PICICA: "(...) o cenário atual apresenta duas opções na "esquerda". De um lado,
o "aceleracionismo populista", que seria uma espécie de nova versão do
socialismo pensado a partir da emergência das tecnologias de informação e
da intensificação dos circuitos capitalistas em seu processo de
dissolução dos códigos. Ele revive a noção de vanguarda e liderança,
propõe a formação de um "programa forte" de esquerda, inclusive com think tanks,
e defende renda mínima e "automação total" como forma de redução do
trabalho. O populismo aceleracionista compartilha com o imaginário
socialista a "corrida tecnológica" contra o capitalismo (como a "corrida
espacial" na época da Guerra Fria) e acredita, como Marx e Keynes, que a
melhoria tecnológica "liberta" o humano das tarefas do trabalho,
permitindo uma intelectualização maior e a possibilidade de tempo livre.
Por isso, seria necessário se apropriar das estruturas neoliberais e
fazê-las funcionar com mais intensidade, produzindo condições para sua
superação.
Na
outra via, a oposição a todos os modelos de crescimento, entendendo que a
fórmula baseada na intensificação do capitalismo é ecologicamente
suicida e que a solução passa por uma "desintoxicação" do imaginário
produtivista, permitindo uma saída da "sociedade do trabalho" a partir
do decrescimento, valorizando — contra a saída de "ponta"
tecnológica — um ritmo mais lento e a retomada do contato humano, das
ideias de vizinhança e comunidade, e da luta contra os ciclos de
trabalho/consumo tóxicos para a biosfera. Envolve, portanto, uma crítica
ao antropocentrismo e seu produto Antropoceno, o diálogo com outras
formas culturais e suas ontologias, recusando aderir ao projeto moderno
em múltiplos aspectos. Normalmente vem acompanhado de uma noção
anarquista de coordenação sem subordinação, uma descrença na
representação e nas redes de longo alcance, preferindo ao invés disso
cortá-las para reduzir seu impacto e possibilitar arranjos mais
criativos e singulares."
A ofensiva do aceleracionismo capitalista
Depois
do grande ciclo de manifestações de 2011 a 2014, com a criação de novos
movimentos sociais a partir da confluência das redes digitais e o
grande choque de 2008, o "neoliberalismo" parte novamente para a
ofensiva e promove uma grande restauração mundial nos nossos dias.
Coloco "neoliberalismo" entre aspas porque acho que o termo é totalmente
impróprio e é uma grande lástima ter se vulgarizado a ponto de entrar
para o léxico da política à esquerda, fundamentalmente. Apesar de a
desregulação dos mercados financeiros ser um traço indelével dessa
formação, outros traços como a militarização policial e a onipresença da
vigilância, a arquitetura condominial-gentrificada das cidades e a
formação de oligopólios que seguem a forma-Estado (corporações) atuando
transnacionalmente com seu imenso poder de pressão plutocrático — tudo
isso tem bem pouca relação com a teoria liberal, geralmente apenas uma
ideia regulativa que, na prática, funciona como "racionalização" no
sentido freudiano.
