abril 05, 2016

“O pântano no volume morto: degradação institucional brasileira atinge ponto mais agudo". Escrito por Raphael Sanz e Valéria Nader (CORREIO DA CIDADANIA)

PICICA: "O país vive momento de extrema polarização política na fase mais aguda da atual crise política, social e econômica. Enquanto vemos o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff levado adiante por parlamentares conhecidamente envolvidos em corrupção, a Operação Lava Jato, que deveria investigar todos esses atores, apresenta uma série de contradições." 


“O pântano no volume morto: degradação institucional brasileira atinge ponto mais agudo" Imprimir E-mail
Escrito por Raphael Sanz e Valéria Nader, da Redação   
Sábado, 02 de Abril de 2016


O país vive momento de extrema polarização política na fase mais aguda da atual crise política, social e econômica. Enquanto vemos o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff levado adiante por parlamentares conhecidamente envolvidos em corrupção, a Operação Lava Jato, que deveria investigar todos esses atores, apresenta uma série de contradições.

Em um primeiro momento, a mencionada operação investigou e prendeu corruptos e corruptores. Agora recebe a crítica de que está politicamente aparelhada pela oposição. Paralelamente a isso, vemos o campo social e de esquerda imobilizado em torno da defesa de um governo indefensável, ao passo que uma série de direitos do trabalho, conquistados e garantidos constitucionalmente, recebem uma enxurrada de ataques, a fim de sua flexibilização total, quando não o seu aniquilamento. Para fazer uma análise dessa complexa conjuntura, entrevistamos o sociólogo e professor da Unicamp Ricardo Antunes.

“O parlamento brasileiro é o pântano no seu volume morto. E ele preferiu se utilizar de um instrumento legal, que é o impeachment, a partir de uma manobra ilegal. A questão não é se o impeachment é golpe ou não é. O impeachment é uma instituição presente na Constituição de 1988. Ele se torna golpe quando as causas que podem levar ao impeachment estão sendo forjadas sem prova material e cabal. Hoje, 29 de março de 2016, não há nenhuma evidência cabal de que o atual governo Dilma cometeu um crime que possa levar à sua deposição pelo impeachment”, afirma.

Apesar de crítico à condução deste processo de impeachment, Antunes também tece duras críticas ao lulismo, aos governos petistas e em especial à presidente da República. “Eu disse em 2010 que ela ganharia a eleição já que Lula tinha quase 80% de aprovação e, transferindo metade desses votos, poderia eleger até um poste. Mas em uma época de crise, um presidente tem que ter lastro político, e ela não teve”.

Para ele, diferentemente de 1964, o governo não corre o risco de cair por haver adotado medidas populares, mas pelo fato de que o fim do ciclo lulista de conciliação de classes se esgotou e se exauriu. “Eles não precisam mais de um servo, querem agora um príncipe para impor sua política brutal de destruição dos direitos da classe trabalhadora”. Ainda nessa toada, defende que os próprios governos petistas tenham cavado seu túmulo, uma vez que se abriram às mudanças e flexibilização nas leis e direitos trabalhistas, afastando boa parte de suas bases políticas e sociais, a partir de uma inabilidade em lidar com críticas vindas das bases da sociedade e voracidade em sentar-se à mesa com os grandes figurões financeiros e empresariais.

Esses são fatores que, segundo o sociólogo, fizeram com que se esgotasse não só o lulismo por si só, mas também todo o sistema político brasileiro e a ordem tal qual a conhecemos. “A população trabalhadora sabe que a nossa institucionalidade está comprometida em todas as suas esferas. No Executivo, no Legislativo, no Judiciário, nas polícias, ou seja, a degradação institucional brasileira chegou ao seu ponto mais agudo de modo que a alternativa não passa por uma reforma política dentro da ordem”.

Antunes ainda falou sobre as ferramentas e alternativas populares para enfrentar a atual crise e os tantos retrocessos na vida do trabalhador brasileiro, além de analisar o movimento secundarista paulista e posturas viciadas da esquerda.

Leia abaixo a entrevista completa

Correio da Cidadania: Qual sua avaliação da crise política acentuada a partir do último dia 4, com a condução coercitiva do ex-presidente Lula à Polícia Federal, a nomeação de Lula para a casa Civil e a sequência do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff? Podemos falar de uma espécie de golpe parlamentar, como você sugeriu em entrevista para este Correio em novembro de 2015?


Ricardo Antunes: De fato estamos vivendo uma situação brasileira muito diferente e profundamente crítica se compararmos com o cenário que estávamos vivendo desde meados dos anos 80, quando começou o processo da chamada “abertura” e, depois, com as eleições diretas em 1989, que levaram  ao início de um período relativamente democrático no Brasil. O quadro se acentuou profundamente nesse último ano por três ou quatro elementos que valem a pena serem aqui indicados.

O primeiro elemento fundamental é que se encerrou o ciclo do governo do PT, que começou com Lula em seus dois primeiros mandatos, seguiu com o mandato primeiro da Dilma e agora este segundo. Pouco mais de um ano e alguns meses depois do início do segundo mandato, a crise chega ao seu ponto mais profundo.

