julho 26, 2010

Monteiro Lobato e o valor dos “erros” gramaticais

[ Monteiro Lobato diz aonde nós deve ir ]



» por Sergio Leo* «



Imperdível a exposição do Emílio Goeldi no Centro Cultural dos Correios, no Centro do Rio. Mas como estava com medo de perder a barca das seis para Niterói, onde pegaria minha bagagem e voltaria ao Rio para tomar o voo a Brasília, perdi a mostra. Deu tempo só de dar uma olhadinha, ver a enorme coleção de desenhos, gravuras e até uns guaches ou aquarelas do artista. Montaram na entrada uma parte do ateliê de Goeldi, com ferramentas, matrizes, jornais da época… No fim de semana que vem volto ao Rio, se algum assaltante local quiser me roubar é só esperar na porta.



Perdi a exposição por culpa do Carlos Lessa. O ex-presidente do BNDES, grande cara, comprou ou já tinha uns casarões da rua do mercado, ali perto, reformou, fez uns botecos e um sebo, e, por causa disso, foi lá, vagando pelas estantes, que perdi a hora e comprei dois livros. Um pequenininho, espanhol, Romanceiro do El Cid, e Prefácios e entevistas do Monteiro Lobato, que vim lendo no avião da TAM, depois de recusar a balinha gruda-no-dente que a simpática aeromoça de meia idade me oferecia logo após a decolagem.


Pois o Monteiro Lobato (vejo no prefácio do livro que seu Reinações de Narizinho foi editado e apreciadíssimo na Argentina dos anos 40; será que argentinos têm com ele a paixão que os brasileiros têm ou era só a Cristina Kirchner?), o inimitável Lobato, conseguiu em um parágrafo o que o Marcos Bagno não conseguiu em um livro inteiro: me convencer do valor dos “erros” gramaticais.


O Bagno já comentei, tem um livro respeitadíssimo e influente nas escolas de Letras, em que, unindo linguística, multiculturalismo, marxismo e populismo, diz que as regras gramaticais são um instruimento de exclusão e dominação cultural. Ele repreende severamente os professores que rejeitam os erros de gramática dos alunos.


Uma parcela do livro do Bagno é meritória, ao mostrar para os professores que há uma lógica própria e coerente em muitos dos que consideramos erros no uso da língua, e essa lógica tem origem de classe, ou regional. Mas o Bagno tem um jeito paternalista de tratar do assunto, e reprime o impulso dos professores em corrigir o mau uso do português, sem dar os alertas necessários. Além de indicativo de classe (ao revelar nível de instrução, sobretudo), a normatização da língua é essencial para reduzir o espaço para a má interpretação, para a ambiguidade, para o ruído. E também pode ter função contrária ao papel excludente que o Bagno condena, ao igualar o falar e escrever de ricos e pobres, dificultando a identificação e discriminação de pessoa conforme a maneira de se expressar na língua nacional.


Ou seja, Bagno é essencial para mostrar como a escola pode aprofundar desigualdades ao ser insensível às razões do “falar errado”; e é prejudicial à escola ao recomendar a leniência com os desrespeitos à norma culta, já que os alunos dependem dessa norma culta para transitar pelos diversos ambientes sociais que encontrarão fora da sala de aula. Apenas dizer aos professores que não devem louvar a norma culta é desprevení-los para o papel que a mesma norma pode ter na ascensão social dos estudantes. Quem fala corretamente inspira mais respeito, é uma regra respeitada inconscientemente, das portarias às gerências.


Aí chega o Monteiro Lobato, que devorei entre goles de cerveja Xingú e um sanduba misto relativamente decente no voo da TAM. Ele, em português irreprochável, defende também a sabedoria popular. Mas sem populismo, e com a garra com que defendia tanto suas ideias revolucionárias como as reacionárias, mata a pau. Uma pontaria que não encontrei em nenhuma das páginas do Bagno. Não se trata de apenas reconhecer a legitimidade do falar popular; a questão é, se ele é legítimo, aproveitá-lo para um programa de mudanças. Fala Lobato, grande militante:
Se a língua mais espalhada do mundo, como é a inglesa, dispensa flexões, isso demonstra que a flexão é uma inutilidade, um atraso, um retardamento da evolução. E no português da roça no Brasil as flexões vão desaparecendo. Um caboclo da roça fala na moda inglesa. Diz, por exemplo: “eu vou, você vai, ele vai, nós vai, vocês vai, eles vai”, em vez de dizer como no portugues gramatical, ou não evoluído: “eu vou, tu vais, ele vai, nós vamos, vós ides, eles vão”
O texto começa contando uma palestra de um brasilianista em que o discurso simplificado do português de gringo revelou a Lobato o “português básico”. Esqueça a descarada anglofilia do Lobato e a equivocada teoria implícita de que o inglês é popular por ser simples, não porque é a língua das potências mundiais dominantes na globalização desde o fim do século XIX. Ele prova que a lógica na simplificação de flexões do caipira não é só a de uma norma ligada a certo extrato social; é, como acontece no inglês, uma comunicação inteligível e muito mais eficaz, por reduzir a margem de erros.


Minha sugestão seria a que ele defende no texto seguinte: que as escolas ensinassem a gramática normativa e, após estudar as regras da gramática que ele chama caipira, a ensinassem também. A simplificação leva à eliminação do plural das palavras precedidas por artigo já indicativo no plural, como “as casa”, “os livro”, por exemplo. Está claro que são mais de uma casa, mais de um livro. Está claro que é várias casa, vários livro, digo. As pessoas entenderiam a lógica por trás do que falam, e do que escrevem ou leem. Ou não. Eu era péssimo aluno de português por detestar o decoreba a que tentavam, sem sucesso, me submeter na escola. Por isso talvez minha adesão entusiasmada às teses do Lobato nesse campo.


Sei que alguns de vocês não vai concordar com isso, mas nós ainda pretende aperfeiçoar essa tese. Pode esperar aí vocês tudo.


Sergio Leo, Brasília-DF, é escritor e jornalista. Blog: verbeatblogs.org/sergioleo.


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Fonte: Amálgama

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