PICICA: "Espinosa chama de amor17
a alegria das relações que se compõem, e de ódio a tristeza das
relações que não se compõem. O ódio é a alegria do homem triste, uma
alegria indireta, substitutiva, que se alegra da descomposição das
relações de todo e qualquer outro corpo que diminua, ou possa vir a
diminuir, real ou imaginariamente, sua potência18.
A alegria substitutiva extraída da tristeza é sempre
ressentida, não sendo capaz de sincera admiração pelas realizações de um
outro e, muito menos, de solidariedade. Esse é o afeto de toda situação
de dominação, de toda concorrência desmedida, sendo seu principal vetor
a violência de uns contra os outros. Daí a conclusão de Espinosa de que
devemos temer os homens tristes, pois são muito perigosos. São eles
que, impotentes, precisam dos poderes e de sua hierarquia para efetuar
sua potência. Para essa efetuação, todos os meios lhes são válidos."
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Ter, 26 de Abril de 2005 18:40 |
Valter A. Rodrigues**
Para Marília, filha querida, por sua bela vida
e seus belos sonhos interrompidos pela alienada e enlouquecida violência de homens tristes, em memória.
Nos debates contemporâneos sobre a comunicação social e a liberdade de expressão, parece que todos gostariam de concordar sobre o papel fundamental dos meios de comunicação de massa na promoção e sustentação do espaço democrático, na medida em que suas principais funções seriam tanto a de permitir a regulação do poder público pela sociedade civil, informando-a sobre os atos do primeiro, como a de constituir-se como espaço de expressão das entidades representativas dos vários setores que compõem essa sociedade civil.
..,informando-a sobre os atos do primeiro, como a de constituir-se
como espaço de expressão das entidades representativas dos vários
setores que compõem essa sociedade civil. Superfícies privilegiadas de
visibilidade dos acontecimentos, os meios de comunicação seriam, assim, a
principal, para não dizer a única, tribuna democrática na qual o debate
público entre Estado e sociedade civil poderia se realizar. O período
eleitoral, no qual se dá a escolha do conjunto dos representantes que
ocuparão lugares no governo da polis, seria, dessa perspectiva,
o ponto de convergência privilegiado para a composição dessa tribuna,
por ser o momento em que os grupos sociais, em sua multiplicidade,
poderiam designar, cada um, aqueles que representariam seus interesses,
fazendo-os seus porta-vozes.
Sabemos que tal expectativa, entretanto, constitui-se
muito mais como uma idealidade do que uma efetividade. A totalidade dos
grupos sociais, em sua diversidade, não só não consegue se fazer
representar no campo político e nos meios de comunicação de massa, como
sua voz, quando encontra algum lugar de expressão, surge semiotizada
conforme os interesses dos grupos de poder dominantes no espaço social
que, numa variação relativamente restrita, se compõem e se articulam com
os interesses do poder público. Além disso, no caso específico das
disputas eleitorais, e conforme as regras que regem a distribuição do
tempo na televisão ou no rádio entre os partidos e os candidatos,
representantes de grupos minoritários dificilmente conseguem
visibilidade se não compuserem seus interesses com o de outros partidos,
valendo-se do dispositivo da coligação partidária. A esses interesses
se sobrepõem os do mercado, com seus sedutores mecanismos de promoção e
de agenciamento do cidadão como consumidor de produtos, de notícias ou
de idéias. Nem mesmo a cena política, com seus atores, escapa,
portanto, a essa determinação sedutora. Assim, o candidato, qualquer que
seja o grupo que ele se propõe representar, deve ocupar o campo da
visibilidade midiática como, em primeiro lugar, produto consumível pelo
eleitor-consumidor, adaptando-se às regras e procedimentos que
configuram os dispositivos comunicacionais como extensões do mercado
(isto é, do homem em sua forma-consumidor).
Principalmente quando o foco dos debates é posto
sobre a mídia televisiva e seu poder de designação, destaca-se o
privilégio dado por ela ao entretenimento e à produção de recortes
bastante redutivos da realidade conforme as representações dominantes
(que coincidem com os interesses dos grupos que encontram no espaço
público as condições da própria legitimação), com o concomitante recuo
em relação aos temas mais problemáticos que fariam dela um veículo
democrático de educação e conscientização das massas.
Em seu noticiário, cuja função, como "janela para o
mundo", deveria ser predominantemente informativa (e, como tal,
promotora da formação do cidadão e sua consciência), o recurso à
espetacularização do acontecimento de forma a torná-lo atraente ao
telespectador acaba por se sobrepor ao próprio acontecimento,
reduzindo-o à forma predominante de entretenimento que, argumenta-se,
corresponde aos anseios do público. Seja no tratamento do fato político
ou dos fatos do cotidiano, seja nos produtos voltados exclusivamente
para o entretenimento, um mesmo estilo e um mesmo formato se repetem,
fazendo da televisão uma superfície sobre a qual tudo deve ser filtrado
conforme alguns princípios que sujeitam sua linguagem a uma equivalência
generalizada. Tornar espetacular, impressionante, arrebatador o que
quer que apresente é seu imperativo; sustentar cada telespectador em um
estado de expectante excitação nervosa, na demanda de mais e mais signos
para a construção das próprias referências identitárias, sua estratégia
privilegiada de captura emocional.
Compreende-se por que: na luta concorrencial das
redes, a potência de cada canal se expressa em seu poder de manter no
patamar mais alto possível seu índice de audiência, o que, desde o
advento do controle remoto, se reduz a administrar a volubilidade do
telespectador em seu nomadismo por outros canais. À atividade do agente
televisivo deve corresponder, ponto por ponto, a reatividade do
telespectador. Assim, o agendamento da informação, a eficácia
semiotizante da imagem pelo texto, associados ao privilégio da
instantaneidade sobre a duração, da variedade sobre o aprofundamento,
que fazem da mídia televisiva uma eficiente máquina de expressão, mais
que atenderem à demanda de um sujeito suposto como seu público, o criam e
recriam na figura do telespectador. Nesse sentido, podemos compreender a
comunicação televisiva como um poderoso dispositivo de agenciamento
coletivo de enunciação1 que supera, expressivamente, a função
originária de veiculação e democratização da informação e da cultura
que gostaríamos de atribuir, genericamente, aos meios de comunicação de
massa. Assim, por exemplo, o acesso rápido e diversificado à informação
propõe-se ao telespectador como mais significativo que a própria
informação, atendendo mais à demanda narcísica de "estar informado" que a
uma suposta (e ideal) necessidade de compreensão da realidade complexa
que a informação promoveria. Daí que, na concorrência pelos índices de
audiência, a informação seja tratada como um produto efêmero que deve se
apresentar tão atraente e variado como aqueles que, no mercado,
disputam pelo desejo do consumidor. Nesse contexto de multiplicação e
espetacularização do que quer que seja, não cabe, em campanhas
político-eleitorais, a exposição minimamente compreensível de planos e
programas de governo. Prevalece, para todos os candidatos, o cuidado com
a forma de autopresentação, que é primeira em relação ao conteúdo de
suas propostas.