E por que chegamos a essa crise do governo do PT? Primeiro porque todo o projeto de governo foi construído em cima de uma arquitetura, de uma engenharia política elaborada por um mestre da conciliação brasileira, o Lula. Aquela ideia de que esse país só avançaria se ele fosse capaz de organizar, vincular e aliar os dois polos da tragédia brasileira. Em um polo, os setores da alta burguesia financeira, agroexportadora, industrial, comercial e de serviços; uma burguesia, por suposto, predatória, que há décadas vem acumulando riquezas através da penúria, da exploração e até mesmo da superexploração da classe trabalhadora brasileira.

Esse projeto sustentado em uma engenharia política fundada na conciliação entre classes visava beneficiar os mais ricos, minimizar o pauperismo dos mais pobres e levar a um ganho relativo das camadas médias. Essa foi a engenharia do Lula que de certo modo o faz ser o único político brasileiro, no que concerne à conciliação, a ser comparado a Getúlio Vargas no passado. Vargas foi por excelência um homem da conciliação, ainda que o desfecho dele tenha sido trágico com seu suicídio em 1954. E isso aconteceu porque naquele momento sua política de conciliação entrava em uma fase crítica.

Por que essa atual política policlassista, de conciliação de polos opostos de extrema riqueza e extrema pobreza, faliu? Por alguns elementos. A incapacidade do PT de perceber a profundidade da crise econômica, que começou em 2008 e chegou de modo devastador aos BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China –, e também à Venezuela e vizinhos sul americanos, com mais intensidade a partir de 2013, até tornar-se uma crise profunda, como estamos vendo agora a partir 2015. Além dessa crise econômica que tem componentes globais, ela é uma crise desigual e combinada, ocorre com mais ou menos intensidade em regiões e espaços nacionais. Começou no norte do mundo – Europa, Estados Unidos e Japão –, mas acabou chegando ao sul e aos países intermediários da periferia.

Essa crise solapou e fez ruir o mito petista da conciliação e do equivocadamente chamado “neodesenvolvimentismo”. Este mito neodesenvolvimentista ruiu a partir das rebeliões de junho de 2013, quando o PT estava comemorando o seu aniversário de 10 anos do governo Lula. A degradação pública da saúde, da educação e do transporte coletivo, somada a outras, começava a vazar pelo ralo, mostrando que o mito de um país neodesenvolvimentista que caminhava para o primeiro mundo era uma ficção desprovida de qualquer lastro material.

Isso fez com que houvesse aquele movimento de revolta popular policlassista, que juntou os pobres da periferia, trabalhadores jovens de serviços ultraprecarizados, setores do movimento estudantil que acreditaram que entrando na universidade poderiam ter um emprego melhor e perceberam a falácia disto - ou seja, pagavam a faculdade privada pelo Prouni para chegar à conclusão de que aquilo era um engodo e não traria empregos duradouros, nem qualificados e nem uma perspectiva de futuro. E especialmente, a partir de um dado momento, começaram a participar as camadas médias conservadoras. Tudo isso em uma conjuntura muito particular: a Copa das Confederações, quando a população percebeu que o que ia para a FIFA não vinha para as políticas públicas de saúde, educação, transporte etc.

Nesse momento houve uma grande limitação das esquerdas (das correntes à esquerda do PT), refletida numa dificuldade muito grande, especialmente dos partidos de esquerda, de perceber que aquele movimento tinha como um de seus elementos fundamentais uma tendência contrária à institucionalidade completamente corrompida. O ápice daquele movimento foi a tentativa de chegar dentro do Palácio do Planalto, aquela tomada do Congresso e este descontentamento posteriormente bastante politizado, a meu juízo, pelas direitas.

Simultaneamente a esse quadro de crise política, social e econômica que abalou o projeto do PT, houve o deflagrar da Operação Lava Jato, que devastou o núcleo do PT e fazia com que uma parte importante dos recursos públicos migrassem para as campanhas eleitorais, com todos os benefícios e enriquecimentos privados que isto gera, uma vez que começa como uma espécie de corrupção política para garantir as eleições do PT (na medida que no passado o Partido não tinha recursos do empresariado). Pouco a pouco o PT viu-se completamente envolvido com os piores setores da burguesia brasileira.

Criou-se um amálgama de interesses, uma simbiose, entre diversas frações das altas burguesias brasileiras – empreiteiras, agronegócio, industrial –, muito imbricada e comandada pelo mundo do capital financeiro – que via no governo do PT o melhor dos mundos. Uma espécie de governo semibonapartista que, mesmo não sendo originário das classes burguesas, garantia um crescimento para essa grande burguesia como ela só vira nos tempos da ditadura militar e no governo Juscelino Kubitschek. Ou seja, o PT se meteu num território pantanoso e agora este pântano está descartando-o. É o PMDB do Temer, Renan Calheiros, Cunha e por aí vai. Inclusive os pequenos partidos que formam uma significativa escória política se beneficiaram do período de enriquecimento que tiveram no segundo mandato de Lula e boa parte do primeiro governo Dilma.

