PICICA: "No momento em que o aperto
econômico novamente se avizinha, a pergunta que deve nortear nossas
ações é onde devemos depositar as parcas energias."
A esquerda contra o golpe. Ou: “façamos o ‘retrocesso’ antes que a direita o faça”
31 de março de 2016
No momento em que o aperto
econômico novamente se avizinha, a pergunta que deve nortear nossas
ações é onde devemos depositar as parcas energias. Por Passa Palavra
De
modo geral, uma grande parcela de entusiastas e militantes que hoje se
aglutina em torno da defesa da “legalidade democrática” e da luta contra
o impeachment sustenta que esta é hoje uma tarefa inequívoca
de toda a esquerda, em que pese todas as críticas de que o atual governo
é passível.
Em uma perspectiva mais defensiva, como a expressa em comentários de Leo Vinícius,
argumenta-se que a opção por não tomar partido na polarização que se
acirra entre governistas e oposicionistas incide na leviandade de
desconsiderar a possibilidade de “retrocesso” que estaria em jogo, e que
o uso de exemplos de violações de garantias democráticas nas camadas
sociais mais baixas serviria apenas como justificativa para esta
indiferença. Outra postura, mais pró-ativa, como a defendida por Cássio
Brancaleone em seu artigo recentemente publicado no Passa Palavra,
entende que a “esquerda libertária”, sem qualquer ilusão com o cenário
pró-governo, deve atuar por dentro das manifestações “antigolpistas” com
a finalidade de fazê-las ultrapassar o sentido original, marcadamente
institucional, e conduzi-las para horizontes mais radicais.
Ambas as formulações supõem que, somando
esforços táticos no campo governista, estaríamos, de uma forma ou de
outra, nos protegendo do avanço conservador, quando se torna cada vez
mais evidente, segundo nosso ponto de vista, que se existe alguma
possibilidade de os movimentos mais radicais de esquerda voltarem a ter
relevância no tecido social, ela passa necessariamente pelo completo
descolamento da imagem e, principalmente, da estratégia petista de
conduzir um projeto de poder embrenhando-se nas teias do Estado com
todas as práticas que essa opção implicou.
O que aparece como evidente sobretudo na
primeira destas formulações, que se escandaliza com a “lavada de mãos”,
é na verdade o que precisa ser demonstrado. Temos acordo que, para além
da questão técnica de saber se estamos ou não diante de um golpe no
Brasil, o problema decisivo gira em torno de mensurar o prejuízo social e
político que um cenário de deposição do governo acarretaria nas
condições de vida e organização política da classe trabalhadora. Daí que
a crítica ao alarde do golpe comparece como um momento necessário para
aterrar o debate e pô-lo em condições de ser tratado com um pouco mais
de serenidade.
Antes do mais, convém esclarecer que não
se trata de fazer demagogia diante do tema. Apesar de não reconhecer a
democracia representativa como instância privilegiada dos embates, não
ignoramos as condições reais que estão colocadas para os lutadores em
geral e, sobretudo, os que buscam meios que fogem à arena geradora de
consensos. Sabemos que, no contexto de uma ditadura, dado o grau de
esfacelamento de nossas habilidades organizativas, seríamos, de saída,
incapazes de nos sustentar por uma semana que fosse em condições de
clandestinidade. Assim, não tergiversaríamos diante de situações em que
fossem estas alternativas efetivamente colocadas. Ocorre que
questionamos se as duas grandes saídas possíveis contidas no dilema do impeachment correspondem mesmo a futuros tão díspares para o cotidiano de lutas e resistências.
Sob esta ótica, a pergunta que devemos
nos fazer é o quão vantajoso se apresenta o empenho de energias na
construção de frentes e espaços unitários de oposição ao impeachment.
O que de concreto ganhar-se-ia – ou deixar-se-ia de perder – envidando
esforços contra o avanço do assim chamado golpe? De nossa parte,
argumentamos que, de uma perspectiva de longo prazo, o preço político de
compor mobilizações junto às forças ligadas ao governo seria muito
maior que suas possíveis vantagens.
