julho 29, 2010

Quem tem medo da Attac?


DEBATE ABERTO

Quem tem medo da Attac?

A crise recente do capitalismo financeiro internacional recolocou o debate sobre a importância de políticas públicas e da presença do Estado na economia, por meio da política fiscal. E, pouco a pouco, foram sendo abertos espaços para o debate das idéias de Tobin e da ATTAC.
Vamos aqui refrescar um pouco a memória de alguns e trazer informação nova para outros. Antes que me acusem de estar sugerindo a retomada de alguma estratégia ultra-esquerdista em razão do título, vou logo esclarecendo o sentido da sigla. Trata-se de um importante movimento nascido na França, mas que logo começou a ganhar escala internacional, muito na onda do altermundismo e das articulações em torno das diversas etapas do Fórum Social Mundial. ATTAC é a sigla da “Associação para a Taxação das Transações Financeiras para Ajuda aos Cidadãos”, criada em 1998.

Um dos pilares do surgimento da entidade foi a proposta de uma ampla mobilização internacional em torno da criação de um tributo (imposto ou taxa, a depender da tradução) que incidisse sobre as transações financeiras em escala planetária, com o objetivo de constituir um fundo internacional voltado para a erradicação da miséria e a redução das desigualdades. Sonho utópico sem a menor base na realidade? Devaneio desses ongueiros europeus que não conhecem a realidade do Terceiro Mundo? Nem vou entrar aqui nessa polêmica que vale por si só outro artigo, mas o fato é que a origem dessa proposta está onde poucos poderiam imaginar: no coração mesmo do establishment do capitalismo financeiro e internacional.

James Tobin (1918-2002) foi um importante economista norte-americano, renomado professor universitário e que ocupou posições de destaque no governo daquele país. Dentre outras funções, pode-se mencionar o cargo de membro do Comitê de Assessoria Econômica do Presidente Kennedy, na década de 60. Apesar de se reivindicar como pertencente às correntes influenciadas pelos trabalhos de John Keynes, Tobin teve seu nome indicado e aprovado para o Prêmio Nobel de Economia em 1981. Em mais uma dessas contradições da História, isso ocorre bem num período marcado pela rigidez da ortodoxia econômica e o endurecimento político-diplomático da chamada era Reagan/Thatcher. A duplinha dinâmica formada pelo Presidente norte-americano, do Partido Republicano, Ronald Reagan e a Primeira Ministra britânica, do Partido Conservador, Margaret Thatcher, conhecida como a Dama de Ferro. Tristes tempos aqueles...

Mas a grande contribuição que esse economista deixou como legado histórico foi a sua proposição de criação de - pasmem! - um imposto incidente sobre as transações financeiras internacionais, em especial as operações de natureza cambial. Pois é, exatamente isso. E essa idéia ficou conhecida, desde a década de 70, pela paternidade de um de seus autores: taxa Tobin. Não é difícil imaginarmos a enorme resistência que uma proposta de tal natureza encontrou, a partir de então, a cada tentativa de debate a respeito de sua possível implementação. Foram quase 3 décadas de supremacia hegemônica do pensamento e dos postulados do neoliberalismo pelo mundo afora. Tudo aquilo que pudesse sugerir algum mecanismo de intervenção pública ou de regulamentação do todo-poderoso-deus-mercado era imediatamente carimbado como “irresponsável”, catalogado na categoria das medidas “populistas” e descartado a priori da agenda.

Mas, felizmente, houve muitos focos de resistência à violência dessa maneira de analisar o mundo e o fenômeno econômico. O movimento progressista não se deixou abater tão facilmente. E uma das contribuições foi justamente o ATTAC ter recuperado, quase 20 anos mais tarde, as idéias de Tobin e lançado o debate em escala mundial. O argumento é de que a política fiscal (neste caso, a criação de um imposto) pode e deve sim ser utilizada para corrigir distorções sociais e econômicas. Neste caso, a grande novidade - e ao mesmo tempo, o grande desafio - era a proposta de implementação de um tributo de natureza internacional. E esse foi, aliás, um dos principais argumentos esgrimados pelos adversários da idéia. Simples assim: ora, como não há um Estado mundial, não pode haver um imposto internacional... No entanto, isso não significa que a tarefa seja assim tão simples. Há que se criar instituições responsáveis pela arrecadação do tributo, com elevado grau de convergência no plano dos organismos multilaterais. Há que se criar mecanismos institucionais de controle e avaliação da aplicação dos recursos. Porém, creio que o essencial seja ter a efetiva vontade política para transformar o sonho em realidade.