Quando a crise bateu e chegou aqui de modo duro, essas frações dominantes chegaram a um primeiro consenso: “em época de crise quem vai pagar com o ônus dessas perdas? A classe trabalhadora”. E começaram a impor ao governo Dilma medidas ainda mais duras, brutalmente duras, contra a classe trabalhadora, que agudizaram o fosso entre o governo do PT e seu leque de alianças pantanosas (o impeachment hoje está sendo impulsionado por esse mesmo pântano que se locomove na medida em que os corpos caem dentro dele). E neste quadro, as frações dominantes começaram a exigir que o ônus da crise fosse inteiramente pago pelos assalariados: cortes no seguro-desemprego, no Bolsa Família e assim por diante.

E nesse contexto as próprias frações dominantes começam a discutir quem vai perder menos com a crise: uma vez que todas elas tendem a perder um pouco, à exceção da burguesia financeira, que pode utilizar sua dimensão especulativa e fictícia.

Em um dado momento, as burguesias começaram a disputar entre si quem vai perder mais ou menos. Isto se deu em 2015, já que nas eleições de 2014 Dilma ainda tinha uma parte do empresariado que a apoiava, enquanto uma outra parte já começou a apoiar abertamente o esquema do tucanato, que é o da barbárie pura e simples. Afinal, o tucanato sempre se celebrizou por ser dotado de uma absoluta insensibilidade social e Aécio Neves é uma expressão perfeita dessa insensibilidade social (e um privatismo devastador).

Muito bem, ganhou a Dilma com o apoio de parte do empresariado, enquanto outra parte estava com a oposição. E após sua posse em 2015, isso se soma à percepção de que a corrupção vinha sendo implementada pelo governo petista, ou pelo PT no governo e partidos aliados (PMDB, PP e esses vários agrupamentos de aluguel que estavam no entorno do governo Dilma). Foi quando se descortinou a profunda corrupção e se chegou àquela situação na qual as classes dominantes se encontram hoje: de que o governo, neste contexto de crise profunda, não lhes interessa mais.

Correio da Cidadania: Você afirmou na entrevista supracitada que “o PT está sendo completamente fagocitado por uma política de conciliação à qual se entregou de corpo e alma para o demônio, o capital. Agora é vomitado e devolvido, porque não interessa mais. O demônio quer de volta os velhos executores de sua política”. Como que essa afirmação se relaciona com a atualidade da crise no lulopetismo?

Ricardo Antunes: Mesmo que esse governo tenha feito absolutamente tudo o que exigiram desde 2003, dizem as classes dominantes que “agora é o momento de limpar”, ou seja, descartar um governo servil e introduzir um governo próprio para garantir a própria dominação. Vale dizer que a dominação burguesa no Brasil sempre se revezou entre a conciliação pelo alto e o golpe. No quesito conciliação, Getúlio e Lula foram os grandes nomes, com as ressalvas de que Getúlio era um estancieiro dos pampas e Lula foi um operário metalúrgico. E isso mostra uma enorme contradição na política de conciliação de classes do PT, já que Lula é oriundo das classes trabalhadoras enquanto Getúlio vinha da burguesia.

Quando as classes dominantes, de modo coeso, decidiram colocar fora o governo Dilma, foi uma decisão que ocorreu ao longo de 2015 e hoje é cabal: FIESP, Febraban, associações comerciais, grande mídia; todos estão dizendo que o governo Dilma não os interessa e encerrou o ciclo da conciliação pelo alto. Agora é o momento do golpe. Mas o golpe não é militar como o de 1964. É um golpe urdido no pântano parlamentar.

Marx já dizia no 18 Brumário (lembro aqui de memória) que o parlamento francês chegou à sua condição mais degradante e mais degradada – isso porque Marx não viu o parlamento brasileiro. É incomparável com o francês. O parlamento brasileiro é o pântano no seu volume morto. E ele preferiu se utilizar de um instrumento legal, que é o impeachment, a partir de uma manobra ilegal. A questão não é se o impeachment é golpe ou não. O impeachment é uma instituição presente na Constituição de 1988. Ele se torna golpe quando as causas que podem levar ao impeachment estão sendo forjadas sem prova material e cabal. Hoje, 29 de março de 2016, não há nenhuma evidência cabal de que o atual governo Dilma cometeu um crime que possa levar à sua deposição pelo impeachment. Ou seja, a questão não é se o impeachment é legal ou ilegal, a questão é que o impeachment em curso burla a legalidade pois ainda não há evidência para tal. As evidências podem aparecer amanhã ou depois, mas elas ainda não apareceram. Portanto, hoje ele é um golpe.

Se imaginarmos que os recursos da campanha de 2014 sejam oriundos de corrupção na Petrobrás e elegeram Dilma e Temer, esses mesmos recursos irrigaram a campanha do Aécio. Assim, se formos até o fim da linha, o TSE teria de cancelar as eleições. Isso para não falar do Eduardo Campos, que é um caso inusitado: o único que conheço de um avião que não tem dono. Um avião que é uma coisa caríssima. Não é qualquer burguês que tem um avião, mas de repente o Eduardo Campos andava em um avião que não tinha dono. Ou seja, a corrupção entra em todas as candidaturas burguesas.

