abril 05, 2016

A ofensiva do aceleracionismo capitalista. POR Moysés Pinto Neto (MEDIUM)

PICICA: "(...) o cenário atual apresenta duas opções na "esquerda". De um lado, o "aceleracionismo populista", que seria uma espécie de nova versão do socialismo pensado a partir da emergência das tecnologias de informação e da intensificação dos circuitos capitalistas em seu processo de dissolução dos códigos. Ele revive a noção de vanguarda e liderança, propõe a formação de um "programa forte" de esquerda, inclusive com think tanks, e defende renda mínima e "automação total" como forma de redução do trabalho. O populismo aceleracionista compartilha com o imaginário socialista a "corrida tecnológica" contra o capitalismo (como a "corrida espacial" na época da Guerra Fria) e acredita, como Marx e Keynes, que a melhoria tecnológica "liberta" o humano das tarefas do trabalho, permitindo uma intelectualização maior e a  possibilidade de tempo livre. Por isso, seria necessário se apropriar das estruturas neoliberais e fazê-las funcionar com mais intensidade, produzindo condições para sua superação.

Na outra via, a oposição a todos os modelos de crescimento, entendendo que a fórmula baseada na intensificação do capitalismo é ecologicamente suicida e que a solução passa por uma "desintoxicação" do imaginário produtivista, permitindo uma saída da "sociedade do trabalho" a partir do decrescimento, valorizando — contra a saída de "ponta" tecnológica — um ritmo mais lento e a retomada do contato humano, das ideias de vizinhança e comunidade, e da luta contra os ciclos de trabalho/consumo tóxicos para a biosfera. Envolve, portanto, uma crítica ao antropocentrismo e seu produto Antropoceno, o diálogo com outras formas culturais e suas ontologias, recusando aderir ao projeto moderno em múltiplos aspectos. Normalmente vem acompanhado de uma noção anarquista de coordenação sem subordinação, uma descrença na representação e nas redes de longo alcance, preferindo ao invés disso cortá-las para reduzir seu impacto e possibilitar arranjos mais criativos e singulares." 

A ofensiva do aceleracionismo capitalista




Depois do grande ciclo de manifestações de 2011 a 2014, com a criação de novos movimentos sociais a partir da confluência das redes digitais e o grande choque de 2008, o "neoliberalismo" parte novamente para a ofensiva e promove uma grande restauração mundial nos nossos dias. Coloco "neoliberalismo" entre aspas porque acho que o termo é totalmente impróprio e é uma grande lástima ter se vulgarizado a ponto de entrar para o léxico da política à esquerda, fundamentalmente. Apesar de a desregulação dos mercados financeiros ser um traço indelével dessa formação, outros traços como a militarização policial e a onipresença da vigilância, a arquitetura condominial-gentrificada das cidades e a formação de oligopólios que seguem a forma-Estado (corporações) atuando transnacionalmente com seu imenso poder de pressão plutocrático — tudo isso tem bem pouca relação com a teoria liberal, geralmente apenas uma ideia regulativa que, na prática, funciona como "racionalização" no sentido freudiano.