Esse poder limitante das possíveis aspirações
democráticas da sociedade civil exercido pelos meios de comunicação de
massa, claro, não é exclusivo da mídia televisiva (há uma também
poderosa indústria de jornais, de revistas, de livros, de CDs voltada
para a produção "daquilo que o público deseja"), embora seja para ela
que se dirigem mais insistentemente as inquietações quando a discussão
sobre a unilateralidade da liberdade de expressão e o poder de produção
de concepções hegemônicas de realidade dela tributários está em pauta.
Nos debates sobre a democratização dos meios, principalmente até fins da
década de 802, as rádios livres, a imprensa dita
"alternativa", a produção independente de vídeo-documentários sempre
foram destacados como esforços legítimos de resistência à apropriação
monopolista do discurso social pelas grandes corporações de comunicação e
pelos grupos que elas representam no espaço público midiático.
Apropriação que, no Brasil, a televisão, de todas as mídias, foi a que
melhor conseguiu realizar, o que justifica que a consideremos, em seu
atual formato, como paradigmática de uma concepção bastante
problemática, restrita e não raro cínica de liberdade de expressão que,
em nosso modelo neoliberal - "politicamente correto" - de Estado
democrático, afigura-se, o mais das vezes, como fiel reprodutora - mais
precisamente, como duplo - da dissociação entre os projetos e
iniciativas do Estado (cujos representantes continuam, boa parte deles,
firmemente atrelados aos interesses particulares dos grupos dominantes) e
os interesses coletivos. Esses interesses raramente encontram expressão
em nossa frágil sociedade civil, que ainda mal ensaia, neste início de
novo século, a compreensão do que implica ser um indivíduo3 em seu exercício de cidadania, com seus direitos e deveres e, muito menos, com a força da própria voz e da própria ação.
A partir de meados da década de 90, um outro meio de
circulação de informação, a internet, não só passou a concorrer
crescentemente com as mídias tradicionais como determinou alterações na
forma como estas passaram a ser concebidas. Os esforços de maior
interatividade com seus públicos por parte dessas mídias, seguidos da
disponibilização de seus produtos nesse novo meio, expressam um dos
efeitos dessa emergência do espaço virtual da internet. Por sua vez,
grupos minoritários que dificilmente encontram espaços de visibilidade
nas mídias tradicionais constróem seus sites, embora adotando com
freqüência, o que não deixa de ser sintomático e preocupante, formatos
semelhantes aos dos espaços que lhes são, de antemão, negados (e que
eles próprios tendem a negar). Nos debates acadêmicos, assistimos
progressivamente a um recuo do interesse pelas mídias tradicionais a
favor das elucubrações sobre essas novas tecnologias, seus efeitos
sociais e seu potencial econômico e político. Inquietações não
resolvidas em relação às primeiras são agora reinvestidas sobre as novas
possibilidades comunicativas, com apocalípticos e integrados disputando
o privilégio do melhor prognóstico e da indicação de seus melhores
usos.
Numa "terceira via", o sociólogo, filósofo,
historiador das ciências e engenheiro de informática Pierre Lévy passa a
destacar-se, desenhando, a partir da cibercultura, um mundo novo no
qual o conhecimento e a informação seriam a principal riqueza,
poderíamos mesmo dizer sua "moeda corrente". Um mundo que, dispensando
as mediações tradicionais - sendo, nesse sentido, pós-mídia - e
construído pela multiplicidade de vozes que pulsam no campo social, se
constituiria, na percepção de Lévy, como um espaço público efetivamente
democrático, na medida em que, acessível a todo e qualquer um, abriria
linhas de fuga ao caráter verticalizado e hierarquizado do atual espaço
público midiático4. Um mundo que, em vez de organizar-se sob o
filtro dos sistemas de representação das democracias ocidentais, seria
pura expressão da potência humana de pensar, existir e agir, uma
potência não-representativa que se configuraria como uma inteligência
coletiva, por sua vez potencializadora das riquezas humanas de uma forma
inédita em nossa história. Um coletivo, enfim, que, em vez de estar
sustentado pela homogeneidade estatística das representações coletivas,
se constituiria, em sua heterogênese, por uma conectividade mutante,
múltipla, des-hierarquizada e transversalizada, permanentemente aberta e
produtora das próprias singularizações5. A virtualização seria, dessa perspectiva posta por Lévy (1996), "o movimento do devir-outro do humano".
A esse desenho de um mundo possível, contrapõe-se o
atual, de luta pelo monopólio da informação e também pelo monopólio da
cibercultura pelas grandes corporações de comunicação, uma luta na qual a
rizomática internet encontra-se sempre ameaçada de ser saturada pelos
mesmos produtos e discursos que hoje são veiculados pelas grandes mídias
tradicionais6. Uma luta que elide o reconhecimento de que a
internet, longe de ser mais uma mídia que se somaria às já existentes,
com os mesmos critérios de visibilidade e de promoção/produção
identitária7, seria delas, em sua potência de agenciamento de
uma inteligência e de um imaginário coletivo que se auto-engendrariam
continuamente, radicalmente diversa, conforme tem nos indicado Lévy.
Considerando essa perspectiva de luta pelo monopólio
das redes, que é, na realidade, a luta pela manutenção do monopólio do
discurso social conforme as representações dominantes do espaço público
que configuram o ethos contemporâneo e corresponde às lutas
pelo poder no campo político, é interessante perguntarmos pelas
condições de possibilidade de constituição de um espaço público
efetivamente democrático tal como o desenha Lévy, cujas idéias, em nosso
mundo fundado nos sistemas de representação, assemelham-se, para
aqueles que o colocam sob suspeitosa inquirição, como tão-somente mais
uma ficção política tardia entre as muitas que têm ocupado os utopistas
desde o momento em que o Estado moderno estabeleceu-se em sua busca de
um tipo-ideal para a gestão das populações.
