PICICA: "Em seu longa-metragem de estreia, Aly Muritiba constrói, com vasto leque de recursos narrativos, história de amor obsessivo e suspense, que pode tornar-se um dos grandes filmes brasileiros do ano"
Cinema vivo em Para minha amada morta
– on 02/04/2016
Em seu longa-metragem de estreia, Aly Muritiba constrói, com vasto leque de recursos narrativos, história de amor obsessivo e suspense, que pode tornar-se um dos grandes filmes brasileiros do ano
Por José Geraldo Couto, no blog do IMS
Deixemos de lado as circunstâncias pitorescas que envolvem o diretor
baiano Aly Muritiba, que foi cobrador de ônibus, bombeiro e carcereiro
enquanto estudava história em São Paulo e depois cinema em Curitiba. O
que importa aqui é seu primeiro longa-metragem, Para minha amada morta, que acaba de chegar aos cinemas depois de ser premiado nos festivais de Montreal e Brasília, entre outros.
É um dos grandes filmes brasileiros do ano e a prova viva, muito viva, de que é possível subverter os códigos e fórmulas dos gêneros estabelecidos e construir uma obra original.
Da ternura à vingança
No centro do drama está um homem obcecado, o fotógrafo da polícia Fernando (Fernando Alves Pinto, em sua melhor atuação), que há pouco tempo, não sabemos quanto, perdeu sua jovem mulher, uma advogada criminalista. Na primeira quarta parte do filme sua monomania se resume a cultuar, de modo meio necrófilo, a amada morta, alisando suas peças de roupa, acariciando seus pertences, revendo seus vídeos. Parece um sonâmbulo, cuja única âncora no mundo dos vivos é seu filho pequeno, com quem desenvolve uma relação lacônica de afeto e cumplicidade poucas vezes vista no cinema recente.
Um dos vídeos domésticos encontrados no escritório da mulher lança Fernando de repente num pesadelo de ciúme que o faz rever retrospectivamente, numa vertigem, sua relação amorosa. Sua obsessão muda então de sinal, passa da ternura à violência, da paralisia à ruminação surda da vingança.
Pouco mais pode ser dito do enredo sem risco de estragar as surpresas e reviravoltas que virão. Basta saber que Fernando se infiltrará (este é o verbo) na vida da família de um ex-presidiário convertido em evangélico devoto, significativamente chamado Salvador (Lourinelson Vladmir). Há um toque de Teorema, o filme de Pasolini, no efeito causado por essa intrusão, mas desenvolver aqui a analogia seria entregar demais a trama.
O que importa é a maneira segura, engenhosa e original com que Muritiba nos conduz pelos meandros da mente obsessiva do protagonista em seu embate com o passado e o presente. Sem lançar mão dos truques e muletas convencionais dos filmes de suspense (música enfática, montagem frenética, closes didáticos), ele constrói em planos longos e fluidos uma atmosfera de crescente tensão.
Nunca sabemos a atitude que o protagonista tomará em seguida. O rosto ao mesmo tempo tenso e insondável do ator sugere todas as possibilidades, e somos levados (até pela experiência de ter visto tantos filmes policiais, de ação e suspense) a antever as inúmeras formas que a vingança pode assumir. Aquilo que não acontece parece acrescentar tensão à tensão, de tal maneira que o desfecho é, ao mesmo tempo, surpreendente e o único possível sem desmentir toda a construção.
Aqui é inevitável um pequeno spoiler, ainda que indireto. Quem quiser pode pular este parágrafo. Há no cinema narrativo clássico uma convenção não escrita segundo a qual quando se mostra uma arma numa cena ela decerto será usada em algum momento posterior. Pois bem: em Minha amada morta, pistolas, facões, pás e martelos são armas potencialmente mortíferas que se mantêm como tais, sem explosão ou catarse.
Dança dos antagonistas
Dois planos-sequência admiráveis atestam a segurança e o vigor da mise-en-scène de Aly Muritiba, bem como a competência de seu diretor de fotografia Paulo Baião.
Num deles, à noite, os dois antagonistas, Fernando e Salvador, conversam no quintal da casa do segundo enquanto realizam pequenos trabalhos. Fernando, com uma pá, joga pedra ou areia (não vemos a imagem toda) de um monte a outro, enquanto Salvador se movimenta ora às suas costas, ora à sua frente. O foco também se desloca de um a outro enquanto se desenvolve a conversa, feita de reminiscências, alusões, meias-palavras. O ritmo das pazadas, o arfar de Fernando, a crescente contração do rosto de Salvador diante dos rumos da conversa, tudo é orquestrado magistralmente numa única tomada com a câmera praticamente fixa.
O outro plano-sequência é ainda mais extraordinário em sua complexidade. Ele começa quando os mesmos dois personagens estão no telhado de uma edícula, retirando telhas e despregando tábuas. Ouve-se o ruído de um acidente na rua e a câmera vai investigar do que se trata. O cachorro da família foi atropelado; é levado para dentro, outras personagens entram em cena, seguem-se uma conversa crispada e um novo confronto psicológico entre os antagonistas. Ao contrário da cena descrita no parágrafo anterior, aqui a câmera descreve um movimento contínuo e ousado e muitos elementos são coreografados de modo preciso.