Ademais, a eleição do termo "neoliberalismo" coloca a disputa Estado vs Mercado como a decisiva, jogando a esquerda para a posição de defensora do Estado. Ele parece ter sido cunhado por nostálgicos do Estado de bem-estar social que creem nas possibilidades de uma burocracia forte promover a igualdade, compensando a monetarização dos serviços públicos que o mercado promove. Sabemos exatamente os dilemas que esse modelo produz, em especial a ineficiência, a corrupção e danos colaterais como a inflação e a insustentabilidade financeira das suas políticas (gerada não só por questões atuariais, mas também porque o "grande acordo" que promove na sociedade tende a fazer com que seus dirigentes — sempre caminhando na direção tecnocrática — não enfrentem os mais poderosos economicamente gerando uma compensação distributiva que reduz a desigualdade). Mas não é só isso. Na verdade, os anos 60 e 70, a partir da emergência das contraculturas, apresentaram alternativas de individuação que ultrapassavam a forma-Estado e seu modelo de cidadania, contestando o tabuleiro do jogo Estado vs Mercado. Desde esse momento, a tradicional disputa entre igualdade/Estado vs liberdade/Mercado foi substituída por uma nova concepção de liberdade e igualdade em que a singularização acontecia em meio a um processo social e coletivo, sem que os valores precisassem ser tratados como opostos. A liberdade que o mercado oferecia apareceu como simples liberdade de consumir, escravizada pela exigência de trabalho e adequação a padrões sociais construídos por meio do aparato espetacular que se tornou complementar ao capitalismo. A igualdade, por outro lado, reduzia os indivíduos à condição de massa amorfa, destruindo suas potencialidades em nome da construção serial que a transformação da sociedade em "Grande Indústria" havia promovido. O Estado de bem-estar produzia, com a melhoria da qualidade de vida, as condições para a ultrapassagem de instituições e exigências que já apareciam sem sentido, obedecendo a leis invisíveis e irracionais e burocratizando a vida. O protesto contra o trabalho e o dinheiro, contra a caretice e o conformismo atingiam, ao mesmo tempo, o Mercado e o Estado. Duas faces da mesma moeda, da "sociedade do trabalho" ou, como dizia Herbert Marcuse, do "homem unidimensional". Ao colocar o "neoliberalismo" como rival e reavivar o fetiche no Estado, a esquerda desperdiça essa experiência dos anos 60/70 e tudo que se produziu experimentalmente, com erros e acertos, em termos teóricos e práticos nos anos posteriores, reduzindo-se a uma idolatria do Estado que fatalmente termina na mesma tecnoburocracia verticalizadora, dirigista, corrupta e ineficiente. Ou seja, uma oligarquia de forma estatal que abre o flanco para que o "Mercado" apareça como flanco de renovação, como elemento "modernizador".



A imagem do Estado de bem-estar e seus problemas


É justamente esse elemento "modernizador" e sua configuração que permitiria distinguir um traço mais forte do "liberalismo" no modelo atual: seu aceleracionismo. O que caracteriza o modelo produção/consumo que se estabelece desde a Revolução Industrial e maximiza ao longo do século XX, não é apenas a dominância do mercado ou do estado, mas sua cumplicidade cíclica para manter girando a roda do "progresso", confundindo a melhoria da qualidade de vida com a acumulação de mercadorias e estimulando uma vida mediada e medida pelo dinheiro e pautada pelo binômio trabalho/consumo. Nesse sentido, o modelo que se aprimora da década de 70 para frente — com o emperramento da máquina produtiva pela Grande Recusa dos movimentos contraculturais e pela dificuldade de articular mais aceleração a partir da pressão dos sindicatos e fortalecimento dos trabalhadores — é uma tendência intensificadora do movimento de produção/consumo cuja expressão maior é o impulso na tecnologia. O dito "neoliberalismo" vence a batalha pela "eficiência" em relação ao Estado de bem-estar, dinamizando suas estruturas "engessadas" pela proteção social do trabalho a partir da ideia que essas barreiras teriam que ser derrubadas e substituídas por uma estrutura meritocrática que possibilitaria a democratização da riqueza sem limites. A desigualdade não se põe mais como problema, já que a riqueza é vista como o fermento que faz crescer o bolo, é um catalisador do processo de crescimento, da melhoria tecnológica que otimiza os bens de consumo. Como o "cidadão" antes identificado com valores tradicionais vê esses valores em sua maior parte dissolvidos pelas revoltas contraculturais dos anos 60, o "ideal de vida" passa a ser identificado com a posição de consumidor. Nesse caso, o mercado é preferível ao Estado porque consegue produzir com mais velocidade mais bens de consumo, gerando "felicidade" até o nível da intoxicação desse indivíduo conectado a essa rede de estímulos e valores. Trata-se, portanto, de quem consegue acelerar mais — e isso explicará o fracasso do projeto brasileiro atual.