Como não poderia deixar de ser, a crise recente do capitalismo financeiro internacional recolocou o debate sobre a importância de políticas públicas e da presença do Estado na economia, por meio da política fiscal. E, pouco a pouco, foram sendo abertos espaços para o debate das idéias de Tobin e da ATTAC. Os encontros internacionais de economia, as universidades e os próprios organismos multilaterais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, passaram se interessar pela proposta. Pelo menos, o tema perdeu um pouco daquele preconceito do passado e está presente na pauta das principais instituições que lidam com o assunto.

Há diversas iniciativas ocorrendo simultaneamente na esfera diplomática. De acordo com artigo de Marcio Pochmann, presidente do IPEA (1) , o Brasil participa de uma delas, ao lado de outros países, como França, Japão, Alemanha, Chile e Inglaterra. A própria ONU criou um grupo de trabalho para tratar do assunto, uma vez que é possível incluir a proposta no âmbito da Assembléia Geral da ONU de setembro próximo, quando será realizada uma avaliação dos primeiros dez anos dos Objetivos do Milênio. Há diferentes propostas: taxar apenas as operações de natureza cambial, taxar o conjunto das operações financeiras na esfera internacional, criação de um fundo apenas para erradicação da miséria, utilização dos recursos para redução das desigualdades entre os países e assim por diante. Porém, o que parece inquestionável é que o volume de recursos com os quais se lida nesse debate é mais do que suficiente para iniciar os trabalhos que a maioria da população e dos países do mundo tanto necessitam. Apenas a título de ilustração, uma irrisória alíquota de 0,005% incidente sobre as operações cambiais em todo o mundo proporcionaria recursos anuais da ordem de US$ 30 bilhões.

No mês de junho passado, em outro evento solenemente esquecido pela pauta dos grandes órgãos de comunicação de nossa terra, o IPEA realizou um importante seminário a respeito da questão. Além do debate com especialistas, o momento foi marcado pelo lançamento de uma valiosa publicação: “Globalização para Todos – Taxação Solidária sobre os Fluxos Financeiros Internacionais” (2). O livro é uma co-edição do IPEA com a Fundação Alexandre Gusmão, vinculada ao Ministério das Relações Exteriores. No prefácio, o Presidente Lula afirma que “em vários países há esforços consideráveis para combater a fome e a pobreza extrema. Mas, no mundo de hoje, essa não é uma tarefa que os povos possam concluir isoladamente. Existe fome de inclusão social, de oportunidades econômicas e de participação democrática. Essa é a base para um mundo civilizado, cuja construção deve ser responsabilidade de todos.”

Ocorre que não bastam apenas seminários fechados e articulações na esfera diplomática. É necessário trazer a discussão para as luzes da cena política, buscando o apoio da população e das forças políticas organizadas para esse tipo de medida. E nenhum momento se revela mais adequado para isso do que os debates de programas dos candidatos e candidatas às eleições de outubro. Tanto se fala no crescimento da importância adquirida pelo Brasil nas esferas de negociação internacional. Ora, esse tipo de proposta, uma vez trazida ao debate aberto e amplo na sociedade, só reforçaria a legitimidade de nossos negociadores e propiciaria a adesão de outros países que certamente seriam beneficiados por essa taxação inovadora. Afinal, a idéia é justamente essa: a de que os países mais ricos, que mais negociam nas transações internacionais, dêem a sua efetiva contribuição para a construção de um mundo menos desigual.

O processo de avanço político rumo a uma sociedade mais justa não se dará de forma contínua e tranqüila. Se o projeto de disputa pelo poder pretende transformar estruturas e eliminar privilégios, isso significa que deverão ocorrer mudanças. E os setores afetados tenderão a se mobilizar contra, é óbvio. Assim como houve tanta resistência à taxa Tobin na esfera internacional, aqui dentro de nosso País, desde 1988 que a sociedade não consegue discutir de forma adequada o tributo previsto no inc. VII, do art. 153 da Constituição Federal, o tão temido Imposto sobre Grandes Fortunas. Os governos e boa parte dos políticos mais à esquerda se atemorizam frente ao poder das elites e não se dispõem a cumprir o que deles se espera. As propostas estão no Congresso Nacional há muitos anos, aguardando a entrada em pauta para votação. Parece que falta a coragem política de anunciar em alto e bom tom: esse assunto é prioritário e o governo vai usar a sua maioria no legislativo para aprová-lo.

E para os que gostam de uma parábola futebolística e ainda estão, como eu, remoendo as dores da estratégia retranqueira imposta por Dunga à seleção canarinho, vale trazer aqui a lembrança da máxima do esporte bem jogado, bonito e carregado de emoções: o ataque é a melhor defesa!

(1) Ver http://www.ipea.gov.br/003/00301009.jsp?ttCD_CHAVE=14698

(2) A íntegra do documento está disponível na página do IPEA
http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/100610_livro_globalizacaoparatodos.pdf

Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.

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