Ademais,
a eleição do termo "neoliberalismo" coloca a disputa Estado vs Mercado
como a decisiva, jogando a esquerda para a posição de defensora do
Estado. Ele parece ter sido cunhado por nostálgicos do Estado de
bem-estar social que creem nas possibilidades de uma burocracia forte
promover a igualdade, compensando a monetarização dos serviços públicos
que o mercado promove. Sabemos exatamente os dilemas que esse modelo
produz, em especial a ineficiência, a corrupção e danos colaterais como a
inflação e a insustentabilidade financeira das suas políticas (gerada
não só por questões atuariais, mas também porque o "grande acordo" que
promove na sociedade tende a fazer com que seus dirigentes — sempre
caminhando na direção tecnocrática — não enfrentem os mais poderosos
economicamente gerando uma compensação distributiva que reduz a
desigualdade). Mas não é só isso. Na verdade, os anos 60 e 70, a partir
da emergência das contraculturas, apresentaram alternativas de individuação que ultrapassavam a forma-Estado e seu modelo de cidadania, contestando o tabuleiro do jogo Estado
vs Mercado. Desde esse momento, a tradicional disputa entre
igualdade/Estado vs liberdade/Mercado foi substituída por uma nova
concepção de liberdade e igualdade em que a singularização acontecia em
meio a um processo social e coletivo, sem que os valores precisassem ser
tratados como opostos. A liberdade que o mercado oferecia apareceu como
simples liberdade de consumir, escravizada pela exigência de trabalho e
adequação a padrões sociais construídos por meio do aparato espetacular
que se tornou complementar ao capitalismo. A igualdade, por outro lado,
reduzia os indivíduos à condição de massa amorfa, destruindo suas
potencialidades em nome da construção serial que a transformação da
sociedade em "Grande Indústria" havia promovido. O Estado de bem-estar
produzia, com a melhoria da qualidade de vida, as condições para a
ultrapassagem de instituições e exigências que já apareciam sem sentido,
obedecendo a leis invisíveis e irracionais e burocratizando a vida. O
protesto contra o trabalho e o dinheiro, contra a caretice e o
conformismo atingiam, ao mesmo tempo, o Mercado e o Estado. Duas faces
da mesma moeda, da "sociedade do trabalho" ou, como dizia Herbert
Marcuse, do "homem unidimensional". Ao colocar o "neoliberalismo" como
rival e reavivar o fetiche no Estado, a esquerda desperdiça essa
experiência dos anos 60/70 e tudo que se produziu experimentalmente, com
erros e acertos, em termos teóricos e práticos nos anos posteriores,
reduzindo-se a uma idolatria do Estado que fatalmente termina na mesma
tecnoburocracia verticalizadora, dirigista, corrupta e ineficiente. Ou
seja, uma oligarquia de forma estatal que abre o flanco para que o
"Mercado" apareça como flanco de renovação, como elemento
"modernizador".
É
justamente esse elemento "modernizador" e sua configuração que
permitiria distinguir um traço mais forte do "liberalismo" no modelo
atual: seu aceleracionismo. O
que caracteriza o modelo produção/consumo que se estabelece desde a
Revolução Industrial e maximiza ao longo do século XX, não é apenas a
dominância do mercado ou do estado, mas sua cumplicidade cíclica para
manter girando a roda do "progresso", confundindo a melhoria da
qualidade de vida com a acumulação de mercadorias e estimulando uma vida
mediada e medida pelo dinheiro e pautada pelo binômio trabalho/consumo.
Nesse sentido, o modelo que se aprimora da década de 70 para
frente — com o emperramento da máquina produtiva pela Grande Recusa dos
movimentos contraculturais e pela dificuldade de articular mais
aceleração a partir da pressão dos sindicatos e fortalecimento dos
trabalhadores — é uma tendência intensificadora do movimento de
produção/consumo cuja expressão maior é o impulso na tecnologia. O dito
"neoliberalismo" vence a batalha pela "eficiência" em relação ao Estado
de bem-estar, dinamizando suas estruturas "engessadas" pela proteção
social do trabalho a partir da ideia que essas barreiras teriam que ser
derrubadas e substituídas por uma estrutura meritocrática que
possibilitaria a democratização da riqueza sem limites. A desigualdade
não se põe mais como problema, já que a riqueza é vista como o fermento
que faz crescer o bolo, é um catalisador do processo de crescimento, da
melhoria tecnológica que otimiza os bens de consumo. Como o "cidadão"
antes identificado com valores tradicionais vê esses valores em sua
maior parte dissolvidos pelas revoltas contraculturais dos anos 60, o
"ideal de vida" passa a ser identificado com a posição de consumidor.
Nesse caso, o mercado é preferível ao Estado porque consegue produzir
com mais velocidade mais bens de consumo, gerando "felicidade" até o
nível da intoxicação desse indivíduo conectado a essa rede de estímulos e
valores. Trata-se, portanto, de quem consegue acelerar mais — e isso explicará o fracasso do projeto brasileiro atual.
