PICICA: "A reação foi imediata, mas insuficiente. Constrangidos, apresentadores dos telejornais da TV Globo
apressaram-se a ler um curto texto para justificar a atuação da
emissora na cobertura da crise nesta semana. Ao transmitir ao vivo
manifestações públicas, foi impossível impedir o coro de “o povo não é
bobo, abaixo a Rede Globo!”. Por isso, das bancadas se disse que
“imprensa não produz grampos, nem conduz investigações da justiça e da
polícia”. É verdade, mas há mais coisas a se dizer sobre isso."
CRISE POLíTICA > Processo do impeachment
Grampos e as responsabilidades da mídia
Publicado originalmente no site objETHOS.
A reação foi imediata, mas insuficiente. Constrangidos, apresentadores dos telejornais da TV Globo
apressaram-se a ler um curto texto para justificar a atuação da
emissora na cobertura da crise nesta semana. Ao transmitir ao vivo
manifestações públicas, foi impossível impedir o coro de “o povo não é
bobo, abaixo a Rede Globo!”. Por isso, das bancadas se disse que
“imprensa não produz grampos, nem conduz investigações da justiça e da
polícia”. É verdade, mas há mais coisas a se dizer sobre isso.
Ao que se sabe, a mídia brasileira não faz como o extinto The News of The World,
jornal britânico que grampeava políticos, celebridades e pessoas comuns
para obter informações. A descoberta da ilegalidade gerou um escândalo
inédito que resultou na prisão de jornalistas, no fechamento do jornal,
na reação dos poderes e na discussão de uma nova regulamentação para os
meios impressos. No caso brasileiro, os grampos divulgados são operados
pela Polícia Federal e determinados pelo juiz Sergio Moro. Isso nos faz
crer que as operações se deram todas dentro da legalidade, afinal seus
executores têm prerrogativas jurídicas para fazê-lo. Mais ou menos. As
circunstâncias determinam o alcance e os limites disso.
O fatídico grampo
Interceptações
telefônicas são recursos bastante usados em investigações. A
Constituição Federal garante liberdades individuais, inclusive os
sigilos telefônico, postal, fiscal e bancário, que podem ser quebrados
por ordens judiciais. É o que temos assistido. Um juiz determina que
pessoas tenham seus telefones monitorados e suas conversas gravadas. Mas
o caso do diálogo entre Dilma Rousseff e Lula é polêmico não apenas
pelo teor, mas pela forma como foi obtido e divulgado.
A
cronologia dos episódios mostra que a ligação telefônica foi gravada às
13h32min. Mais de duas horas depois que o próprio juiz havia
determinado a suspensão das interceptações. O despacho de Moro com essa
ordem é das 11h13min, e às 11h44min, a Polícia Federal foi notificada da
decisão. Às 12h20min, a Justiça Federal do Paraná oficiou as companhias
telefônicas comunicando o fim do grampo. A PF mandou e-mail à operadora
Claro às 12h46min00, mais de uma hora depois de saber da decisão de
Moro! Mesmo ciente de que não poderia haver novas interceptações, a PF
informou ao juiz da conversa às 15h37min35. Às 16h21min57, Moro pôs fim
ao sigilo da investigação, permitindo então sua ampla divulgação.
A
cadeia dos acontecimentos mostra uma série de problemas que podem
macular a “prova” e, em caso extremo, resultar na sua nulidade. Porque
esses problemas esbarram na legalidade. Se a gravação foi feita depois
do despacho de Moro, ela não está coberta por ordem judicial, não tendo
validade jurídica. Foi ilegal. Pela praxe, o que foi encontrado – com
teor comprometedor ou não – deveria ser descartado. Argumentam alguns
juristas que, por se tratar de fala da presidente, deveria ser remetido
ao Supremo Tribunal Federal. Em ambos os casos, o juiz Moro não teria competência para tratar desse detalhe.
Só o STF pode investigar presidentes da República. E Moro sequer
poderia abrir o sigilo da escuta ou vazar seus conteúdos. Assim como é
questionável que tenha grampeado 25 advogados do escritório contratado
por Lula, o que gerou uma gritaria no meio jurídico por violar a
privacidade de relações entre advogados e clientes. Mas a publicização
do controverso diálogo interessa particularmente quando se aborda a
responsabilidade da mídia no processo.
Se a Globo “não produz grampos nem conduz investigação”, a emissora decide se e como
divulgar conteúdos de interceptações e etapas do processo. Moro
determinou o fim do sigilo da gravação e os telejornais da emissora
decidiram divulgar o seu conteúdo, mas editaram a gravação, descartando importante trecho anterior ao diálogo entre Dilma e Lula. Enquanto o áudio completo, publicado pelo UOL dura 1min34, o do Jornal Nacional e dos principais telejornais da Globo e GloboNews
mostra menos de 30 segundos. Alguém da redação pode argumentar que se
tratou de uma edição necessária, para destacar o que realmente
interessa: a suposta fala comprometedora. Entretanto, o descarte do
trecho inicial permite que se ignore um detalhe fundamental: quem foi
grampeada foi Dilma e não Lula!