Ainda
que se admitisse a derrubada da presidente como algum tipo de afronta à
ritualidade democrática, já houve tempo o suficiente – e precedentes de
todas as sortes – para que mantenhamos os dois pés atrás frente à
alegada defesa política e econômica de que tal empreitada nos
beneficiaria.
No automatismo lógico que vincula a
queda do governo a perdas democráticas aposta a operação semântica
petista, que, apesar da ruína que os acontecimentos lhe deverão
acarretar nos planos eleitorais, tem conseguido com admirável sucesso
aproveitar a escancarada parcialidade de algumas instituições para
reforçar o seu papel catalisador na fatia esquerda do espectro político,
cujos primeiros sintomas de erosão deram-se nos protestos de 2013. A
sacada discursiva do momento não difere muito das estratégias marqueteiras do período eleitoral, e basicamente consiste em arrastar para a vala comum do impeachment
todo o recrudescimento repressivo que se abateu sobre os movimentos
sociais mais combativos nos últimos tempos, de modo que a ideia de
vitória do governo nos altos escalões aparece confundida com a derrota
do conservadorismo no chão social. O que de modo algum é verdade.
No que diz respeito à liberdade de
organização e resistência dos setores populares, é preciso lembrar que
esta curva repressiva se acentua ao menos desde os primeiros protestos
de 2013, e é duramente incrementada no contexto da realização da Copa do
Mundo, em 2014, com total complacência do governo federal e do Ministério da Justiça.
Fala-se em combater a direita nas ruas, denuncia-se os absurdos que
Bolsonaros, Olavos de Carvalho, Eduardos Cunhas e similares cometeriam
se um dia tivessem mais poder em mãos. Disso não duvidamos! Mas quem nos
últimos anos agiu para aplicar expedientes de exceção é o governo que
estamos chamados a defender para – pasmem! – barrar o conservadorismo.
Afinal, foi o governo Dilma, sem a ajuda de Cunhas e MBL, que colocou o
exército na Favela da Maré; que enviou tropas da Força Nacional para
reprimir protestos de operários das grandes obras e indígenas em luta
pela demarcação de terra; e silenciou-se diante das inúmeras prisões
arbitrárias, preventivas, que foram realizadas por ocasião da Copa do
Mundo.
A extrema-direita existe e é perigosa,
causa estragos irreparáveis às vidas das pessoas, mas convenhamos que
ela faz em escala de varejo o que o atual governo tem feito no atacado,
embora com mais discrição. É de se indagar, portanto, se a efetivação de
um processo de impeachment, mais ou menos baseado na violação
de procedimentos jurídico-legais, se colocaria como cenário técnica ou
efetivamente tão mais tenebroso que a vigência de um dispositivo
doravante legal como a recém-sancionada Lei Antiterrorista.
Em outro plano, esse falso silogismo, que associa derrota do impeachment
à derrota do conservadorismo, nem pode ser atribuído aos principais
porta-vozes do campo petista, visto que, para além de fraseologias
abstratas e demasiadamente genéricas, estes não fazem a menor questão de
prenunciar concessões em benefícios dos trabalhadores em caso de
recuperação da governabilidade. Ao que tudo indica, o roteiro – bem
desanimador – parece já estar traçado, e infelizmente nada ou muito
pouco de substancial parece estar em disputa. O governo não dá sinais de
que irá frear sua política econômica austera contra os trabalhadores, e
avança na retirada de direitos, na criminalização e no isolamento de
iniciativas de luta que ousem avançar o sinal.
