Freud e a teoria social
O patológico fornece a visibilidade do que está em jogo nas condutas sociais gerais
Publicado em 22 de junho de 2010
Vladimir Safatle
Freud é um autor fundamental no esforço de constituir um campo de reflexão sobre a modernidade. O recurso a ele foi uma constante em várias correntes de pensamento do século 20 e a razão para tal constância era evidente: longe de se colocar apenas como uma clínica do sofrimento psíquico, a psicanálise freudiana procurou, desde seu início, ser reconhecida também como teoria das produções culturais para desvendar a maneira com que sujeitos mobilizam sistemas de crenças, afetos, desejos e interesses para legitimar modos de integração a vínculos sociopolíticos. Freud afirmava que “mesmo a sociologia, que trata do comportamento dos homens em sociedade, não pode ser nada mais que psicologia aplicada. Em última instância, só há duas ciências, a psicologia, pura e aplicada, e a ciência da natureza”.
Partir do patológico sem reduzir o social
Não se trata aqui de reduzir a dimensão do social ao psicológico. Na verdade, esse recurso à psicanálise apenas realizava a intuição do sociólogo alemão Max Weber a respeito da necessidade de explicar como a racionalidade dos vínculos sociais depende fundamentalmente da disposição dos sujeitos em adotar certos tipos de conduta.
Em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Weber lembrava como a racionalidade econômica do capitalismo dependia fundamentalmente da disposição dos sujeitos em adotar os tipos de conduta ligados a um modo de ser que remetia à ética protestante do trabalho e da convicção, estranha ao cálculo utilitarista, e cuja gênese deve ser procurada no calvinismo. Sem essa ética internalizada, os sujeitos nunca desenvolveriam disposições para trabalhar, poupar e acumular do modo que o capitalismo exigia. No caso de Freud, essa análise das disposições individuais nascia de uma maneira peculiar. Em vez de partir do que deveria ser normal a todos os sujeitos, Freud partia da análise daqueles que, de certa forma, portavam as marcas do fracasso da razão, daqueles que guiavam suas condutas de maneira “patológica” e “irracional”. No entanto, o que Freud procurava era transformar a compreensão do patológico no modo de acesso ao verdadeiro mecanismo do comportamento normal. O que não poderia ser diferente para alguém que acreditava que a conduta patológica expõe, de maneira ampliada, o que está realmente em jogo no processo de formação das condutas sociais gerais. É dessa forma que devemos interpretar uma metáfora maior de Freud: “Se atiramos ao chão um cristal, ele se parte, mas não arbitrariamente. Ele se parte, segundo suas linhas de clivagem, em pedaços cujos limites, embora fossem invisíveis, estavam determinados pela estrutura do cristal”. O patológico é esse cristal partido que, graças à sua quebra, fornece a inteligibilidade do comportamento definido como normal.
Por exemplo, Freud nunca cansou de lembrar que “um ser humano se torna neurótico por não poder suportar a frustração (Versagung) imposta pela sociedade com seus ideais culturais”, sem que essa impossibilidade o leve ao ponto de negar todo e qualquer interesse por tais ideais. Para assumir tais ideais, os sujeitos devem estabelecer certo compromisso entre suas exigências individuais de satisfação e aquilo que é socialmente permitido. Tal compromisso exige, necessariamente, aceitar certa frustração, submeter-se a certa coerção e conflito. Esse é, para Freud, um traço geral dos processos de socialização. No entanto, os neuróticos vivem tal compromisso como fonte profunda de sofrimento psíquico. Entender as causas de tal sofrimento psíquico nos permite, por outro lado, apreender a verdadeira natureza dos compromissos presentes em todo processo de assunção de ideais, normas e valores sociais. Dessa forma, poderemos partir da frustração patológica para, ao final, encontrar seus traços em todo comportamento normal.
Notemos um dado fundamental aqui. Quando alguém está doente, cremos que sabemos isso porque comparamos sua situação com uma situação normal da qual disporíamos previamente. Ou seja, a doença nos aparece como uma derivação do normal. No entanto, Freud faz praticamente o inverso. Ele parte do sofrimento vivenciado pelo doente que procura amparo clínico. Em vez de simplesmente curá-lo, ele procura inicialmente mostrar como seu sofrimento expõe conflitos e processos gerais na constituição de todo e qualquer indivíduo. Isso lhe permite problematizar uma noção demasiadamente normativa e sublimada de normalidade.
