fossem uma narrativa ficcional. O grande romanista Yan Thomas
argumenta que “a ficção é um procedimento que (...) pertence à
pragmática do direito”. Os antigos romanos, continua Thomas, não tinham
pudor em, diante de uma situação excepcional na qual não queriam fazer
uma determinada regra, optar por mudar juridicamente a situação no
lugar de alterar a regra. Um exemplo, dentre muitos: buscando tornar
válidos os testamentos de alguns cidadãos que haviam morrido quando se
encontravam sob custódia dos inimigos, o que, por lei, invalidava tais
testamentos, a Lex Cornelia, de 81 a.C., optou por criar uma
ficção, da qual conhecemos duas versões: 1) a primeira, uma ficção
positiva, era considerar os testamentos como se os cidadãos
haveriam morrido sob o estatuto normal da cidadania; 2) e a segunda,
uma ficção negativa, pela qual os testamentos eram válidos como se os
cidadãos não tivessem morrido sob o poder do inimigo. Por que esse
afastamento discursivo da “realidade”, da vida? Por que, na narrativa,
ou na sua forma, o Direito se afasta do relato comum, cria uma outra
realidade, quase uma dimensão paralela? Aqui entra o segundo elemento
da linguagem prescricional que caracteriza o Direito, a sanção, o
“então Y”. A função do Direito, como sabemos, é alterar, pela
linguagem, pela palavra, a realidade, a vida, ou seja, criar palavras
eficazes – nem que para garantir a eficácia de uma lei ou de uma
sentença seja preciso usar da força pública. (Aliás, não há vernáculo
comum o suficiente capaz de explicar a “qualquer pessoa do povo” que
aquela sentença que lhe dá ganho de causa ainda precisa ser executada,
em um procedimento que demorará mais alguns anos). É dessa função do
Direito de alterar a realidade pela linguagem que nasce a ilusão
retrospectiva de que haveria um estágio pré-jurídico em que religião,
magia e direito coincidiriam. Na verdade, o que o Direito e a Magia
partilham é do mesmo modus operandi da linguagem, o
performativo (“eu juro”, “eu te condeno”, “eu prometo”), em que, nas
palavras de Agamben, “o significado de uma enunciação (...) coincide com
a realidade que é ela mesma produzida pelo ato da enunciação”. Nesse
sentido, o Direito é, ainda hoje, mágico. O gosto dos juristas pela
linguagem ornamental, pelos brocardos, pela linguagem ritual e pelo
eufemismo, provem dessa ligação: a realidade pode ser criada a partir
de uma linguagem vazia (ou esvaziada, afastada da realidade).
Poderíamos, portanto, dizer que o Direito é, ao mesmo tempo, o saber
quase mágico deste modus operandi, e aquilo que garante que
tal linguagem performativa se transforme em ato – que os contratos
sejam cumpridos, que as leis sejam aplicadas, etc. Todavia, para que o
Direito opere magicamente sobre a realidade, ele precisa se afastar
dela; para que sua linguagem produza efeitos sobre a vida, ela deve se
afastar da linguagem que comunica ou que expressa, o “vernáculo comum”.