Pois bem, o golpe parlamentar encontrou um aliado imprescindível para um golpe judicial. Porque se a Lava Jato começou encarcerando empresário, e isso é um dado novo na realidade brasileira, já que nunca houve tantas expressões do capital encarceradas, pouco a pouco esta Lava Jato foi assumindo uma clara conotação de parcialidade política estampada na seguinte propositura: “é hora de aniquilar o governo do PT”.

Este processo de aniquilação e liquidação do governo do PT não manteve seu correlato na averiguação da corrupção dos governos do tucanato. Por exemplo, Furnas, envolvendo Aécio Neves, a construção de estradas beneficiando a família do Aécio e uma série de elementos conhecidos envolvendo o tucanato. A corrupção em São Paulo dos metrôs, da merenda, da Sabesp e da segurança pública. A corrupção no Paraná. Tudo isso foi posto para baixo do tapete e todo o estado de excepcionalidade jurídica voltou-se somente contra o PT, sem atingir também a enorme corrupção do tucanato e aliados-assemelhados.

Lula tem que ser julgado. E se ficar mostrado que Lula utilizou recursos públicos – do povo brasileiro – para beneficiar sua vida privada, ele tem de pagar por isso. Mas o Fernando Henrique também. É plausível que a empresa que controla a massa de recursos dos freeshops dos aeroportos tenha dado mesada para a “companheira” que FHC tinha no exterior? É tão repulsivo quanto as acusações feitas contra Lula. É o mau uso de recursos públicos em benefício privado.

Para fechar a questão, gestou-se um golpe parlamentar-judicial, que avançou uma legislação de exceção para poder articular com uma mídia poderosíssima e um parlamento pantanoso a fim de garantir esse golpe. É inaceitável que o parlamento que esteja comandando o impeachment seja dirigido pela expressão mais corrupta entre os políticos brasileiros desde a era Collor. Isso não significa ser conivente com os governos petistas, que por sua vez estão em um processo de crise praticamente terminal.

O lulismo é responsável por isso, a escolha da Dilma como sucessora foi uma imposição de Lula e, na época, eu escrevi que era um erro grave. Embora a Dilma possa estar no plano pessoal – até o presente – isenta de corrupção em beneficio de si própria, ela é politicamente de uma incapacidade completa. Eu disse em 2010 que ela ganharia a eleição já que Lula tinha quase 80% de aprovação e, transferindo metade desses votos, poderia eleger até um poste. Mas em uma época de crise,  a presidente tem de ter um forte lastro político. Ela não tem.

A crise é profunda, terminal, no que se refere ao projeto do PT. Eu não vejo possibilidade de o PT se repor como partido de esquerda. Há setores importantes do PT que nunca se envolveram nesse tipo de prática, como Olívio Dutra e Tarso Genro, para citar alguns exemplos do Rio Grande do Sul, mas que também nunca foram capazes de confrontar a alma do lulismo. Portanto, para que o PT pudesse sair da fase na qual se encontra hoje, no meio do pântano, seria necessária uma depuração dos seus núcleos mais comprometidos com a corrupção, o que implicaria em uma crítica radical ao lulismo e uma separação definitiva entre o petismo e o lulismo. Mas como essa relação é umbilical e quem comanda o PT é o lulismo, a crise é profunda.

Independentemente disto, os poderes judiciário e parlamentar não estão agindo com equilíbrio e nem em tom equânime. Toda a voracidade que demonstram em demolir o governo do PT não é feita em relação ao PSDB. É consenso que o Lula não deveria ter ido depor sob comando coercitivo. É óbvio que ele não precisaria disso. É inaceitável que um presidente da República tenha sua vida privada devastada e que, algumas horas depois de uma conversa telefônica particular, essa conversa esteja em rede nacional. É inaceitável mesmo em uma democracia burguesa. E isso não aconteceu porque o PT tenha realizado políticas populares, mas sim porque a classe dominante percebeu que chegou a hora de trocar um governo servil por um governo com a marca da oligarquia dominante. Eles não precisam mais de um servo, querem agora um príncipe para impor sua política brutal de destruição dos direitos da classe trabalhadora.


Correio da Cidadania: Como avalia as massivas manifestações da oposição de direita, que levaram milhões de pessoas às ruas nesse mês de março? O que pensa da cobertura que a grande mídia tem feito de todo esse processo?


Ricardo Antunes: Qualquer medida hoje que abra uma ruptura dessa intensidade, com a deposição de um presidente da República sem que haja prova cabal de crime cometido, é impossível se não tiver o apoio decisivo da mídia.

Durante toda a semana que antecedeu a manifestação do último dia 13 de março e também durante todo este domingo, houve uma campanha de todos os órgãos de rádio, televisão e imprensa escrita. De todos os grupos. Especialmente o rádio e a televisão fizeram uma campanha devastadora de que a população deveria ir para a rua pedir a demissão do governo. Isto mostra a incapacidade completa do PT, em sua política de conciliação, de ter minimamente estabelecido uma política de concessão pública fundada na obrigação que as mídias deveriam ter – ainda que privadas, mas usufruindo de concessões públicas de rádio e televisão – de informar a população.