A visão economicista que por isso coloca o "capitalismo" como razão de tudo é insuficiente não por criticar o capitalismo, mas porque muitas vezes hesita em ultrapassar o econômico e entender o capitalismo como forma de vida. E a mutação que passamos ao longo do final da década de 70 não se explica apenas pelo recolhimento do Estado e da proteção social correspondente. Precisamos entender o que o poder produz positivamente: no caso, corpos que desejam consumir, que medem o "sucesso" individual e político pela capacidade do sistema de intensificar o progresso tecnológico e o oferecimento de mercadorias. Essa intensificação aceleracionista é o cerne do próprio processo de "crescimento econômico", pauta quase única dos debates em torno da vitória política de um grupo ou de outro, da direita ou da esquerda. Para compreender o porquê da vitória do "neoliberalismo" mesmo contra a maioria (isto é, os trabalhadores), é preciso compreender essa economia do desejo consumidor que mobiliza os afetos na nossa sociedade, percebendo que a forma de vida coletiva se estabelece não a partir de indivíduos atomizados e livres, mas por meio de uma subjetivação que atravessa o espectro social quase como um todo, tornando-se o verdadeiro objeto de disputa política (não por acaso muitos confundem o neoliberalismo com a tecnocracia, já que o que estaria em jogo seria eminentemente quem é o melhor "gestor", quem faz a máquina girar com maior velocidade, quem é capaz de intensificar mais).

Esse modelo 24/7 (24 horas, 7 dias por semana) se acopla nas tecnologias de informação e coloniza a vida como um todo, tornando onipresente o trabalho e desrespeitando as barreiras "naturais" (isto é, a longa economia da Terra, da vida e da espécie humana), tendo como tipo ideal o "ciborgue" desafetado, um infinito reservatório de informação com capacidade acelerada de processamento e sem os constraints da mortalidade (isto é, do corpo humano e sua finitude). Essa forma de vida manifesta-se pelas indústrias da vida saudável que produzem não — como se esperaria — uma alimentação menos envenenada e mais diversificada ou a diminuição do ciclo do trabalho e do estresse, mas a resistência corporal do indivíduo a partir do consumo de drogas que aumentam sua capacidade produtiva ou de adaptações corporais que fabricam plasticamente a ilusão de "juventude eterna". Ela coloniza a utilização de psicodélicos que caracterizou a década de 60/70 com fins contraculturais para turbinar a produção.





O Vale do Silício é a Igreja dessa nova forma de vida, sua propagadora e fabricante de ídolos, e o modelo 24/7 em termos de trabalho, produção e consumo, fechado em um espaço unidimensional e higienizado, é o emblema dessa nova sociedade que revitalizou, após a queda em 2008, o dito “neoliberalismo”, apresentando-o como aquilo que ele realmente é: um aceleracionismo capitalista voltado para a produção intensificada de mercadorias cuja rotação trabalho/consumo funciona segundo padrões imanentes e retroalimentadores (por exemplo, uma cadeira super confortável — adequada a um modelo tecnologicamente incrementado — pode ser uma necessidade para quem leva uma vida 24/7 sentado em razão da demanda incessante de trabalho). O Vale do Silício é uma Igreja porque o regime 24/7 é uma religião, inclusive com sua promessa de imortalidade. O capitalismo 3.0 bancado pelas tecnologias de informação abastece-se do "transhumanismo" e sua mitologia da "singularidade". O futuro é menos Hayek e Friedman que Kurzweil e Zuckerberg.