5. Portanto, talvez o “juridiquês”
não seja (apenas) uma prática judiciária que remonta ao bacharelismo e à
pseudo-erudição, um resquício antigo que pode ser removido. Antes,
talvez ele seja uma prática judiciária constitutiva daquilo que conhecemos por Direito. Emile Benveniste, ao se deter no fato de que o verbo latino iurare (jurar) é o correspondente ao substantivo ius, que estamos habituados a traduzir por “direito”, argumenta que ius deveria, na verdade, significar “a fórmula da conformidade”: “ius, em geral, é realmente uma fórmula, e não um conceito abstrato”. É interessante notar que Benveniste aponta no ius do
direito romano este caráter “mágico” que viemos assinalando, em que há
separação da linguagem comum e produção de efeitos sobre a realidade –
e mostra ainda que tal caráter estaria presente naquele documento que
os juristas costumam considerar uma das pedras basilares do direito
ocidental, a Lei das XII Tábuas. Diz Benveniste: “iura é a coleção das sentenças de direito. (...) Esses iura (...) são fórmulas que enunciam uma decisão de autoridade; e sempre que esses termos [ius e iura]
são tomados em seu sentido estrito, encontramos (...) a noção de
textos fixados, de fórmulas estabelecidas, cuja posse é o privilégio de
certos indivíduos, certas famílias, certas corporações. O tipo exemplar
desses iura é representado pelo código mais antigo de Roma, a
Lei das XII Tábuas, originalmente composta por sentenças formulando o
estado de ius e pronunciando: ita ius esto. Aqui é o império da palavra, manifestado por termos de sentido concordante; em latim iu-dex. (...) Não é o fazer, e sim, sempre, o pronunciar que é constitutivo do ‘direito’: ius e dicere, iu-dex nos reconduzem a essa ligação constante. (...) É por intermédio deste ato de fala ius dicere que se desenvolve toda a terminologia da via judiciária: iudex, iudicare, iudicium, iuris-dictio,
etc.” Assim, o tipo, a tipificação, é um dos modos pelos quais a
linguagem se converte em fórmula. O funcionamento formulário da
linguagem no Direito, o afastamento total com a linguagem ordinária,
pode ser melhor vista naqueles crimes relacionados justamente à
linguagem. Dois exemplos, um da antiguidade e um muito recente podem
demonstrar como isso diz respeito à própria lógica do Direito. O
primeiro é do famoso orador grego Lísias, que viveu na passagem entre
os séculos V e IV a.C. Em seu discurso Contra Theomnestus, Lísias argumenta que a lei contra a calúnia era inócua, na medida em que proibia que se chamasse alguém de “assassino” (androfonon), mas era incapaz de punir aquele que, como Theomnestus, acusava outrem de “matar” (apektonenai)
seu pai. O outro caso ocorreu em março de 2010, no Supremo Tribunal
Federal. Argumentando contra as cotas, o ex-senador Demóstenes Torres
disse que as “negras (escravas) mantinham ‘relações consensuais’ com os
brancos (seus patrões)”. Que consensualidade, podemos perguntar, é
possível haver entre sujeitos que estão numa relação de senhor e
escravo? Porém, é evidente que nenhum dos 11 magistrados de “reputação
ilibada” e “notável saber jurídico” viu racismo aí. Se o argumento
tivesse sido enunciado de outra forma (com referência a uma “natural
concupiscência” das negras, para dar um exemplo da nefasta tradição
racista do Judiciário brasileiro), talvez acarretasse em uma ocorrência
jurídica de racismo. Para que algo se inscreva na esfera do Direito,
ele precisa se formalizar, ou melhor, se formularizar, se tornar
fórmula. Não se trata aqui apenas de inscrição na legislação, em uma lei
elaborada pelo Poder Legislativo. O Direito pode existir – e continuar
calcado no formalismo – mesmo ali onde não há lei em sentido estrito, o
que é provado pelo Direito costumeiro. A formalização é um processo
maior do que a lei, e engloba toda a máquina judiciária, o que inclui
juízes, decisões judiciais, advogados, juristas, a chamada “doutrina”,
chegando até à sociedade. Trata-se da fixação de conteúdos permitidos
ou proibidos em fórmulas, procedimento que, como vimos com os tipos,
permite sua reprodução. Esse é o paradoxo do que se costuma chamar, em
geral pejorativamente, de “politicamente correto”: ao mesmo tempo que
produz avanços materiais inegáveis, está limitado à própria
formalidade. Ou seja, as fórmulas – aquilo que (não) se pode fazer ou
dizer – repercutem sobre o mundo, modificam o mundo, mas elas não
perdem a sua dimensão de fórmulas. Aqueles que defendem o Direito como
um mecanismo de transformação social (ou mesmo só como uma ferramenta
progressista), mais cedo ou mais tarde esbarram nesse paradoxo: o
Direito só garante aquilo que está consubstanciado em fórmulas (e são
justamente fórmulas que, por vezes, impedem a transformação social). A
partir do momento que se defende o reconhecimento jurídico de certos
direitos que o Direito não reconhece, se está defendendo a formalização
desses direitos. De fato, a oposição entre direito material e direito
formal é inócua: na medida em que a formalização dos direitos é um
processo histórico, todo direito formal já foi apenas um direito
material, e pode voltar a sê-lo. Ninguém é condenado por emitir
discursos de conteúdos racistas (matéria) – só existe o crime de racismo
quando este é enunciado de uma certa forma, por uma certa fórmula.