É evidente que o golpe parlamentar-judicial foi intensamente “popularizado” por esses meios de comunicação. As cenas de casais brancos de classe média indo para a manifestação com a babá cuidando de seus filhos, somadas à idiotia dominante que berravam em frente à Fiesp, são emblemáticas. Essas manifestações tomam a Fiesp como espaço arquitetônico que simboliza seu grito, uma expressão eivada de significado.


Correio da Cidadania: O que esperar para o mundo do trabalho diante desse contexto todo, em um  momento em que o desemprego continua a subir?

Ricardo Antunes: Estamos em uma quadra da história na qual é a hora de arrebentar com o que resta do direito do trabalho em escala global. No caso brasileiro, isso é ainda mais emblemático porque a CUT nos anos 80 foi uma forte barreira contra a precarização do trabalho.

A Constituição de 1988, resultado da Assembleia Nacional Constituinte de 1986/88, conseguiu garantir certos direitos graças às lutas dos sindicatos, da CUT, do PT e de outros partidos de esquerda e movimentos sociais, como o MST. Naquela época a Constituição ainda era vista por nós como relativamente conservadora, com avanços razoáveis. Agora, as classes dominantes querem, em seu governo, um príncipe oligarca cujo objetivo é devastar tais conquistas: uma verdadeira política de terra arrasada. Teremos terceirização total se não houver resistência. Além de flexibilização total e contrato zero hora.

O zero hour contract apareceu na Inglaterra há uns anos atrás: o trabalhador fica disponível para trabalhar. Um, dois, três dias com o celular ligado; no terceiro dia é chamado para fazer uma atividade de uma hora, faz aquela atividade, em geral no setor de serviços, e recebe por uma hora; e não pelas 72 horas nas quais ficou disponível. No Brasil já temos médicos, limpeza, comunicação e vários setores de serviços funcionando assim. Você chama um médico na sua casa para uma consulta, ele te atende e uma parte do pagamento vai para a empresa à qual ele está filiado. É uma espécie de “ubberização” do trabalho. O aplicativo Ubber é um exemplo perfeito.

Nem bem foi empossado o presidente conservador do Tribunal Superior do Trabalho e ele já propôs a terceirização total, afirmando que ela é boa para a classe trabalhadora. Seria grotesco se não fosse trágico.

Por sorte, ainda temos sindicatos combativos. Conlutas, as Intersindicais e sindicatos de classe que resistem. Temos os sindicatos de metalúrgicos de São José dos Campos, de Campinas, o ANDES, sindicato nacional dos professores, sindicatos do funcionalismo público e outros. Temos hoje sindicatos que ainda têm relação com a CUT e são pressionados pelas bases. Há sindicatos que não estão necessariamente engajados nas lutas das centrais, mas que têm uma sensibilidade. Isso sem contar um amálgama de movimentos sociais da periferia muito importantes. O MTST por exemplo. Há o Movimento Passe Livre. Enfim, há uma miríade de movimentos da periferia. O MST, por sua vez, tem uma forte organização de base e as ocupações que ainda são feitas, muitas vezes à margem das direções.

Nesse quadro profundamente nefasto, pelo menos vai acabar a ilusão com o governo. Sabe aquela coisa de que o Lula e a Dilma são “o nosso governo”? Ou até a ideia de um “governo em disputa”, o que é uma grande piada? Não há governo em disputa. Disputa de quê? Basta olhar os ministérios da Dilma. Tem mais representantes do MST, do MTST e dos sindicatos ou da burguesia agrária, industrial e financeira?

Um governo com Temer, Aécio, Alckmin ou assemelhados trará uma guerra aberta de classes sem a ilusão do lulismo. Isso porque o lulismo enfraqueceu muito a esquerda e não tomou nenhuma medida estrutural para beneficiar – estruturalmente falando – a classe trabalhadora. Acabou perdendo muito apoio popular por isso. Mas o lulismo tem um traço messiânico, do líder, e quando o líder é atacado ainda consegue, lá no seu volume quase morto, alguma coisa.

Por exemplo, no dia que antecedeu o suicídio de Vargas, milhares de pessoas estavam em frente ao Palácio do Catete no Rio de Janeiro exigindo sua renúncia, impulsionados por Carlos Lacerda e pela direita udenista em geral. Com o caráter de comoção que teve – Vargas era um forte líder carismático e messiânico do trabalhismo brasileiro –, minutos depois do suicídio de Vargas uma parte imensa daquela massa que no dia anterior pedia sua deposição começou a atacar os partidos políticos e instituições antivarguistas.  A situação gerara um ato de comoção.

O desespero de Lula é uma tentativa de dizer que ele ainda tem algum respaldo e, por certo, tem. Combina muito mais com uma liderança carismática e messiânica e também com o fato inegável de que a força popular do Lula foi sedimentada ao longo de anos. Uma parte muito grande da sedimentação da base de apoio do Lula foi corroída, mas não está completamente eliminada. E é com isso que o Lula está desesperadamente jogando. É sua última cartada e, comparada ao que foi o Lula nos anos 80, hoje ele é uma expressão pífia de si mesmo.