Para reconhecermos essas condições, entretanto, é
necessário que escapemos das armadilhas do modelo democrático forjado
pelo Estado moderno, centrado na representação e na separação entre, de
um lado, os modos de constituição da forma-homem8, da
sociedade e do Estado e, de outro, a produção. Se desejamos ler as
formulações de Lévy em sua positividade de maneira minimamente
compreensível é necessário, por exemplo, que não confundamos "forças
produtivas" (como potência) com "relações de produção" (como poder),
pois o que há entre elas, de há muito, é um claro e permanente
antagonismo9; ou o desmanchamento de fronteiras como maior conectividade
entre os homens com sua redução perversa e totalitária ao princípio
único, semiotizante de todo o planeta, da globalização, tão confortável
ao pensamento neoliberal. O que Lévy nos aponta, seja com seu elogio da
técnica como hominizante (produtora da forma-homem), seja com sua
positivação do livre mercado como expressão de um coletivo (um
multitudo) organizado a partir de sua potência produtiva e não conforme
as relações de produção, é, como disse Negri a respeito de Espinosa, uma
"possibilidade ideal de revolucionamento do mundo"10.
Trata-se, em Lévy, ao pensar a técnica como hominizante, de um
pensamento da imanência que se constitui como um novo paradigma ético,
estético e político, de forma que as condições de possibilidade de
constituição desse novo espaço público devem ser buscadas, para além do
campo estrito da comunicação, no próprio campo da realidade em que se dá
a existência humana em suas dimensões éticas, estéticas e políticas,
para, só depois, perguntarmos de que maneira elas seriam componíveis (ou
não) com os atuais procedimentos comunicacionais sustentados pelos
sistemas de representação.
Foi trabalhando a partir desses paradigmas que, em A conexão planetária
(2001), Pierre Lévy surpreendeu seus leitores com uma veemente defesa
do livre mercado, no qual o próprio consumo seria produtor (de
realidade), chegando, em dado momento, a afirmar que não há motivo para
acreditarmos que, como atividade, a especulação financeira seja diversa
da especulação filosófica. Nesse livro Lévy afasta-se da linguagem
filosófica presente em suas outras obras, recorrendo a expressões
bastante comuns e a termos de há muito banalizados, como amor e harmonia universal.
Para os que pensam hierárquica e piramidalmente os saberes e os
poderes, ou que concebem a tecnologia como uma substituta destrutiva do
trabalho humano, a livre atividade econômica como desagregadora da ação
política, o virtual como simulacro do real, este seu último livro soa
ora como uma provocação insuportável, ora como um descartável delírio
profético-utópico. Estaria o autor tão fascinado pelos desenhos que
realizou em seus outros livros, teria levado a tal extremo suas
especulações sobre o ciberespaço a ponto de entregar-se a exercícios
triunfalistas, positivistas e futurológicos de tom messiânico? Se seus
críticos aguardavam um bom momento para o ataque, Lévy aparentemente
lhes oferece graciosamente as armas. Entretanto, necessário frisar, só aparentemente, como veremos na seqüência.
Poder (POTESTAS)
Nas considerações feitas até o momento sobre a mídia televisiva e
as representações políticas, poder e potência, quando surgiram, foram
trabalhados deliberadamente como indissociáveis, pois é assim que eles
são representados pelo senso comum (mas não só), justificando que se
tome como verdadeira a afirmação de que o que todos desejamos, ou
devemos desejar, é o poder, quaisquer que sejam nossas escolhas
políticas, nossa posição social ou nossas condições de existência, por
ser através dele que efetuamos nossa potência. Dos grandes - o
poder das elites, o poder do Estado, o poder da mídia, o poder(?) das
massas - aos pequenos poderes - dos pais sobre os filhos, do patrão
sobre o empregado, do professor sobre o aluno, do homem sobre a mulher e
as crianças, da "pessoa" sobre o indivíduo -, assim como o poder dizer,
o poder persuadir, o poder seduzir, o poder fazer, o poder consumir, é
sempre em torno dessas duas instâncias, poder e potência, que, segundo
essa ótica de indissociabilidade e subordinação, são travadas todas as
lutas em que nos envolvemos em nossas trajetórias de vida. Nas disputas
por cargos políticos, por exemplo, é isso que não cessa de ser reiterado
e confirmado por cada candidato em suas estratégias para conquistar o
voto do eleitor: conheceremos toda sua potência de realização tão logo o
autorizemos no lugar de poder que ele reivindica ocupar. Uma potência,
importante frisar, que é afirmada como sendo dele enquanto
personagem, mas não, salvo raramente, do coletivo que faria dele o
legítimo representante de suas aspirações e interesses, autorizando-o,
pelo voto, a agir em seu nome11.
Ainda sob tal concepção, é mais livre aquele que
detém algum poder do que aquele que não tem poder nenhum. Não queremos
ser governados, mas sim governar, já nos indicava Espinosa, e se nos
sujeitamos a determinadas ordens, o fazemos sob o efeito de múltiplos
dispositivos institucionais, políticos e jurídicos que, mais fortes do
que nós, nos inscrevem sob as leis de um país, de uma instituição, de
uma organização, de uma religião, as quais somos incitados a aceitar
para que possamos garantir algumas prerrogativas que nos permitam
exercer, ainda que relativamente, nossa liberdade e nossa potência.
Sendo essa uma decisão racional, é mais livre aquele que faz
racionalmente e pela própria vontade suas escolhas do que um outro que
as faz emocionalmente. Tal é a idéia do livre-arbítrio: dados
determinados caminhos, somos livres para escolher, pela via
raciocinante, aquele que nos é mais conveniente, isto é, aquele que
produzirá nosso Bem.
A obediência àquilo que nos vem do exterior,
entretanto, é menos uma escolha que se faz livremente, e mais uma
determinação à qual estamos obrigados a ceder, por serem as forças
externas mais fortes que nós, de forma que possamos ter os meios para
perseverar na existência, isto é, exercer nossa potência de agir e de
pensar. Por estarmos obrigados a ela, com ou sem nosso consentimento,
sempre que possível, procuramos escapar aos seus limites. Transgredir
uma lei ou uma ordem é uma forma, mesmo que muitas vezes canhestra ou
deletéria, de exercitar a liberdade; afinal, não há lei que não contenha
em si a possibilidade de sua transgressão. Por essa razão, uma das
tarefas dos dispositivos de poder é tanto assegurar a obediência como
criar algumas linhas de fuga a suas forças. Sob determinados filtros que
permitam a sustentação de seu controle, oferecem-se algumas liberdades
de forma a evitar a violência da transgressão disruptiva - que
desestabilizaria as relações de força que sustentam o poder -,
liberdades essas que tornam não só a obediência suportável como nos
levam a desejar o poder que nos sujeita.