No entanto, não se trata com isso de simplesmente negar a distinção entre normal e patológico. Podemos dizer que, no caso de Freud, temos uma diferença qualitativa fundamental entre normal e patológico. Se é verdade que o patológico permite a visibilidade de processos e conflitos presentes no comportamento normal, é porque o patológico transforma em motivo de quebra aquilo que o comportamento normal é capaz de suportar sem cindir-se e dissociar-se.Por exemplo, a ambivalência entre amor e ódio na relação com o objeto de desejo, assim como a erotização da autoridade, é um traço que encontramos em todo comportamento. Mas é na neurose obsessiva que tal ambivalência e tal processo são vivenciados para produzir necessariamente sintomas, inibições e angústia. Ou seja, há uma diferença qualitativa na vivência de processos estruturalmente semelhantes. Eles ganham visibilidade, como os sulcos do cristal quebrado, porque começam a produzir fenômenos que não produziriam em algo que poderíamos chamar de uma situação normal (e que nada mais é do que a ausência de certos sintomas, inibições e angústias em outras situações patológicas, já que não há sujeitos sem sintomas de sofrimento psíquico).Mas dizer que o patológico é o ponto que fornece a visibilidade do que está em jogo nas condutas sociais gerais significa, necessariamente, dizer que “normal” e “patológico” são categorias que podem ser utilizadas para compreender fatos sociais. Proposição aparentemente temerária, a não ser que mostremos que a verdadeira crítica social pode ser algo como uma “análise de patologias do social”. Talvez essa seja a lição que podemos tirar ao tentar trazer Freud para o domínio da teoria da sociedade.
Da necessidade de críticas totalizantes
Nesse sentido, podemos dizer que o recurso a Freud nos permite compreender que uma crítica social é indissociável da análise dos procedimentos de socialização que visam conformar sujeitos a formas de vida aspirantes a uma validade que não se reduz apenas aos domínios da tradição e do hábito. Por um lado, sabemos como os dispositivos de formação e de individuação presentes nas dinâmicas de socialização são legíveis a partir daquilo que compreendemos como sendo processos de identificação mimética e de investimento libidinal. Até porque socializar é, fundamentalmente, “fazer como”, atuar a partir de tipos ideais que servem de modelos de identificação e de polo de orientação para os modos de desejar, julgar, falar e agir. Mas sabemos também que essa identificação com tipos ideais não pode ser descrita simplesmente a partir de considerações sobre as pressões de conformação presente em núcleos elementares de interação social (família, instituições sociais, mídias). Freud compreendeu que as estruturas elementares que orientam o que está em jogo nesses núcleos de interação são figuras privilegiadas da razão. As exigências de racionalidade presentes nesses núcleos são, necessariamente, manifestações privilegiadas do que estamos dispostos a contar como racional. No entanto, nunca deixará de colocar a questão: “o que é necessário perder para se conformar a exigências de racionalidade presentes em processos hegemônicos de socialização e de individuação?”, ou, ainda, “qual o preço a pagar, que tipo de sofrimento devemos suportar, qual o cálculo econômico necessário para viabilizar tais exigências?”.
Essa questão está claramente enunciada em trechos como, por exemplo: “Grande parte das lutas da humanidade centralizam-se em torno da tarefa única de encontrar uma acomodação conveniente, ou seja, um compromisso (Ausgleich) que traga felicidade entre reivindicações individuais e culturais; e um problema que incide sobre o destino da humanidade é o de saber se tal compromisso pode ser alcançado através de uma formação determinada da civilização ou se o conflito é irreconciliável”. Pois devemos nos perguntar o que deve acontecer ao sujeito para que ele possa se pautar por um regime de racionalidade que impõe padrões de ordenamento, modos de organização e estruturas institucionais de legitimidade. Como deve se organizar sua economia libidinal para que ele possa ser reconhecido, como sujeito agente, por estruturas institucionais que aspiram garantir a racionalidade de nossas dinâmicas sociais. Toda discussão freudiana clássica da imbricação entre socialização e repressão, que encontramos em textos como O Mal-estar na Civilização, é apenas o ponto mais visível desse problema.
Essas perguntas são fundamentais por nos levarem a uma visão renovada do que pode ser a crítica social. Sendo os núcleos de interação social modos de realização de formas de ordenamento, de determinação de validade do que estamos dispostos a contar como racional, então a verdadeira crítica social deverá ser uma análise das formas de vida que se perpetuam por meio dos modos institucionais de reprodução social.
No entanto, como bem nos lembra Axel Honneth, sabemos desde ao menos Rousseau que tal análise pode nos levar à denúncia ampla do caráter distorcido das formas de vida na modernidade ocidental. Nesse caso, ela se transforma em crítica da natureza patológica de tais formas de vida com suas exigências de autoconservação e reprodução social. Notemos que, aqui, uma forma de vida poderia ser chamada de “patológica” por produzir um sofrimento social advindo da impossibilidade de dar conta de exigências de reconhecimento dos sujeitos em suas expectativas de autorrealização. Ou seja, nesse caso, a estrutura conceitual e valorativa “normal”, cuja internalização constitui sujeitos agentes, produtores de deliberações racionais, já seria “patológica”, pois indissociável da perpetuação de uma situação de sofrimento advinda, ao menos no caso de Rousseau, da perda de um horizonte originário que se confunde com a natureza como plano positivo de doação de sentido.
Se deixarmos de lado a temática rousseauísta do retorno à origem, é bem possível que esse esquema esteja animando algo da intuição freudiana. Trata-se de se perguntar se o sofrimento social que produz patologias não expõe, de maneira mais clara, o funcionamento dos processos de formação de subjetividades normais. Trata-se, ainda, de investigar se isso não nos obrigaria a perguntar pelos conflitos que estão por trás dos sistemas de normas e regras que compõem a vida social e, principalmente, por novas maneiras de gerir tais conflitos.
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Nota do blog: A dica do texto é de Cristina Barreto.
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