É claro que, para a população pobre das periferias (não necessariamente a população que se beneficia do Bolsa Família), que sofre a violência urbana, a brutalidade da polícia militar, um desemprego altíssimo, com dados oficiais de mais de 10 milhões de desempregados (mas com um nível real superior, pois os meios de medir são limitados), é mais complicado. Por exemplo, uma pessoa que não procura emprego há mais de um mês não entra na estatística, mas não significa que não esteja mais desempregada. Até porque procurar emprego é algo muito trabalhoso: você acorda de manhã, se prepara, precisa de dinheiro para pegar uma condução, comer na rua, ir para uma fábrica, ir para outra e outra, para ouvir uma série de “nãos” e, ao final, voltar para casa com ainda menos recursos do que havia pela manhã. Tudo isso vai solapando a população.

Por outro lado, a população da periferia também percebe que há uma articulação urdida pelas direitas. Ela sabe que o tucanato não a representa. Ela sabe que, com as direitas, a coisa será ainda pior. E mesmo com a perda do lastro que Lula tinha com os de baixo, ainda há essa forma de pensamento. E é a partir dos vínculos remanescentes que ele tenta mostrar que não é um líder morto, embora esteja a milhares de quilômetros do líder vivo dos anos 80. Há uma distância abissal.

Basta lembrar que, quando Lula saiu no início do mês da Polícia Federal, foi à sede do PT e fez um discurso no qual afirmou que os empreiteiros pagam impostos e empregam, e que por isso deveriam ser melhor tratados. Também ainda em seu primeiro mandato, Lula disse que os verdadeiros heróis brasileiros eram os líderes do agronegócio; como nunca desmentiu tal frase ou afirmou que fosse uma ironia, mostrou o tamanho da decadência ideológica do lulismo.


Correio da Cidadania: Já que  não há saída com o lulopetismo, é possível alguma saída institucional de defesa do governo, levando em consideração a seletividade do nosso atual Estado de Direito e o dano que isso tem causado a todos os setores da esquerda e à população de baixa renda?


Ricardo Antunes: A população trabalhadora sabe que a nossa institucionalidade está comprometida em todas as suas esferas. No Executivo, no Legislativo, no Judiciário, nas polícias, ou seja, a degradação institucional brasileira chegou ao seu ponto mais agudo, de modo que a alternativa não passa por uma reforma política dentro da ordem. A alternativa passaria por um movimento popular, das classes trabalhadoras, dos movimentos sociais, das periferias, buscando uma nova forma distinta do que é hoje presente.

As esquerdas debatem muito um tema que já deveria ter sido melhor equacionado: “mas afinal, o que é mais importante: um partido, um movimento social ou um sindicato”? Minha resposta é que o mais importante é aquele movimento social, sindical ou político que toca as nossas raízes e mazelas.

Por exemplo, os partidos de esquerda e anticapitalistas em geral têm um pouco o desenho da sociedade que querem criar. Os partidos socialistas dizem que devemos lutar fortemente contra a corrupção, mas sabem que eliminar completamente a corrupção no capitalismo é uma falácia. Existe corrupção na Noruega, nos Estados Unidos, no Japão... O que se pode fazer é diminuir o nível brutal do saque à rés-pública, mas eliminá-lo é outra coisa. Supõe, para começar, eliminar o próprio capitalismo.

Os partidos de esquerda, portanto, têm um futuro mais ou menos definido de onde querem chegar, mas têm uma enorme dificuldade de entender o aqui e o agora. Mesmo na esquerda, os partidos estão muito preocupados com eleições. O país acabando, a institucionalidade corrompida até a medula e os partidos preocupados em qual será a candidatura de 2018!

Dos movimentos sociais, talvez possamos dizer o inverso. Eles nascem a partir de uma questão crucial da vida cotidiana. O MST quer terra para trabalhar, viver, alimentar-se e sobreviver. O MTST quer teto porque não há um mínimo de dignidade humana se os trabalhadores e suas famílias não têm onde morar. O MPL luta pela desprivatização do transporte público; e assim por diante. Os movimentos sociais têm muita vitalidade, mas é querer demais que esses movimentos sociais, até por conta da luta exaustiva e vital pela vida cotidiana, possam desenhar e conceber claramente um projeto de futuro para além do capital. Porque a luta do dia a dia é muito intensa. Quando se luta por casa e comida, ou seja, pela sobrevivência vital, acaba ficando difícil pensar profundamente sobre o mundo que queremos.

Os sindicatos por sua vez estão mais próximos aos interesses imediatos da classe trabalhadora, mas muitas vezes se perdem também nesses interesses imediatos ou são prisioneiros de um burocratismo e de uma política negocial e de conciliação. Isso pode fazer com que percam frequentemente o sentido de pertencimento de classe que deveriam ter.

O desafio não é ver qual desses são mais importantes previamente. É preciso acabar com as hierarquias pré-estabelecidas. Nosso ponto de partida vem do fato de que essas são as nossas ferramentas. São os sindicatos de classe, os partidos e movimentos sociais de classe e de base, autônomos, que compõem uma miríade de formas de resistência e, junto com o avanço das assembleias, ruas, fábricas e periferias, capazes de lutar por uma alternativa real e positiva, por uma nova política radical, que possa proporcionar uma transformação política vinda da classe trabalhadora, dos assalariados em geral e dos movimentos sociais. O desafio é buscar uma alternativa de construção política e social de novo tipo que desconstrua a institucionalidade hoje dominante. E ainda estamos um pouco aquém disto. E não é uma coisa fácil, pois é preciso lutar contra a ordem dominante, a mídia e os partidos dominantes. Essa é o desafio. E qualquer tentativa de reforma política dentro da ordem é pura perfumaria.