Para o trabalhador, por exemplo, submetido à rotina
cotidiana das mesmas e repetitivas atividades, recebendo por elas quase
sempre baixos salários, são oferecidos prêmios ou promoções pelo bom
desempenho, além de períodos de descanso, lazer e entretenimento que se
intercalam com o tempo dedicado ao trabalho. Que esses períodos de
repouso sejam um momento de descompromisso, que sejam ocupados de forma
prazerosa, que sirvam para a renovação das forças que serão
reinvestidas, ao retornar, na lide do trabalho, essas são a expectativa e
a recomendação sobre o bom uso do tempo livre. É para esse "bom uso"
que uma poderosa indústria de entretenimento e lazer é colocada à sua
disposição.
Além disso, se somos levados à obediência em relação
às nossas atividades produtivas ou às regras da comunidade à qual
pertencemos, sempre nos resta, dependendo de quanto ganhamos com essas
nossas atividades, a liberdade de dispormos de parte desse ganho no
consumo de bens, objetos e serviços. Se há, em nossa sociedade, uma
liberdade comum a todos, cuja única restrição está na quantidade de
moeda que cada um dispõe para gastar, é a do consumo12.
Inevitavelmente, em um mundo subsumido como mercado, é no consumo que
encontramos, todos, uma das ocasiões privilegiadas de expressarmos nossa
potência, por ser o poder de compra que nos coloca, em progressão
ascendente, na via da realização das felicidades que nos são ofertadas
para a expressão de nossa potência e liberdade de agir e existir
enquanto fruidores daquilo que o mundo-mercado nos oferece. No lugar das
necessidades, os desejos, esse é o irresistível artifício que nos
captura e ao qual aderimos sem resistência.
Existem, paralelas à do consumo, sem deixar de estar a
ele ligadas, outras felicidades e liberdades que podemos realizar. Na
vida privada, temos, a princípio, a liberdade de amar e escolher
livremente nossos parceiros amorosos e sexuais. Podemos mesmo dizer que,
de todas as potências humanas, poucas são mais valorizadas do que a
sexual. Não à toa, é para as inquietações sobre a potência e o bom
desempenho sexual que, de acordo com os discursos correntes, confluem
todas as demais, mesmo quando falamos do poder político, do poder
econômico, do poder de domínio, do poder de produzir ou de consumir. Se
nada é mais triste para um homem de poder que se descobrir impotente,
por ser aí que ele encontra, do poder, sua vacuidade, aquele que não
detém nenhum poder busca realizar sua potência quase toda nas alegrias
de sua vida sexual. Se ele a tem minada ou restringida, sua infelicidade
torna-se insuportável, sua auto-estima se anula e amargura sua vida a
ponto de marcá-lo como indelevelmente fracassado. Para atendê-lo, uma
também poderosa indústria voltada para as alegrias e prazeres do sexo,
que se alternam com as representações da potência indissociada e
subordinada ao poder, é posta à disposição de seu imaginário,
permitindo-lhe realizar, ainda que vicariamente, o que fica subtraído à
experiência vivida. Em suas imagens, reafirma-se que é do prestígio que
temos como seres de poder que emana nossa atratividade e nossa potência,
assegurando a cada um a certeza de si necessária para propor-se (ou
impor-se) aos demais como objeto de amor e de admiração. Na moderna
sociedade midiática, centrada na visibilização das figuras de prestígio
(que freqüentemente centram sua realização no sexual), é isso que não
cessa de ser reiterado cotidianamente. A disputa pela presença na mídia,
em particular a televisiva, que é estimulada pelos programas populares
de auditório e pelos reality shows, nos indica o quanto
celebridades e anônimos os mais diversos procuram "contaminar-se" do
poder da mídia como estratégia de auto-potencialização e realização. Não
à toa, também nossos políticos disputam espaço nesses programas (como
na festejada e profusamente divulgada participação de alguns reelegíveis
no Show do Milhão de Sílvio Santos, no final de 2001, que resultou num verdadeiro ensaio de prévia eleitoral).
Tais são as liberdades e matérias de expressão com
que contamos para nos situarmos enquanto participantes do espaço público
midiático, sendo com elas que se produzem os ideais de bem-estar que
condicionam nossa existência. Se estar presente na mídia corresponde
ainda ao anseio de fazer-se ouvir, de dar materialidade à própria voz,
rapidamente se apreende que a própria voz dificilmente encontrará espaço
no conjunto das outras vozes se não se ocupar minimamente esse lugar de
prestígio como pessoa que é, a cada um, antecipado. O que temos aqui
reafirmada é ainda e novamente a indissociabilidade e subordinação
poder-potência, construtora de uma liberdade que se mostra, a um olhar
mais acurado, bastante restrita. Provavelmente por essa razão, as lutas
das minorias pela expressão e legitimação de suas vozes, que até os anos
80 mostravam-se politicamente intensas, recuaram expressivamente a
partir dos anos 90, momento em que, aos discursos sobre a democrática
convivência da multiplicidade de vozes no mundo sem fronteiras da
globalização, sobrepôs-se a uniformidade politicamente correta dos
discursos das belas almas sobre a aceitação das diferenças por redução
ao idêntico. Poderíamos pensar que parte das forças investidas nas lutas
pela expressão política e cultural, ao serem desintensificadas e
descodificadas13 por esses discursos, tenham revertido para a
mais imediata, destrutiva e crescente violência que se presentifica
atualmente no espaço urbano. Para alimentá-las, não faltam "pegadinhas",
"videocacetadas" e inúteis competições promovidas pelos reality shows
televisivos. Além, claro, das imagens de corrupção, quase sempre
impune, que aprendemos a reconhecer associadas à classe política e a
alguns representantes das elites econômicas.
Como podemos ver, o poder é, assim, em todos os
sentidos, parte de um mundo representativo, sendo sua espetacularização a
forma privilegiada de reconhecimento da potência em sua exterioridade.
Uma espetacularização que faz dele uma alegria e um prazer, por menor
que seja o poder de que um personagem qualquer esteja investido14.
Potência (POTENTIA)
Foram destacadas, até o momento, as alegrias
disponíveis àqueles que são, de uma maneira ou outra, governados,
alegrias essas bastante privilegiadas pela mídia televisiva. A elas
somam-se e se sobrepõem as alegrias das celebridades-pessoas e seu
poder, seja ele político, econômico, artístico... Entretanto, em seu Tratado teológico-político, indica-nos Deleuze (www.webdeleuze.com15),
Espinosa coloca-nos um problema ético e político fundamental: por que
razão aquele que tem o poder, em qualquer domínio, tem, ao mesmo tempo, a
necessidade de afetar de tristeza aqueles que mantém sob suas ordens?
Para o exercício do poder, nos diz Espinosa, a tristeza é necessária,
pois para governar, para sujeitar aquele que se deseja ter sob domínio, é
necessário inspirar nele paixões tristes.