Não foi outro o recado de Lula ao discursar no carro de som durante o ato do dia 18 de
março. Dirigindo-se, na verdade, ao grande capital, Lula procurou
enfatizar a importância de seu papel conciliador em momentos de crise,
apresentando-se como agente indispensável para que os cortes estruturais
sejam passados com o consentimento de organizações sindicais e
populares. “Em época de crise”, disse Lula com aquela habilidade que lhe
é própria, “a gente junta todo mundo e come o que tem, faz o que pode
naquele momento que estão vivendo. Por isso, vou ajudar a companheira
Dilma a fazer o que precisa fazer”.
A não ser que tenhamos deixado o
realismo completamente de lado, sabemos que o conteúdo implícito na
expressão “fazer o que precisa fazer” em época de crise certamente não
corresponde às expectativas, defensivas que sejam, dos setores mais
reformistas da esquerda. Medidas que, aliás, já estão em pleno
andamento, com as restrições impostas aos direitos trabalhistas, ainda no final do primeiro mandato, a completa paralisação da reforma agrária, o encolhimento de programas sociais como o Pronatec e o Fies , atrasos de contratos do Minha Casa, Minha Vida Faixa 1 (para famílias que ganham até R$1,6 mil por mês), vetos ao ajuste do Bolsa Família e, mais recentemente, o lançamento de Projeto de Lei que
visa ao congelamento de benefícios e aumentos salariais para o
funcionalismo público. Tratam-se de ações que fazem realmente pensar se o
documento Ponte para o Futuro, do tão temido vice-presidente Michel Temer, configura-se mesmo como uma mudança de rota ou apenas reedita o presente.
Se o golpe contra o qual se luta, mais
do que um detalhe técnico, se caracteriza por um conjunto de medidas
“regressivas” que afetam os trabalhadores econômica e politicamente,
então é forçoso reconhecer que ele tende a ser implementado por qualquer
que seja a parte triunfante da atual contenda. O que se está em
disputa, de um ponto de vista pragmático dos trabalhadores, é a
definição sobre qual seria a burocracia política mais apta a transmitir a
má notícia e aplicá-la sem produzir maiores convulsões. A evocação
abstrata da defesa democrática, neste ponto, atua de forma
espantosamente eficaz, fazendo com que grandes organizações e elementos
difusos da esquerda se movimentem de joelhos em torno de algo que nem
mesmo é enunciado, prometido ou barganhado, como ainda é comum em épocas
de campanha eleitoral. Afinal, qual é a contraparte ao menos
verbalmente oferecida por Dilma ou Lula em troca do apoio das massas
contra o impeachment?
Houve um tempo em que lamentávamos
o fato de setores e elementos destacados da esquerda confundirem
promessas de campanha com efetividades de governo. Mas, hoje, até as
promessas se tornaram dispensáveis: vá-se atrás da primeira bandeira que
lhe aparece à frente, de preferência vermelha e com a genérica
inscrição “contra o retrocesso”, a despeito do conteúdo concreto que ela
possa representar.
Descartada as possibilidades de ganho em
seus aspectos mais palpáveis, pode-se ainda sustentar que a luta ao
lado do governo neste momento abrigaria uma dimensão simbólica, como a
defesa de uma memória de resistência e de toda tradição revolucionária.
Se é assim, não seria demais reconhecer que a reaglutinção de forças à
esquerda na órbita petista ocorre muito mais por inclinações emocionais,
de afeição a uma imagem – sabiamente mobilizada pela figura de Lula –
do que por qualquer cálculo político racional.
Em seu artigo, Cassio Brancaleone sugeriu que a postura anti-impeachment
neste momento se justificaria, entre outros fatores, porquanto a onda
antipetista corresponderia na verdade à tentativa de aniquilamento de
todo o imaginário social de transformação radical. O autor de Na beira do abismo?
defende a ideia de que haveria conexões “entre o golpe palaciano no
andar de cima da política com a ofensiva ideológica conservadora no
andar de baixo”, de modo que uma derrota do governo na disputa do impeachment
retroalimentaria a ofensiva reacionária na sociedade. Mas também aqui
nos parece fundamental separar a luta contra o fascismo e o
conservadorismo das ruas, uma batalha mais ampla e duradoura, da luta
contra a deposição de um mandato, ligada a conveniências conjunturais e
muito pontuais.