É claro que no momento atual temos que impedir que a Constituição seja burlada por um golpe que tenha aparências de constitucionalidade, porém, numa essência de ilegalidade e inconstitucionalidade. No entanto, é tão somente nosso ponto de partida do hoje, aqui e agora. Porque sabemos que há uma tendência global nesses anos mais recentes, onde o recrudescimento da contrarrevolução global e dos movimentos de extrema-direita não é ficção e a única força capaz de frear isso é a da organização popular, autônoma, de base, objetivando a construção de uma política radical – e não vencer as eleições para vereador, governador etc. Até porque a última chance que a população trabalhadora brasileira teve para ver uma alteração eleitoral substantiva foi em 2002, com a vitória do Lula. O resultado é trágico. É preciso recomeçar pela base, pelos movimentos sociais, sindicais e políticos que tenham vida e autenticidade no mundo cotidiano, pela classe trabalhadora e a impulsão da periferia.


Correio da Cidadania: Uma das teses que você tem proposto é a de que o próprio PT cavou seu túmulo, a partir de uma crescente despolitização e desmobilização da classe trabalhadora brasileira, que culminou no enfraquecimento da esquerda.  Na linha do que está sendo discutido, que saídas à esquerda podem ser encontradas a partir de agora e como avalia a Frente Povo Sem Medo?

Ricardo Antunes: O PT acreditou na tese da Margareth Thatcher, do “capitalismo popular” na ideologia e na aliança capital e trabalho em prol do crescimento do país. Quer dizer, ele acreditou em uma coisa muito velha e abandonou o que tinha de mais positivo quando era jovem, a sua ousadia e sua pujança de classe.

A coisa mais importante que ocorreu no Brasil em 2015 foi o movimento dos secundaristas. Já a Frente Povo Sem Medo participa com alguma tentativa de se diferenciar da Frente Brasil Popular.

Começando pelos secundaristas, o que o movimento dos estudantes fez em São Paulo foi a coisa mais importante em 2015. Um governo nefasto e privatista, antipúblico, antissocial, dizia que melhoraria a educação destruindo a educação. E tomou medidas duras nesse sentido. A seguir, aconteceu uma espetacular rebelião da juventude, de estudantes, de pais, amigos, professores, dos bairros afetados, das periferias etc. Pareceu com a rebelião do Chile em 2011, que virou o país de cabeça pra baixo. O primeiro grande movimento do país no sentido de mostrar como a ditadura Pinochet foi brutal, bárbara e tinha destroçado a educação. No caso, um país onde tudo é privatizado e as universidades públicas cobram caríssimo pra se manter. Um pai pobre tem de vender sua casa se quiser bancar os estudos dos filhos. Destroçaram o ensino público de lá e criaram preços acessíveis somente aos filhos dos ricos.

Já em São Paulo, a rebelião deixou o governador tucano completamente desconcertado, pois ganhou fortíssima adesão popular. É um exemplo emblemático do que eu dizia anteriormente, de que a resposta vem da periferia, dos movimentos organizados, com maior autonomia e pela base. Fecharam escolas e a resposta foi colocar mães dos alunos dentro das escolas para defender os direitos de seus filhos, opondo-se à política tucana de que se pretendia “melhorar a educação" reduzindo as escolas e com os jovens tendo de estudar cada vez mais longe de casa.

É leviano chamar isso de projeto pedagógico, quando na verdade é uma reestruturação pra diminuir o ensino público, algo que vem desde a ditadura militar. Uma das principais tragédias da ditadura foi destruir um ensino público de alta qualidade e humanista que se esboçava antes de 1964. As principais experiências de educação pública crítica e humanista foram destruídas pela ditadura, o que dá noção do quão espetacular foi a reação dos estudantes. A despeito das diferenças, a reação em São Paulo veio na linha dos estudantes chilenos e dos levantes da juventude espanhola também. Foi ela, em sua faixa de 25 anos de idade, que se levantou na Espanha, ao ver que não adiantava estudar e se formar, porque não tinha emprego. Movimentos do tipo ni trabajo ni estudio, uma geração de jovens que não tinha condição de encontrar emprego, dadas as políticas de privatização e financeirização dominantes na Europa.

A Frente Povo Sem Medo requer cuidado nosso na discussão. Por exemplo: acho o MTST uma das mais importantes experiências da população pobre do Brasil, porque ela permitiu a percepção de que nosso país é tão desigual, a renda tão concentrada, que fica claro que a arquitetura das nossas cidades estampa uma contradição visceral. Os ricos encastelados, em condomínios hiper-sofisticados, no nível da alta burguesia europeia e norte-americana, e os pobres nas favelas, nas periferias sem esgoto, sem espaços livres, para sofrer a violência das PMs e as tantas brutalidades que afetam os pobres.