A
visão economicista que por isso coloca o "capitalismo" como razão de
tudo é insuficiente não por criticar o capitalismo, mas porque muitas
vezes hesita em ultrapassar o econômico e entender o capitalismo como
forma de vida. E a mutação que passamos ao longo do final da década de
70 não se explica apenas pelo recolhimento do Estado e da proteção
social correspondente. Precisamos entender o que o poder produz
positivamente: no caso, corpos que desejam consumir, que medem o
"sucesso" individual e político pela capacidade do sistema de
intensificar o progresso tecnológico e o oferecimento de mercadorias.
Essa intensificação aceleracionista é o cerne do próprio processo de
"crescimento econômico", pauta quase única dos debates em torno da
vitória política de um grupo ou de outro, da direita ou da esquerda.
Para compreender o porquê da vitória do "neoliberalismo" mesmo contra a
maioria (isto é, os trabalhadores), é preciso compreender essa economia
do desejo consumidor que mobiliza os afetos na nossa sociedade,
percebendo que a forma de vida coletiva se estabelece não a partir de
indivíduos atomizados e livres, mas por meio de uma subjetivação que
atravessa o espectro social quase como um todo, tornando-se o verdadeiro
objeto de disputa política (não por acaso muitos confundem o
neoliberalismo com a tecnocracia, já que o que estaria em jogo seria
eminentemente quem é o melhor "gestor", quem faz a máquina girar com
maior velocidade, quem é capaz de intensificar mais).
Esse
modelo 24/7 (24 horas, 7 dias por semana) se acopla nas tecnologias de
informação e coloniza a vida como um todo, tornando onipresente o
trabalho e desrespeitando as barreiras "naturais" (isto é, a longa
economia da Terra, da vida e da espécie humana), tendo como tipo ideal o
"ciborgue" desafetado, um infinito reservatório de informação com
capacidade acelerada de processamento e sem os constraints da
mortalidade (isto é, do corpo humano e sua finitude). Essa forma de
vida manifesta-se pelas indústrias da vida saudável que produzem
não — como se esperaria — uma alimentação menos envenenada e mais
diversificada ou a diminuição do ciclo do trabalho e do estresse, mas a resistência corporal do
indivíduo a partir do consumo de drogas que aumentam sua capacidade
produtiva ou de adaptações corporais que fabricam plasticamente a ilusão
de "juventude eterna". Ela coloniza a utilização de psicodélicos que
caracterizou a década de 60/70 com fins contraculturais para turbinar a
produção.
O
Vale do Silício é a Igreja dessa nova forma de vida, sua propagadora e
fabricante de ídolos, e o modelo 24/7 em termos de trabalho, produção e
consumo, fechado em um espaço unidimensional e higienizado, é o emblema
dessa nova sociedade que revitalizou, após a queda em 2008, o dito
“neoliberalismo”, apresentando-o como aquilo que ele realmente é: um
aceleracionismo capitalista voltado para a produção intensificada de
mercadorias cuja rotação trabalho/consumo funciona segundo padrões
imanentes e retroalimentadores (por exemplo, uma cadeira super
confortável — adequada a um modelo tecnologicamente incrementado — pode
ser uma necessidade para quem leva uma vida 24/7 sentado em razão da
demanda incessante de trabalho). O Vale do Silício é uma Igreja porque o
regime 24/7 é uma religião, inclusive com sua promessa de imortalidade.
O capitalismo 3.0 bancado pelas tecnologias de informação abastece-se
do "transhumanismo" e sua mitologia da "singularidade". O futuro é menos
Hayek e Friedman que Kurzweil e Zuckerberg.