Além de observar que o processo de
desaparição das expectativas revolucionárias já está há décadas em
curso, tendo como uma das suas principais expressões nestas terras a realpolitik
petista, é prudente advertir para que tal defesa da tradição não se
confunda com o apego quixotesco e fetichista à simbologia do “vermelho”.
Hoje, nos parece, o mais importante desafio é deixar bem separado, nos
planos prático e ideológico, as deformações historicamente cometidas em
nome do ideário socialista, por um lado, e o que vem a ser os interesses
mais profundos das classes proletárias, por outro. E tal batalha não se
faz opondo palavras contra palavras, sem se engendrar fatos objetivos,
gestos e métodos de ação que demarquem com nitidez a distância que nos
encontramos (ou pretendemos nos encontrar) do projeto que ora agoniza.
A tarefa nos impele a um melhor
entendimento do quadro generalizado de insatisfações e descrença diante
do governo e, mais além, do próprio sistema político. É importante
diferenciar posições de segmentos mais precarizados da classe – que em
sua grande maioria nem estão presentes nos grandes atos, mas desaprovam o
governo –, do núcleo formado por entidades patronais, partidárias,
agrupamentos conservadores da sociedade civil e, de forma secundária,
aqueles de cariz indubitavelmente fascista. Notoriamente, este último,
mais organizado, disputa o sentido das indignações dispersas e procuram
estendê-las a todo e qualquer conteúdo de esquerda, que acaba sendo
automaticamente assimilado às artimanhas de que o PT precisou lançar mão
quando decidiu dirigir-se à gestão do Estado. Porém, em relação aos
setores da classe situados mais abaixo na pirâmide social, deveria ser
compreensível para nós que um dos elementos que tornam a corrupção do PT
mais facilmente odiável que a de outros partidos é o fato de ele ter
sido, desde o processo de abertura política até o momento atual, o
grande portador das expectativas populares de transformação da
realidade. Fartamente explorado pelos meios de comunicação, para a
experiência cotidiana de trabalhadores que ‘ralam’ de sol a sol, este é
um fator de indignação real que, ao ser lançado em um contexto de contração de benefícios sociais e aumento da inflação e do desemprego, torna tais escândalos de “corrupção” um ingrediente explosivo.
A circunstância faz lembrar uma reflexão feita por José Mário Branco, logo no início deste site, sobre a dimensão contrapropagandista sempre presente nas tarefas revolucionárias:
Uma vez, em 1975, durante o processo revolucionário a que os brasileiros chamam Revolução dos Cravos, um amigo meu, revolucionário comunista, foi desenvolver e organizar a luta política em Trás-os-Montes (interior nordeste de Portugal) onde, pensava-se, as pessoas estavam muito dominadas pelas ideias reaccionárias dos padres e dos caciques ex-fascistas. Foi para a região e, numa tasca de aldeia, pôs-se à conversa com trabalhadores do campo que ali estavam a beber e a conviver. Foi conversando sobre a vida “em geral” e lentamente, à medida que iam estando de acordo sobre as ideias simples (democracia, liberdade, justiça social para acabar com diferenças entre pobres e ricos), ele ia explicando “os nomes dos bois”: isto é o socialismo, aquilo é o comunismo, aqueloutro é a revolução, etc. No fim da conversa, um velhote virou-se para ele, e disse: “Essas coisas que nos explica são importantes; eu concordo com elas, concordo que a nossa sociedade devia ser assim… Mas há uma coisa que não entendo… Porque é que, a coisas tão bonitas, você dá nomes tão feios?” Para ele, os “nomes feios” eram as palavras “socialismo”, “comunismo”, “revolução”. O que os separava não eram as ideias, as convicções, as aspirações para a sociedade, mas sim os nomes dados a essas coisas.