O que se vê em Para minha amada morta é, portanto, uma rara amplitude de recursos expressivos, um virtuosismo nada exibicionista, totalmente voltado para a construção narrativa e dramática. Cinema puro, da mais alta qualidade e originalidade. Aly Muritiba, como já sugeriam seus curtas, é um nome que veio para ficar.
É um dos grandes filmes brasileiros do ano e a prova viva, muito viva, de que é possível subverter os códigos e fórmulas dos gêneros estabelecidos e construir uma obra original.
Da ternura à vingança
No centro do drama está um homem obcecado, o fotógrafo da polícia Fernando (Fernando Alves Pinto, em sua melhor atuação), que há pouco tempo, não sabemos quanto, perdeu sua jovem mulher, uma advogada criminalista. Na primeira quarta parte do filme sua monomania se resume a cultuar, de modo meio necrófilo, a amada morta, alisando suas peças de roupa, acariciando seus pertences, revendo seus vídeos. Parece um sonâmbulo, cuja única âncora no mundo dos vivos é seu filho pequeno, com quem desenvolve uma relação lacônica de afeto e cumplicidade poucas vezes vista no cinema recente.
Um dos vídeos domésticos encontrados no escritório da mulher lança Fernando de repente num pesadelo de ciúme que o faz rever retrospectivamente, numa vertigem, sua relação amorosa. Sua obsessão muda então de sinal, passa da ternura à violência, da paralisia à ruminação surda da vingança.
Pouco mais pode ser dito do enredo sem risco de estragar as surpresas e reviravoltas que virão. Basta saber que Fernando se infiltrará (este é o verbo) na vida da família de um ex-presidiário convertido em evangélico devoto, significativamente chamado Salvador (Lourinelson Vladmir). Há um toque de Teorema, o filme de Pasolini, no efeito causado por essa intrusão, mas desenvolver aqui a analogia seria entregar demais a trama.
O que importa é a maneira segura, engenhosa e original com que Muritiba nos conduz pelos meandros da mente obsessiva do protagonista em seu embate com o passado e o presente. Sem lançar mão dos truques e muletas convencionais dos filmes de suspense (música enfática, montagem frenética, closes didáticos), ele constrói em planos longos e fluidos uma atmosfera de crescente tensão.
Nunca sabemos a atitude que o protagonista tomará em seguida. O rosto ao mesmo tempo tenso e insondável do ator sugere todas as possibilidades, e somos levados (até pela experiência de ter visto tantos filmes policiais, de ação e suspense) a antever as inúmeras formas que a vingança pode assumir. Aquilo que não acontece parece acrescentar tensão à tensão, de tal maneira que o desfecho é, ao mesmo tempo, surpreendente e o único possível sem desmentir toda a construção.
Aqui é inevitável um pequeno spoiler, ainda que indireto. Quem quiser pode pular este parágrafo. Há no cinema narrativo clássico uma convenção não escrita segundo a qual quando se mostra uma arma numa cena ela decerto será usada em algum momento posterior. Pois bem: em Minha amada morta, pistolas, facões, pás e martelos são armas potencialmente mortíferas que se mantêm como tais, sem explosão ou catarse.
Dança dos antagonistas
Dois planos-sequência admiráveis atestam a segurança e o vigor da mise-en-scène de Aly Muritiba, bem como a competência de seu diretor de fotografia Paulo Baião.
Num deles, à noite, os dois antagonistas, Fernando e Salvador, conversam no quintal da casa do segundo enquanto realizam pequenos trabalhos. Fernando, com uma pá, joga pedra ou areia (não vemos a imagem toda) de um monte a outro, enquanto Salvador se movimenta ora às suas costas, ora à sua frente. O foco também se desloca de um a outro enquanto se desenvolve a conversa, feita de reminiscências, alusões, meias-palavras. O ritmo das pazadas, o arfar de Fernando, a crescente contração do rosto de Salvador diante dos rumos da conversa, tudo é orquestrado magistralmente numa única tomada com a câmera praticamente fixa.
O outro plano-sequência é ainda mais extraordinário em sua complexidade. Ele começa quando os mesmos dois personagens estão no telhado de uma edícula, retirando telhas e despregando tábuas. Ouve-se o ruído de um acidente na rua e a câmera vai investigar do que se trata. O cachorro da família foi atropelado; é levado para dentro, outras personagens entram em cena, seguem-se uma conversa crispada e um novo confronto psicológico entre os antagonistas. Ao contrário da cena descrita no parágrafo anterior, aqui a câmera descreve um movimento contínuo e ousado e muitos elementos são coreografados de modo preciso.
O que se vê em Para minha amada morta é, portanto, uma rara amplitude de recursos expressivos, um virtuosismo nada exibicionista, totalmente voltado para a construção narrativa e dramática. Cinema puro, da mais alta qualidade e originalidade. Aly Muritiba, como já sugeriam seus curtas, é um nome que veio para ficar.
José Geraldo Couto
*José Gerado Couto é crítico de cinema e tradutor. Publica suas criticas no blog do IMS. Para ler as edições anteriores da coluna, clique aqui.
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
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