6. Todo jurista conhece a “pirâmide”
normativa de Hans Kelsen, em que as normas são ordenadas
hierarquicamente (os estratos mais baixos retiram sua validade dos mais
altos), e no topo da qual está a “norma fundamental”. O problema, como
se sabe, é que essa norma fundamental seria vazia de conteúdo, isto é,
pressuposta, imaginária, ficcional (para postular o estatuto da norma
fundamental, Kelsen se baseou na Filosofia do como se, de
Vaihinger, para o qual até mesmos o discurso científico residia, em
última instância, sobre alguma ficção). Ou seja, uma maneira de dar
validade ao sistema, de remetê-lo ao Um (ainda que alguns queiram
ligá-la ao princípio de que os pactos devem ser cumpridos – pacta sunt servanda
–, e outros, muito mais tacanhos, à Constituição). Teríamos, assim, um
sistema de normas com conteúdo baseadas numa norma sem conteúdo e
fictícia. Talvez, porém, fosse mais produtivo entender o Direito de
maneira invertida: um sistema de normas vazias, baseadas numa única
norma com conteúdo: o de que a ficção que conhecemos como Direito é
verdadeira. No momento histórico atual, poderíamos dizer que tal norma
fundamental se cristalizaria em dois princípios: o de que não se pode
alegar desconhecimento da lei (fechamento), e o de que o juiz não pode
se furtar de decidir uma causa (abertura). Ou seja, o conteúdo da norma
fundamental seria o de que o Direito é um sistema, ao mesmo tempo (mas
não paradoxalmente), aberto e fechado – o que quer dizer:
potencialmente Total. Fechamento e disseminação são conexos no Direito.
Para que seja “verdadeiro”, ele não pode assumir seu estatuto de pura
linguagem, ou melhor, tem que anulá-lo, dotando toda linguagem de uma
potencial “eficácia”. Como as normas e os processos não passam de
linguagem sem relação necessária com as coisas, é preciso este princípio
que estabelece que alguma relação entre as palavras (normas) e as
coisas (fatos) tem que se dar. É desse caráter vazio das normas e dos
processos, do seu embasamento na linguagem (e não nas coisas) que
deriva a inflação normativa, processo inerente ao Direito. As normas e
os processos não passam, no fundo, de fórmulas que se invocam para
tentar estabelecer este ou aquele nexo entre as palavras e as coisas –
mas todas invocam, como pressuposto, o próprio nome do Direito, isto é,
a norma fundamental: a de que a ficção é verdadeira. Portanto, as
fórmulas, os tipos, os brocardos, em suma, o juridiquês, são o modo
pelo qual se mantém a ficção, e pelo qual a vida, a linguagem comum, é
capturada na esfera do Direito, ao mesmo tempo em que é afastada dela.
Nas ficções de Kafka, é comum o confronto, e mesmo o entrelaçamento,
entre ficção e direito. O inacabado romance O processo encena
bem este confronto e entrelaçamento. Ao início do romance, quando os
oficiais da lei vão deter o protagonista K., este imagina se tratar
apenas de uma trupe teatral aplicando um trote de aniversário a pedido
de amigos. Ao final, quando seus executores chegam para buscá-lo, K.
novamente quer acreditar que são apenas de atores encenando e
pregando-lhe uma peça. E, de fato, todo o aparato judicial narrado no
romance parece ser uma grande ficção: porões obscuros, audiências em
cortiços, advogados moribundos. Em nenhum momento aparece a Lei, K. não
consegue adentrar a Lei. Em nenhum momento, K. sabe do que está sendo
acusado. O romance inteiro é construído sobre a figura dos mediadores –
cartorários, advogados, oficiais – que encenam um grandiloqüente e
patético processo, uma ficção da qual K. pode a qualquer momento sair. O
Direito e o processo são apenas grandes narrativas ficcionais – mas
estas encenações, ao contrário das teatrais, tomam vidas. O
juridiquês é e não é apenas uma encenação de alguns juristas. É apenas o
modo de narrar uma ficção; mas essa ficção atende pelo nome de
Direito, que captura e reduz a vida, retirando a sua singularidade e
reproduzindo-a como um tipo. Ao “se” da prescrição jurídica,
corresponde um “então”. Um “então” que está ausente na verdadeira
ficção, que é sempre e apenas um “como se”.
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