Reforma, política e ética
Num encontro recente de médicos, promovido pelo Conselho Regional de Medicina, houve uma manifestação de restrição à reforma psiquiátrica atual, seguida de uma proposta de convívio com o modelo híbrido que tanto criticamos. Reafirmo o que venho escrevendo neste espaço há mais de 280 artigos: hospitais psiquiátricos recauchutados são incompatíveis com a rede de serviços substitutivos ao manicômio.
Numa definição simples, reforma psiquiátrica significa uma nova forma de tratar e acolher pessoas com transtorno mental. Esse novo modo de tratamento tem nos centros de atenção psicossocial, nas oficinas protegidas, na moradia assistida, e em variados tipos de cuidados os instrumentos necessários para evitar o distanciamento do usuário do serviço do seu meio social, consagrado no modelo psiquiátrico tradicional.
Mesmo que a psiquiatria tecnocrática tenha se amparado nos avanços da psicofarmacoterapia, ela tem um significado diferente da cultura construída pelos reformadores psiquiátricos, na medida em que estes últimos incorporaram a questão dos direitos do usuário dos serviços de saúde mental à cidadania plena, e junto com essa o direito à diferença e à sua dignidade. Nunca os cuidados clínicos da psicose, por exemplo, avançaram tanto como na reforma psiquiátrica, para a qual a política e a clínica são indissociáveis. Em causa o desafio crucial representando pela loucura para a ordem simbólica estabelecida.
Pensada à luz do contrato social, a loucura tem sido historicamente refém de um saber que valoriza o indivíduo racional, senhor de si, responsável pelos seus atos. Nada mais anárquico do que a loucura em seus excessos e descaminhos. Ela está para além do contrato social. Trata-se de alguma coisa que ficou de fora e não pode ser controlada.
Daí a naturalidade com que se encarou o seqüestro da cidadania do louco, através da internação sumária. Taí porque a idéia de substituição dos manicômios pelos serviços comunitários de base territorial suscitam reações, suspeitas de contribuição ao fortalecimento da estigmatização social da “doença mental”.
Ora, a resposta à questão da assistência à pessoa com transtorno mental nunca é nem poderá ser unicamente técnica, como nos alerta João Ferreira Filho e Jane Araújo Russo, em artigo publicado no livro organizado pelo psicanalista Antonio Quinet, “Psicanálise e Psiquiatria – controvérsias e convergências”, usado como referência para o presente artigo.
Todas as respostas dadas pela medicina, psiquiatria e profissionais de saúde sempre foram respostas ao significado social da “doença mental”. São elas que contribuem, para o bem e para o mal, com a produção e a transformação desse significado. Daí a impossibilidade de uma discussão meramente técnica, já que esta é indissociável do valor simbólico da doença.
Foi a partir do questionamento das concepções técnica, médica e asséptica da loucura que a reforma psiquiátrica ganhou existência. Até então estava fora de discussão o valor simbólico, socialmente construído, da loucura como acontecimento humano.
Toda teoria sobre a loucura e seu tratamento dizem respeito a crenças e valores sociais, o que implica em escolhas política e ética, se não quisermos incorrer nos mesmos pressupostos em que se basearam a psiquiatria e a medicina legal, que tanto contribuíram para estabelecer diferenças entre aqueles responsáveis pelos seus atos, portanto cidadãos em pleno gozo de seus direitos, daqueles que, por inferioridade moral/biológica (sic), precisam ser tutelados, justificando, assim, uma abominável hierarquia racial, conjugados em torno de um projeto educativo. É tempo de emancipação da loucura dos discursos que a subjugaram.
Manaus, Julho de 2010.
Rogelio Casado , especialista em Saúde Mental
www.rogeliocasado.blogspot.com
Nota do blog: Artigo publicado no jornal Amazonas em Tempo, na caderno Saúde & Bem Estar.
Nota do blog: Artigo publicado no jornal Amazonas em Tempo, na caderno Saúde & Bem Estar.
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