O MTST surge nesse universo e tem traços de ser um movimento expressivo que vem das periferias. Numa das referências que vi recentemente do Boulos, ele falava que o governo Dilma mostrou como acabou a política de conciliação. Devemos acrescentar, também, que acabou o lulismo, ou seja, a ideia de que um líder substitui a classe trabalhadora para praticar “a grande política”, no caso, a pior modalidade da política, por conta de sua faceta burguesa e servil.

Assim, penso que é vital que tais movimentos deem um passo adiante. Não só romper com a política de conciliação, mas romper com o lulismo, que na medida em que vitalizava a conciliação de classes, quer desconstruir a autonomia e pujança dos movimentos. Estamos adentrando um período muito difícil da história social e política brasileira. E muitos desses movimentos têm papel decisivo. Será preciso dizer claramente que o projeto nascido em 1980 com o PT acabou como política de esquerda, capaz de lutar pela superação do capitalismo e sua lógica acentuadamente destrutiva. O PT não deve necessariamente acabar, pode ser o PMDB do século 21, a fazer a política da ordem e ficar com o espólio sobrante da triste dominação brasileira. E tenho cuidado pra deixar claro que muitos militantes do PT, fundadores do partido e simpatizantes, hoje em número bem menor que no passado, não são responsáveis pela política verdadeiramente corruptora que vitaminou o enriquecimento político e financeiro do partido e desaguou nessa tragédia.

Mas o PT enquanto partido de esquerda, popular e de massa, francamente, não tem possibilidades de ressurgir. O PT no poder sempre recusou um debate pela esquerda. Não lembro de uma única vez o Lula, em todos os seus anos de presidente, fazer qualquer menção positiva às esquerdas, inclusive de dentro do PT. Uma desconsideração cabal. Claro que ao PT interessava preservar seus setores de esquerda, mas o lulismo sempre o aceitou como margem, nunca como centro, uma vez que de fato o lulismo visava a conciliação de classes. E, em última instância, acabava na personificação da política, onde o líder sempre tem a última palavra.


Correio da Cidadania: O que você intui para as próximas semanas e meses da política brasileira? Acredita que Dilma cai ou se mantém?

Ricardo Antunes: É muito difícil ousar qualquer resposta. Especialmente quando nós, ao mesmo tempo em que pensamos como intelectuais, tendo de apresentar algo reflexivo, pensamos também como seres engajados. A Dilma ter condições de se manter até 2018 é uma possibilidade muito remota. Porque ela está sendo tragada pelas classes dominantes, depois de exercitar a política do lulismo, do deus (minúsculo mesmo) e o diabo na terra do sol. Os ratos que ancoravam o governo Lula-Dilma estão pulando do navio. O PMDB rompeu com o governo e este que foi o grande resultado da engenharia de Lula – a política policlassista que fez o PT deixar de ser um partido de esquerda pra ganhar o poder – está sendo fagocitado.

Os núcleos partidários que o PT pensava como pontos de apoio tragaram a sua política. É uma situação muito crítica. Se a Dilma for cassada e subir o vice Temer, também envolvido nos mesmos problemas, além de acumular denúncias de corrupção pessoal, ele não poderá ter suporte legal e constitucional. O perigo é a Operação Lava Jato depor a Dilma e parar, como se fosse cumprido um objetivo. Um judiciário moralista e de direita pode considerar missão cumprida e dizer “agora o trabalho está finalizado”. Eduardo Cunha ou Renan, os outros sucessores, seriam a tragicomédia mais farsesca.

É uma crise muito profunda. Na hipótese de generalização da Lava Jato, de modo a comprometer todos os envolvidos em corrupção, chegaríamos à necessidade de uma nova eleição. Mas isso só seria plausível com a condenação de todos, depois de feitas as devidas averiguações, defesas etc.

Está muito difícil imaginar o que irá acontecer. A situação da Dilma é quase de crise profunda, mas entramos numa época em que a população assalariada das periferias está percebendo que, independentemente de apoiar Dilma ou não, um golpe está sendo urdido. E entraremos em novas lutas sociais, o que deve gerar muita repressão a movimentos populares. Um risco efetivo, até pela aprovação da acintosa Lei Antiterrorismo, uma lei de arbítrio e exceção. Estamos, portanto, vendo no Brasil a montagem de um estado de exceção sem que haja golpe militar. E só teremos uma alternativa: recomeçar, com base nas experiências citadas acima, isto é, dos secundaristas, do sindicalismo de classe, como Conlutas e Intersindical, de lutas pela base, dos movimentos sociais de terra, de moradia etc.

Para que não se resuma tudo ao pessimismo e mesmo à melancolia, temos um mosaico de lutas e movimentos sociais, experiências novas. Houve um avanço muito significativo de movimentos moleculares das classes populares e trabalhadoras. Como fazer para que tais movimentos atinjam um nível de organicidade que os aproximem mais, ao invés de isolá-los? Como avançar numa nova política radical, como soldar novos laços de solidariedade e de pertencimento de classe, ao invés de ficarmos na política de fracionamento e fragmentação?

É o desafio que se coloca na próxima quadra.


Fonte: CORREIO DA CIDADANIA

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