Para compreendermos a radicalidade dessa afirmação do
filósofo, é necessário que tomemos tristeza não em seu sentido vago,
mas com o rigor que ele confere a esse afeto. Para Espinosa, a tristeza é
o afeto que envolve a diminuição da potência de atuar e da força de
existir de um corpo, e a alegria o que envolve seu aumento. Ora, a
essência do homem é sua potência de agir, pensar e existir em ato, pois é
assim que ele persevera em sua existência. Uma essência que não remete
ao que se é, mas ao que se pode. Assim, contrariamente ao que foi dito até o momento, a efetuação de sua potência é tudo o que pode um corpo,
sendo o afeto, em sua variação contínua, essa efetuação, tristeza
quando a potência é diminuída, alegria quando é aumentada. Espinosa
desfaz, com isso, o argumento de que é o poder o que todos queremos ou
devemos querer, por ser através dele que efetuaríamos nossa potência,
pois, contrariamente, o poder é sempre de efetuação da potência, não sua
condição. Assim, afirmar que o poder é condição da potência, de sua
perspectiva, seria uma grande bobagem, o que não impede que os homens se
engalfinhem em uma luta incessante e feroz pelo poder, a um ponto tal
que não saberiam existir se não tivessem a quem ou a que comandar e
fazer obedecer. É nesse sentido que o poder faz parte de um mundo
representativo, ao qual pertence também o mundo dos signos e da
linguagem, com sua força imperativa de ordem, de mandato, de
agenciamento do fazer-fazer. A potência, ao contrário, não é
representativa, não é vontade de algo, é tão somente o que pode um
corpo, pertencendo assim às relações, e se expressa, diminuída ou
aumentada, nos afetos que a efetuam no encontro de corpos (humanos e
não-humanos, já que todas as coisas que existem são corpos, cada uma com
sua própria potência). Assim, quando Espinosa fala de potência e de
afetos, isto é, de aumento ou diminuição de potência, ou quando
Nietzsche fala de vontade de potência, o que ambos têm em mente não diz
respeito à conquista de um poder qualquer. Eles diriam que o único poder
é, afinal, a potência. Diz Deleuze: "A saber: aumentar sua potência é
precisamente compor relações tais que a coisa e eu, que compomos
relações, só somos duas sub-individualidades de um novo indivíduo
formidável"16. Dessa forma, quando dois corpos se compõem em
suas relações um com o outro, há aumento de potência de ambos, quando um
corpo descompõe o outro em suas relações, há diminuição de potência
deste último. Compreende-se, assim, porque aquele que detém o poder
precisa da tristeza do outro, isto é, da diminuição de sua potência,
para compor suas próprias relações.
Se compreendermos isso, compreenderemos também a
razão da transformação da vida e dos acontecimentos do mundo em
espetáculo investida pela mídia televisiva, principal acesso às riquezas
e acontecimentos do mundo de boa parte da população: perante homens
tristes, que têm suas relações descompostas no jogo de forças, todos os
esforços para arrebatá-los de sua tristeza, de emocioná-los propondo a
eles alegrias substitutivas, essas alegrias do outro que se empenham em
animá-lo, jamais serão vãos.
Mais uma observação, antes de caminharmos para uma finalização provisória deste texto. Espinosa chama de amor17
a alegria das relações que se compõem, e de ódio a tristeza das
relações que não se compõem. O ódio é a alegria do homem triste, uma
alegria indireta, substitutiva, que se alegra da descomposição das
relações de todo e qualquer outro corpo que diminua, ou possa vir a
diminuir, real ou imaginariamente, sua potência18.
A alegria substitutiva extraída da tristeza é sempre
ressentida, não sendo capaz de sincera admiração pelas realizações de um
outro e, muito menos, de solidariedade. Esse é o afeto de toda situação
de dominação, de toda concorrência desmedida, sendo seu principal vetor
a violência de uns contra os outros. Daí a conclusão de Espinosa de que
devemos temer os homens tristes, pois são muito perigosos. São eles
que, impotentes, precisam dos poderes e de sua hierarquia para efetuar
sua potência. Para essa efetuação, todos os meios lhes são válidos.
Para não concluir
Nosso mundo associa ter informação, deter
conhecimento, com poder. No meio comunicacional, principalmente, poder
de fogo da mídia é o poder de conseguir e dar a informação em primeiro
lugar, da forma mais mobilizadora e contundente possível. Nos embates
políticos, a "verdade" a ser dita por uns é sempre a temível ameaça
destrutiva de exposição do "segredo" de outros. Nas organizações, é
construído todo um sistema de segurança e de vigilância em torno do
saber e da informação, garantia sempre preservada de toda aspiração
monopolista. Na academia, o saber muitas vezes torna-se propriedade de
alguns, porque ele hierarquiza e dá legitimidade àquele que acumula
títulos, autorizando-o até mesmo a desqualificar o que não porta título
algum, mesmo quando o conhecimento que este expõe autorize seu
reconhecimento. Raros são os que, à revelia dos lugares ocupados,
compartilham seu conhecimento, que compõem com o outro suas relações.
Com isso, o mais das vezes, a identidade poder e saber acaba por conferir ao conhecimento a mesma forma estéril do orgulho narcísico daquele que o detém.
Entretanto, o conhecimento, o verdadeiro
conhecimento, insiste Espinosa, faz parte das relações, pertence ao
mundo afetivo dos encontros de corpos (humanos e não-humanos), e não a
esse mundo das representações que, ainda que lhe seja necessário, não
constitui sua condição19. Por essa razão, se pudéssemos
conhecer livremente em nossos encontros, diz Deleuze, não precisaríamos
dos signos ou da transcendência da idéia sobre o corpo e suas afetações
e, muito menos, da hierarquia das representações.
Compreende-se, portanto, o "risco" de uma inteligência coletiva, de uma multitudo
organizada a partir de sua potência produtiva, em um amoroso
compartilhamento do que cada um sabe e pode ensinar e aprender com o
outro, como sonha Lévy com o ciberespaço e como pensou Espinosa com sua
filosofia da liberdade na efervescente e selvagem Holanda do século
XVII. Num mundo como esse, des-hierarquizado e virtualizado pela técnica
- no qual o desejo não seria uma falta a realizar, mas pura força de
produção de real social (cf. Rolnik, 1989); o acontecimento, não um
espetáculo a noticiar, mas a experiência de um mundo vivível; a ação
política, não o exercício de alguns, mas sim forma privilegiada de
participação de todos na vida da cidade -, o poder e suas lutas não
passariam de um falso problema, um problema que ocuparia somente os
homens tristes.