Assim, se quisermos resgatar alguma
possibilidade de continuar existindo após a tormenta, nossos esforços
não devem estar voltados para espaços de intervenção unitária com
representações políticas disto que ao olhos da classe trabalhadora é a
expressão moribunda de suas expectativas frustradas, senão para o
descolamento completo e urgente em relação ao petismo. Estabelecer
firmemente estas diferenças parece ser um requisito mais decisivo para
nossa sobrevivência do que um ajuntamento abstrato em torno da
“legalidade democrática”. E não é só porque tenhamos que nos esquivar do
estigma de “petralhas”, mas porque é imperioso dissipar qualquer chance
de associação entre o que concebemos como alternativa ao capitalismo e a
opção estratégica feita pelo PT ao longo de sua trajetória, do qual os
métodos tão fortemente rechaçados do ponto de vista ético são apenas
consequências.
Quanto aos conservadorismos que grassam nos protestos, locais de
trabalho e nas ruas, que é verdadeiro e não pode ser subestimado, não é
possível vislumbrar de que maneira o posicionamento anti-impeachment
– que, objetivamente, sempre se dará ao lado das forças governistas –
pode ajudar a atacá-los eficazmente. Para além de os últimos governos
serem parte integrante do que se quer combater, não se pode perder de
vista que os fenômenos que nos assombram constituem-se por um sem-número
de práticas difusas que habitam aspectos mais sutis de nosso cotidiano.
Incluem-se aqui degenerações articuladas por diversos setores da
esquerda que reduziram o debate político a moralizações, irracionalismos
e maniqueísmos. Como desenvolvido em outro artigo recente do Passa Palavra:
“Os linchamentos e o justiçamento – que do lado de cá é entendido como
“ação direta” – tornaram-se a norma geral em ambos os lados do
tabuleiro.”
Numa abordagem mais ampla, as origens do
reacionarismo a que hoje assistimos estão associadas a fatores outros
que antecedem e vão além do revés que sofre hoje o governo. O monstrengo
é, em certa medida, tributário de um encontro inesperado que, naquilo
que nos toca, reúne a longeva inatividade da esquerda anticapitalista para a promoção de redes de solidariedade paralelas nos períodos de aperto econômico,
de uma parte, e o subproduto das políticas sociais petistas, por outra,
que promoveram deslocamentos significativos na estrutura social às
expensas de um profundo processo de individualização, endividamento e
esterilização dos velhos instrumentos de ação coletiva.
Nesse sentido, o boom
conservador talvez deva ser percebido como vertente à direita do estouro
da boiada, tal como as Jornadas de Junho o foram pela esquerda: o
efeito rebote produzido pelo excesso de dispositivos conciliatórios que
por mais de dez anos conservaram os conflitos sociais em cerimoniais de
gabinete – pactos e concessões de parte a parte que agora alcançam o seu
limite.
Obviamente, as manobras políticas da
direita institucionalizada neste momento tiram todo proveito que podem
do ativismo fascista que vem das ruas, mas não estão a seu mero serviço;
da mesma forma que este também não lhes veem com bons olhos.
Como é de praxe, tão logo uma eventual coalização de centro-direita
assuma as rédeas do Estado, seus discursos e práticas deverão se adequar
estritamente às principais diretrizes do capitalismo transnacional e
distanciarem-se rapidamente dos irracionalismos que instabilizam os
planejamentos empresariais e são indesejáveis aos imperativos econômicos
de uma forma geral. Estes problemas, no entanto, desligados das
disputas palacianas, e qualquer que seja o desfecho do melodrama,
retornarão a nossos colos, e é com esta perspectiva que devemos agir.