Afora essa vanguarda, a formatação atual do modelo tem uma retaguarda dos “BRICS” — eixo industrial-escravista (Ásia), base de insumos extrativista (América Latina) e até depósito de lixo industrial (África), sem falar do colonialismo escalonado que opera entre essa própria retaguarda. O neodesenvolvimentismo nacionalista brasileiro com seu Plano de Aceleração do Crescimento não conseguiu ser mais que um projeto totalmente defasado em muitos aspectos e inconsciente da sua atualização em outros. Ao apostar no capitalismo industrial contra o financeiro e no nacionalismo como valor unificador do pacto de classes, mostrou-se completamente anacrônico e até delirante. Por outro lado, foi inconscientemente atualíssimo quando colocou a subjetivação pelo consumo como seu mote e o crescimento acelerado como principal objetivo, entrando na roda mundial do circuito 24/7. Mas o que poderia acontecer nesse caso, se não o que aconteceu? O Estado Grande acabou mostrando sua "ineficiência", isto é, sua incapacidade de acelerar no ritmo desejado em relação ao mercado, mais "competitivo". A subjetivação pelo consumo, com a medida do incremento tecnológico e da extensificação do crescimento econômico, acaba produzindo um grande público "exigente", como costuma acontecer aos consumidores, e portanto reticente quanto à capacidade do PT — até então agente dinamizador do mercado do consumo com a inclusão social — de promover essa aceleração. O PT perde o jogo que escolheu jogar, seu modelo é anacrônico e joga no mesmo tabuleiro do "neoliberalismo": o aceleracionismo capitalista.

Diante disso, o cenário atual apresenta duas opções na "esquerda". De um lado, o "aceleracionismo populista", que seria uma espécie de nova versão do socialismo pensado a partir da emergência das tecnologias de informação e da intensificação dos circuitos capitalistas em seu processo de dissolução dos códigos. Ele revive a noção de vanguarda e liderança, propõe a formação de um "programa forte" de esquerda, inclusive com think tanks, e defende renda mínima e "automação total" como forma de redução do trabalho. O populismo aceleracionista compartilha com o imaginário socialista a "corrida tecnológica" contra o capitalismo (como a "corrida espacial" na época da Guerra Fria) e acredita, como Marx e Keynes, que a melhoria tecnológica "liberta" o humano das tarefas do trabalho, permitindo uma intelectualização maior e a possibilidade de tempo livre. Por isso, seria necessário se apropriar das estruturas neoliberais e fazê-las funcionar com mais intensidade, produzindo condições para sua superação.

Na outra via, a oposição a todos os modelos de crescimento, entendendo que a fórmula baseada na intensificação do capitalismo é ecologicamente suicida e que a solução passa por uma "desintoxicação" do imaginário produtivista, permitindo uma saída da "sociedade do trabalho" a partir do decrescimento, valorizando — contra a saída de "ponta" tecnológica — um ritmo mais lento e a retomada do contato humano, das ideias de vizinhança e comunidade, e da luta contra os ciclos de trabalho/consumo tóxicos para a biosfera. Envolve, portanto, uma crítica ao antropocentrismo e seu produto Antropoceno, o diálogo com outras formas culturais e suas ontologias, recusando aderir ao projeto moderno em múltiplos aspectos. Normalmente vem acompanhado de uma noção anarquista de coordenação sem subordinação, uma descrença na representação e nas redes de longo alcance, preferindo ao invés disso cortá-las para reduzir seu impacto e possibilitar arranjos mais criativos e singulares.

O populismo aceleracionista e o decrescimento são os principais rivais, hoje, do aceleracionismo capitalista que provavelmente será o ethos dos próximos anos no mundo inteiro. Aparentemente essa resposta só será viável se, saindo do pragmatismo do Realpolitik e dos jogos imediatistas do poder, a esquerda aceite repensar sua utopia.

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Moysés Pinto Neto

Blogueiro, escreve normalmente sobre política, música, futebol, filosofia e outros temas próximos. Migramos do blog 'O ingovernável' para essas bandas.

Fonte: MEDIUM

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