Ao pensarmos sobre mídia e política hoje, o primeiro
impasse que se apresenta é, portanto, o do próprio sistema de
representação e suas formas de legitimação do poder.
Referências Bibliográficas
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HABERMAS, J. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984.
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RODRIGUES, Valter A. Corpo, técnica e mídia: simulações de potência; subjetividade, programação televisiva e mercado. São Paulo, Bibl. Prof. José G. Veiga, FCSCL, 2001 (Dissertação de Mestrado).
ROLNIK, Suely. Toxicômanos da identidade: subjetividade em tempo de globalização. In LINS, Daniel (org.) Cultura e subjetividade; saberes nômades. Campinas, Papirus, 1997. p. 19-24.
________. Cartografia sentimental; transformações contemporâneas do desejo. São Paulo, Estação Liberdade, 1989.
www.ddic.com.br, criado em 1997; captura mais recente em 05.01.2002.
Notas
*Texto originalmente publicado em Comunicação na pólis: ensaios sobre mídia e política, coletânea organizada por Clóvis de Barros Filho (Petrópolis, Vozes, 2002, 364 p.). p. 209-226.
** Psicanalista e analista institucional; professor
de Psicologia e pesquisador do Centro Interdisciplinar de Pesquisa da
Faculdade Cásper Líbero; editor da revista Líbero, do Programa
de Pós-Graduação da FCL; tem vários ensaios publicados em revistas
acadêmicas e de divulgação, entre eles: Sade e a Revolução (Gaia, São Paulo, set./dez. 1989, Ano I, no. 2, São Paulo, USP/Brasiliense, p. 85-94); O toque da mídia: subjetividade no espaço público mediático (comunicação&política, Ano XIII, no. 22/25, Cbela, 1993, p. 47-56); América: no man's land, no land's man: composição em 15 movimentos e 1 ethos (Cadernos de Pós-Graduação, Instituto de Artes da Unicamp, ano 4, v. 4, no. 2, 2000, p. 73-82).
1 O conceito de "agenciamento coletivo de enunciação" foi proposto por Félix Guattari e é amplamente discutido em Micropolítica;
cartografias do desejo (Guattari & Rolnik, 1986). Resumidamente,
podemos dizer que a subjetividade, longe de ser uma instância psíquica
relativamente estável, embora susceptível a mudanças no contato com o
meio, é essencialmente produzida e modelada por agenciamentos de
enunciação que implicam o funcionamento de máquinas de expressão o mais
diversas (extrapessoais, como os sistemas tecnológicos, econômicos,
icônicos, de mídia....; infrapessoais, como os sistemas de percepção, de
sensibilidade, de afeto, de desejo, de representação, de imagens...)
2 O seminário Rede imagínária; televisão e
democracia, realizado pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo e
publicado em 1991 pela Companhia das Letras (organização de Adauto
Novaes), apresenta, em seus 29 textos, um amplo painel desses debates.
Ver, especificamente, para o enfoque aqui proposto, o texto de Fábio
Konder Comparato, É possível democratizar a televisão?, p. 300-308.
3 A noção de indivíduo nasce com a de cidadão, sendo,
assim, um conceito político, antes que psicológico. Por essa razão,
como observou Laymert Garcia dos Santos (Guattari & Rolnik, 1986:
57-60), é difícil pensarmos os meios de comunicação no Brasil com as
mesmas categorias utilizadas nos países europeus ou nos EUA. "Nos
Estados Unidos ou na Europa, o ponto de partida é uma pergunta dupla:
por um lado, o que os meios produzem para a massa de indivíduos
despersonalizados, anônimos, intercambiáveis, descodificados, essa
categoria denominada 'trabalhador livre'; por outro lado, o que o
trabalhador livre produz a partir dessa produção, ou seja, o que fabrica
com os enunciados e as imagens que o bombardeiam o tempo todo. O
terreno em que a reflexão se move sempre coloca como requisito básico o
trabalhador livre, que se constitui num dos dois elementos fundamentais
do capitalismo - o outro sendo, evidentemente, o capital." Ora, continua
Laymert, "para que os meios possam atuar, é necessário que exista o
trabalhador livre, esse indivíduo despersonalizado, esse indivíduo que,
do ponto de vista do sistema capitalista, só conta como força de
trabalho, embora diga o tempo todo: 'eu, eu, eu'. (...) Os meios
constituem uma espécie de muro de linguagem que propõe ininterruptamente
modelos de imagens nas quais o receptor possa se conformar - imagens de
unidade, imagens de racionalidade, imagens de legitimidade, imagens de
justiça, imagens de beleza, imagens de cientificidade. Os meios de
comunicação falam pelos e para os indivíduos." No Brasil, a situação é
outra, pois, aqui, ser indivíduo não significa ter os mesmos direitos e
deveres que os demais, mas sim ser um zé ninguém. Aqui, os meios,
principalmente a televisão, falam do mundo das pessoas, das
superpessoas, funcionando conforme o sistema hierárquico e autoritário
das relações pessoais (prestígio, respeito, favor, apadrinhamento...) e
marcando a superioridade da pessoa como uma qualidade dos que, em última
instância, poderiam até mesmo se colocar acima da lei (como na
conhecida frase destacada pelo antropólogo Roberto Da Matta como
caracteristicamente brasileira: "Você sabe com quem está falando?"). Daí
que, o indivíduo, quando aparece na mídia, o faça comumente através do
registro policial, momento em que se personaliza pela violência (seja
como agressor ou vítima), ou como figura de prestígio no carnaval, no
futebol, na indústria de entretenimento... O que o telespectador mais
busca, nesse contexto, é a estratégia adequada, ainda que só realizável
imaginariamente, para tornar-se também pessoa à maneira dos que assim se
fazem reconhecer, sendo dessa disposição que deriva parte da potência
modelizadora da televisão brasileira, assim como sua acintosa
espetacularização das desigualdades sociais como escândalo indesejável
reiterado como sem solução. Quando se discute a relação entre televisão e
violência no Brasil, essa redução incondicional de todo o imaginário
social à figura da pessoa e suas estratégias de sucesso deve ser levada
em conta na compreensão do muitas vezes espúrio e anti-social papel da
televisão na sustentação e incitação do atual quadro social
ultraviolento. O respeito aos direitos e limites do outro
definitivamente não faz parte de seu espetáculo.