Por estas razões, esta batalha dá sinais
de que deve ser encarada a longo prazo, a cada novo ensaio de luta,
devendo acontecer no corpo a corpo, através do debate de ideias que se
travam nos ambientes de trabalho, nas escolas, universidades, locais de
moradia e lazer (e até eventualmente em embates físicos contra grupos
conservadores mais desabusados). Só mesmo num sentido muito residual e
imediato é que a tomada de partido numa contenda que envolve frações de
interesse entre capitalistas privados e estatais poderia contribuir.
Querer que as experiências autônomas, libertárias e afins atuem por
dentro da luta contra o impeachment com a expectativa de
transformá-la numa luta anticapitalista mais ampla, além de todas as
objeções levantadas acima, incide numa grande ingenuidade porque
superestima a capacidade de estes movimentos terem alguma margem de voz e
interferência no interior da máquina lulo-petista; em que pese as boas
intenções, restará o saldo político objetivo de sempre ser mero apoio ao
mandato.[1]
No momento que o aperto econômico
novamente se avizinha, a pergunta que deve nortear nossas ações é onde
devemos depositar as parcas energias: numa luta fictícia, em que acordos
desfavoráveis à classe trabalhadora são de ambas as partes preparados a
despeito dela, ou concentrá-las em pautas concretas, no terreno
concreto onde o conservadorismo se difunde, incluindo aí o próprio meio
popular? A experiência dá pistas de que os eventuais impactos que a
derrota do mandato petista representariam à institucionalidade
democrática, seja esta entendida ou não como golpe, não serão mais
danosos do que aqueles que já se fazem sentir sob a vigência do atual
governo.
Sem qualquer tipo de ilusão, prestaria
muito melhor serviço à democracia se a esquerda anticapitalista se
desligasse por completo desta paródica teatralização e se voltasse para a
reconstrução de um caminho novo. É de se imaginar o campo de
possibilidades que se abriria se metade dessa energia social mobilizada
no dia 18 de março fosse direcionada para a derrubada da Lei
Antiterrorista ou contra medidas de ataque aos direitos trabalhistas,
por exemplo. Ela teria, no entanto, que se contrapôr aos interesses
governistas, talvez até enfraquecê-los, mas se colocaria como uma luta
“democrática” muito mais concreta e urgente que a adesão aos chamados
oportunistas que emanam do Planalto e do Instituto Lula. Se estivesse em
jogo algum bom programa economicamente reformista e politicamente
democrático, ainda vá lá! Mas parece que tanto mais desesperada e
distante os termos desta luta se colocam em relação a este compromisso,
mais a militância de esquerda se agarra à defesa de um mero mandato,
fortalecendo o mito da personalidade redentora, que tanto obstruiu
historicamente os esforços de autonomia e emancipação.
Esta leitura até poderia soar como uma
notícia reconfortante, o álibi para uma “lavada de mãos” ou a simples
confirmação dramática de todas as denúncias que nestes últimos anos
temos feito. Mas não é. Pois se entendemos que o ciclo petista de
concessões se esgotou, este deixa de ser, também para nós, a figura a
quem se atribui todos os entraves e o refreamento da luta de classes.
Frente ao defunto, a responsabilidade volta com mais peso ainda para
nós.
Nota
[1] Lembremos do ato do
Dia das Mulheres em São Paulo recentemente, quando, em plena crise
política e diante da necessidade de angariar apoios, uma militante
feminista foi agredida ao descer do carro de som simplesmente por ter
feito uma fala crítica ao governo. Que espaço teríamos, nos atos
governistas, para colocar outras pautas que não fossem as de defesa do
próprio governo? A despeito do sem-número de baboseiras e exemplos de
oportunismo a extrair deste episódio, ele serve para medir até que ponto
os próprios setores governistas acreditam estar ou não diante de um
golpe. Tivessem mesmo essa convicção, seria prudente começar a admitir
críticas e autocríticas à sua trajetória, e não simplesmente tachar de
“golpista” toda e qualquer posição contrária à sua, catapultando estas
vozes críticas para fora do jogo político.
Fonte: PASSA PALAVRA
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