Afora
essa vanguarda, a formatação atual do modelo tem uma retaguarda dos
“BRICS” — eixo industrial-escravista (Ásia), base de insumos
extrativista (América Latina) e até depósito de lixo industrial
(África), sem falar do colonialismo escalonado que opera entre essa própria retaguarda. O neodesenvolvimentismo nacionalista brasileiro com seu Plano de Aceleração do Crescimento
não conseguiu ser mais que um projeto totalmente defasado em muitos
aspectos e inconsciente da sua atualização em outros. Ao apostar no
capitalismo industrial contra o financeiro e no nacionalismo como valor
unificador do pacto de classes, mostrou-se completamente anacrônico e
até delirante. Por outro lado, foi inconscientemente atualíssimo quando
colocou a subjetivação pelo consumo como seu mote e o crescimento
acelerado como principal objetivo, entrando na roda mundial do circuito
24/7. Mas o que poderia acontecer nesse caso, se não o que aconteceu? O
Estado Grande acabou mostrando sua "ineficiência", isto é, sua
incapacidade de acelerar no ritmo desejado em relação ao mercado, mais
"competitivo". A subjetivação pelo consumo, com a medida do incremento
tecnológico e da extensificação do crescimento econômico, acaba
produzindo um grande público "exigente", como costuma acontecer aos
consumidores, e portanto reticente quanto à capacidade do PT — até então
agente dinamizador do mercado do consumo com a inclusão social — de
promover essa aceleração. O PT perde o jogo que escolheu jogar, seu
modelo é anacrônico e joga no mesmo tabuleiro do "neoliberalismo": o
aceleracionismo capitalista.
Diante
disso, o cenário atual apresenta duas opções na "esquerda". De um lado,
o "aceleracionismo populista", que seria uma espécie de nova versão do
socialismo pensado a partir da emergência das tecnologias de informação e
da intensificação dos circuitos capitalistas em seu processo de
dissolução dos códigos. Ele revive a noção de vanguarda e liderança,
propõe a formação de um "programa forte" de esquerda, inclusive com think tanks,
e defende renda mínima e "automação total" como forma de redução do
trabalho. O populismo aceleracionista compartilha com o imaginário
socialista a "corrida tecnológica" contra o capitalismo (como a "corrida
espacial" na época da Guerra Fria) e acredita, como Marx e Keynes, que a
melhoria tecnológica "liberta" o humano das tarefas do trabalho,
permitindo uma intelectualização maior e a possibilidade de tempo livre.
Por isso, seria necessário se apropriar das estruturas neoliberais e
fazê-las funcionar com mais intensidade, produzindo condições para sua
superação.
Na
outra via, a oposição a todos os modelos de crescimento, entendendo que a
fórmula baseada na intensificação do capitalismo é ecologicamente
suicida e que a solução passa por uma "desintoxicação" do imaginário
produtivista, permitindo uma saída da "sociedade do trabalho" a partir
do decrescimento, valorizando — contra a saída de "ponta"
tecnológica — um ritmo mais lento e a retomada do contato humano, das
ideias de vizinhança e comunidade, e da luta contra os ciclos de
trabalho/consumo tóxicos para a biosfera. Envolve, portanto, uma crítica
ao antropocentrismo e seu produto Antropoceno, o diálogo com outras
formas culturais e suas ontologias, recusando aderir ao projeto moderno
em múltiplos aspectos. Normalmente vem acompanhado de uma noção
anarquista de coordenação sem subordinação, uma descrença na
representação e nas redes de longo alcance, preferindo ao invés disso
cortá-las para reduzir seu impacto e possibilitar arranjos mais
criativos e singulares.
O
populismo aceleracionista e o decrescimento são os principais rivais,
hoje, do aceleracionismo capitalista que provavelmente será o ethos dos
próximos anos no mundo inteiro. Aparentemente essa resposta só será
viável se, saindo do pragmatismo do Realpolitik e dos jogos imediatistas
do poder, a esquerda aceite repensar sua utopia.
Moysés Pinto Neto
Blogueiro,
escreve normalmente sobre política, música, futebol, filosofia e outros
temas próximos. Migramos do blog 'O ingovernável' para essas bandas.
Fonte: MEDIUM
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