4 Quando discutimos o espaço público, o fazemos, da
ágora grega à sociedade burguesa, referindo-nos aos setores mais
diferenciados e emergentes da sociedade, àqueles, enfim, que têm voz e
podem se entregar ao debate racional dos problemas que se apresentam no
viver social (cf. Habermas, 1984). Se da ágora grega estavam excluídos
as mulheres e os escravos, do espaço público burguês estiveram
excluídos, desde sua constituição, os grupos minoritários. O espaço
público midiático, do qual as grandes corporações de comunicação detém o
monopólio, mantém essa coincidência na seletividade dos que têm direito
de expressão e sustenta suas exclusões, mesmo quando aparenta operar
inclusões, ao incorporar as heterogêneses que estavam anteriormente
excluídas da parte homogênea do social, posto que as subsume conforme as
semiotizações dominantes. Diferentemente, o ciberespaço é segmentário,
se distribui rizomaticamente, proliferando pela conectividade das linhas
que o atravessam, o que torna impossível a organização de um ponto
central de articulação e permite em sua rede a presença múltipla,
não-exclusiva, não-hierárquica e não-regulável da diversidade dos grupos
que compõem o campo social. Ao se constituir como espaço flexível de experimentação de formas heterogêneas de expressão, a internet seria hoje o locus
privilegiado para o convívio das diferenças e suas mútuas afetações e,
em decorrência, para a experiência da alteridade e da afirmação de uma
diferença não redutível ao idêntico.
5 Tal é a perspectiva proposta pelo software GingoÓ (Árvores de ConhecimentosÓ),
desenvolvido por ele em cooperação com o matemático Michel Authier, em
1992. Valendo-se de cálculos algoritmicos, o software permite resolver o
paradoxo proposto por Condorcet, no século XVIII, que, questionando a
efetividade da democracia representativa articulada pelo exercício do
voto, demonstrara que a escolha majoritária e intransitiva de um
candidato estava longe de resultar das escolhas transitivas entre vários
candidatos feitas pelos indivíduos que compõem o coletivo. Ao
contrário, dizia Condorcet, a eleição de um dos candidatos A, B e C pela
simples somatória de votos podia resultar na escolha de A, embora,
analisando-se as preferências dos eleitores, em suas escolhas
transitivas, o preferido fosse C. O que Condorcet questiona com esse
paradoxo é a possibilidade de cada indivíduo poder se fazer representar
no coletivo sem que sua singularidade desapareça. O software Gingo
permite cartografar uma coletividade (uma comunidade, uma organização,
uma instituição...) e, ao mesmo tempo, identificar a posição e
participação de cada indivíduo na construção dessa coletividade (maiores
informações sobre o software e seus usos podem ser encontradas no site www.ddic.com.br).
6 Como confirma a proliferação de sites que visam
intensificar a visibilidade de personalidades midiáticas, de programas
televisivos, de seções de jornais.
Essa promoção/produção identitária é sucintamente
discutida por Rolnik em Toxicômanos da identidade (in Lins, 1997:
19-24). Nesse interessante texto, a autora mostra a similaridade entre a
aderência identitária aos produtos oferecidos pela mídia (aos quais
chama de "identidades prêt-a-porter") - aderência que ela
traduz como formas de proteção e resistência, pelos sujeitos, em relação
à aceleração das transformações sociais, culturais e de trabalho - e o
consumo das inúmeras drogas hoje disponíveis no mercado, das
farmacêuticas e do narcotráfico aos manuais de auto-ajuda. Tanto a
aderência identitária como o consumo de drogas (às quais a autora agrega
as dietas, as práticas de body building e as múltiplas
expressões religiosas hoje em voga) funcionariam como desintensificantes
das forças desestabilizadoras e mobilizadoras do fora, não suportadas
pelos sujeitos em seus esforços para manter de forma relativamente
estável seus próprios territórios existenciais. Essa perspectiva foi por
nós retomada e desenvolvida como um importante componente, entre outros
utilizados para a formação de um corpo conceitual, na leitura das
afetações corpo-técnica-mídia em Corpo, técnica e mídia: simulações de potência (2001).
8 Isto é, tanto a forma do homem - que
compreende suas categorizações como um "animal racional", portador de
uma interioridade, de linguagem, personalidade etc. - como o homem como
forma - suas pertinências, seus padrões de reconhecimento em tais e tais
categorias sociais, econômicas, étnicas, estéticas etc.
9 Essa relação e seus antagonismos é conhecida: as forças produtivas estão inscritas nas relações de produção de uma forma tal que as primeiras são reguladas e submetidas, conforme as relações de produção, ao poder daqueles que detém a propriedade material dos meios de produção. Nesse quadro, o que cada um pode produzir está estritamente determinado pela posição que ocupa nessas relações de produção.
10 Assim se refere Negri (1993: 23) à anomalia
espinosana na Holanda do séc. XVII, momento identificado por ele como de
um emergente e experimental capitalismo selvagem buscando compor-se em
contrafluxo aos poderes monárquicos dos países seus vizinhos. Valer-me
dessas mesmas referências em relação a Lévy não é fortuito. Lévy
inscreve-se no mesmo movimento de produção de pensamento de Negri,
Deleuze, Guattari, que, entre outros, são fecundos leitores de Espinosa.
Como Espinosa, Lévy também parece recusar a forma mistificada de
democracia representativa, fundamentada em uma concepção jurídica de
Estado, a favor de um livre e auto-regulável fluxo produtivo no social.
11 Um exemplo já clássico no Brasil é o de Fernando
Collor e sua campanha, em 1989, que acabou por colocá-lo na presidência
do país. Foi nesse período que o marketing político configurou-se como
estratégia eleitoral prínceps, marcando os rumos de todas as campanhas
eleitorais brasileiras desde então. Collor é, exemplarmente, um
personagem inventado pela mídia a partir de atributos pessoais - como
força, juventude, determinação, agressividade - que, por si,
legitimariam sua competência política como estadista. Após sua eleição,
nas imagens dos primeiros 100 dias de seu governo - cujas medidas
autoritárias e intempestivas atordoaram o país - sua assessoria de
imprensa continuou investindo no personagem midiático construído durante
a campanha, multiplicando as encenações legitimadoras de uma suposta
competência que o apresentavam sempre disposto, quer descendo a rampa do
Planalto, quer pilotando jet ski, dirigindo Scanias ou fazendo cooper
pelas trilhas brasilienses; encenações que o figuravam como personagem
ativo pleno da potência que o poder lhe conferia. Deu no desastre que
todos já conhecemos.
12 Em Vida - o filme, o crítico da cultura Neal Gabler
(1999) faz uma minuciosa análise da cultura de entretenimento cultivada
nos EUA, demonstrando que o próprio consumo transformou-se em uma forma
de entretenimento, o qual, por sua vez, expressa a concepção de
liberdade e de democracia gestada nesse país e expandida para o resto do
planeta após a II Guerra Mundial.
13 Do francês décodés, derivado de décodification, termo utilizado por Deleuze & Guattari para indicar "código - de sistema semiótico, de fluxo social ou material - desmanchado", diverso de "decodificado", que indica "código analisado, apreendido, traduzido em outro código" (cf. Guattari & Rolnik, 1986: 57, nota 7). 13 Do francês décodés, derivado de décodification, termo utilizado por Deleuze & Guattari para indicar "código - de sistema semiótico, de fluxo social ou material - desmanchado", diverso de "decodificado", que indica "código analisado, apreendido, traduzido em outro código" (cf. Guattari & Rolnik, 1986: 57, nota 7).
14 Algo que o mote da revista República (D'Ávila
Comunicações Ltda.), lançada em novembro de 1996, em plena euforia
neoliberal, explicitava bem: "O prazer da política e as políticas do
prazer". Um mote que buscava se realizar em seus textos, no formato que
lhe deu origem, que celebravam as personalidades de destaque na política
e na sociedade brasileira de uma maneira charmosa e consonante com a
autopercepção de seus atores.
15 Não cabe, aqui, uma apresentação do pensamento
de Espinosa, somente alguns muito breves recortes. No site indicado
podem ser encontradas as transcrições, em espanhol, de um curso sobre o
filósofo ministrado por Deleuze, no início dos anos 80, em Vincennes.
Para uma breve introdução ao seu pensamento, há, disponível em
português, a obra de Marilena Chaui, Espinosa, uma filosofia da liberdade (São Paulo, Editora Moderna, Col. Logos, 1995). Para estudos mais aprofundados, ver A nervura do real, de Marilena Chaui (São Paulo, Companhia das Letras, 1999), Spinoza y el problema de la expresión, de Gilles Deleuze (Barcelona, Muchnik Ed., 1975) e A anomalia selvagem: poder e potência em Spinoza, de Antonio Negri (1993).
16 O que Deleuze nos indica com esta
afirmação é que, mais que uma soma de duas individualidades, num
encontro de corpos (seja esse um encontro amoroso, de negócios, de
parceria na produção de conhecimento ou de uma composição corpo-objeto
técnico, no qual se supõe que o objeto somente amplificaria a força do
corpo, como no clássico exemplo da alavanca), o que se produz é um
terceiro corpo, com seus próprios componentes, suas próprias
especificidades e sua própria potência. Esse terceiro corpo, embora se
compondo com os componentes de um e outro, é, enquanto outro
corpo, diverso de um e outro, quando compreendidos separadamente. Por
exemplo, a parceria Deleuze & Guattari, que se realiza com a obra O Anti-Édipo; capitalismo
e esquizofrenia, de 1972, permitiu a produção de um pensamento que,
embora se compondo das trajetórias de um e outro, é único e diverso de
seus trabalhos individuais. Após essa obra, nos anos subseqüentes,
podemos dizer que há uma obra de Gilles Deleuze, outra de Félix Guattari
e uma terceira, de Deleuze & Guattari (ver, a respeito, o texto
Rizoma, em Mil mesetas; capitalismo y esquizofrenia, 1988: 9-32; há edição brasileira, lançada em 5 vol.: Mil Platôs; capitalismo e esquizofrenia, São Paulo, Editora 34, 1995, v. 1). A concepção que faz Espinosa da multitudo deve ser compreendida dessa maneira, e não como simples reunião de muitas individualidades. A multitudo
é, ela própria, uma individualidade, com sua própria potência, maior e
diversa que a potência de cada corpo que entra em sua composição, daí
podermos entendê-la, com Lévy, como uma inteligência coletiva.
17 Espinosa escreveu numa época em que esta
palavra não estava ainda banalizada. O mesmo não ocorre com Lévy no
momento atual, quando falar de um Amor Universal soa, para ouvidos
irritados, no mínimo piegas.
18 O que, em última instância, pode
ser qualquer um e outro corpo. Não inocentemente, o que mais se propõe
hoje ao telespectador para o entretenimento midiático são as
"pegadinhas" e as "videocacetadas" dos programas televisivos dominicais.
Rir das confusões e das descomposições do corpo do outro que elas
promovem, eis uma clara expressão de uma alegria derivada de uma
tristeza ressentida. O nada que se é conforma-se ao nada a que o outro é
reduzido. Daí à violência contra o outro, o passe é direto e
coletivamente consentido, já que tornada banal. Similarmente, a
desqualificação do outro como estratégia para a afirmação de si mesmo,
que prevalece sobre a exposição das próprias qualidades, configuradora
de boa parte dos discursos eleitoreiros e tônica dominante nos debates
televisivos entre candidatos, não é diversa desses entretenimentos
dominicais. "Que o mais hábil triunfe", por mais funesto seja o destino
dos que o escolhem.
19 Podemos compreender melhor isso a
partir da dinâmica de nossa atual cultura, que reduz todas as atividades
à homogeneidade dos critérios de operacionalidade do mercado, que na
mídia se traduz na visibilidade e desempenho dos personagens que ela
privilegia como "celebridades". Assim como estar na mídia é condição
para o sucesso, algo crucial, por exemplo, para os candidatos políticos
nos períodos eleitorais, que disputam segundos de presença nos horários
gratuitos - mesmo que tenham de compor, para isso, coligações
partidárias das mais espúrias -, na atual universidade operacional (ou
de serviços), portar um título acadêmico qualquer ou publicar alguma
coisa em algum lugar supera em valor a competência do portador do título
ou a qualidade do conhecimento transmitido por sua produção. Essa
condição de sobrevivência tanto no mercado político como educacional
provoca uma corrida generalizada aos cursos disponíveis em busca de
treinamento e/ou titulação, e posteriormente, de busca de veículos para
a divulgação de si mesmo ou para a publicação de papers. Como o valor
maior está na competência para fazer um bom marketing pessoal e na
disponibilização de títulos e de quantidade de produção anual, todos os
que aí se engajam acabam sendo, a princípio, avaliados segundo os mesmos
critérios de equivalência, sejam aqueles cujo valor resulta de um
efetivo percurso pelo conhecimento e da qualidade de sua produção, sejam
aqueles cujo maior valor está na visibilidade do título que portam ou
na quantidade do que produzem, qualquer que seja sua qualidade ou
contribuição efetiva para a construção social e o conhecimento.
Desnecessário apontar o caráter perverso que acabam assumindo esses
campos concorrenciais, no qual produtores consistentes têm de conviver -
quando não são ameaçados de serem substituídos por - com outros que,
avidamente, chegam a agir como banais e risíveis femeeiros em sua busca
de auto-legitimação.
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Fonte: oestrangeiro.net
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