Ao
ouvir o trecho integral, percebe-se que a gravação captou o sinal e a
fala de onde se origina a chamada, no caso a secretaria da Presidência
da República. E o que parece um detalhe, converte-se em algo bem maior.
Se a presidente não é investigada pela Operação Lava-Jato e se nenhum
presidente da República pode ser investigado a não ser pelo STF, por que
Dilma foi grampeada?
A edição do áudio disseminada pela Globo
e outras emissoras levou ao público uma conversa estranha, que até pode
ser considerada suspeita dentro do contexto das investigações. Mas ao
omitir que a monitorada era a presidente e não o ex-presidente estaria a
mídia cumprindo com seu dever?
Mídia golpista
Não é segredo pra ninguém que a TV Globo
é frequentemente cobrada por seu histórico de adesão ao regime militar.
Há poucos anos, a empresa não só tornou públicos suas diretrizes
editoriais como também reconheceu ter sido um erro o apoio ao Golpe de
1964 e os governos dele derivados. A emissora também admitiu seu
equívoco ao editar o famoso debate presidencial entre Lula e Collor, de
1989, em que apresentou ao público uma versão resumida bem favorável ao
candidato Caçador de Marajás.
Esse
histórico pesa como uma praga que não desgruda da empresa. É a ele que
muitos recorrem quando criticam a cobertura jornalística da emissora. A
justificativa dos telejornais é frágil. A edição do noticiário é feita
por jornalistas, atendendo a critérios que deveriam ser meramente
jornalísticos, mas não são, sabemos. Há subjetivismos e outros
contaminantes que podem interferir de maneira determinante nas decisões.
A cúpula editorial da emissora poderia ter resolvido não trazer à tona a
gravação ilegal. Poderia argumentar que ela foi obtida em momento não
amparado por ordem judicial. Possivelmente, seria cobrada pelos que
querem ver os cadáveres políticos de Dilma e Lula, seria tachada de
manipuladora… Era um risco ser acusada de estar ocultando a história, de
estar manipulando a informação. Optou-se por divulgar, e toda ação tem
suas consequências. Então, qualquer que fosse a decisão dos editores,
haveria cobranças. A responsabilidade de divulgar é de quem torna
público um conteúdo. No caso em questão, o juiz Moro e a mídia foram
agentes e não afetados.
O
direito é claro: ser responsável é responder por algo. Então, o juiz
federal sabia (ou deveria saber) o que estava fazendo quando não apenas
decidiu levar em consideração a gravação extemporânea como decidiu
derrubar o sigilo que pairava sobre o áudio. Os jornalistas sabiam (ou
deveriam saber) o que estavam fazendo quando resolveram espalhar a
gravação, mesmo observando que ela era posterior ao despacho de Moro. E
alguns decidiram exibi-la incompleta. A partir do momento em que a
redação decide colocar no ar, jogar nas ruas, um conteúdo, a
responsabilidade não é apenas de quem produziu a informação, mas também
de quem a difundiu.
Foi o que vimos há pouco nos Estados Unidos. O site Gawker acaba de ser condenado a pagar US$ 115 milhões
ao lutador profissional Hulk Hogan por divulgar um vídeo íntimo
não-autorizado. A gravação mostra Hulk fazendo sexo com a mulher do
melhor amigo, e o vídeo não foi feito pelo site, mas tão somente tornado
público por ele. A justiça norte-americana considerou que o site tem
responsabilidade sobre o conteúdo que publica. Isto é: não publicar é
uma decisão possível. O curioso é que a decisão do júri dos EUA se deu
apenas três dias após a divulgação do fatídico grampo de Dilma.
Nesta
semana, diversos meios de comunicação divulgaram escutas entre
familiares de Lula e numa delas sua esposa, Marisa Letícia, irritada com
manifestações, pede para que esses guardem suas panelas em outro lugar.
As conversas pessoais, privadas e sem qualquer importância para as
investigações em curso, foram tornadas públicas pela Gazeta do Povo, Veja e pelo site O Antagonista, entre outros, e o conteúdo foi distribuído pela Agência O Globo. Deve-se publicar tudo o que chega às redações? Tudo é relevante para a audiência?
No cravo e na ferradura
Não
é consensual a interpretação da conversa entre Lula e Dilma. Há quem
veja uma trama para obstruir a justiça e há quem não considere nada
comprometedor. Se houvesse elementos mais nítidos, possivelmente não
renderia tanta discussão em meios políticos, jornalísticos e jurídicos. O
teor é polêmico, a sua gravação e divulgação não. Essas foram ilegais,
pois não seguiram os ritos da lei.
Passado o frenesi da divulgação da polêmica conversa, alguns setores da media mainstream começaram a se preocupar com possíveis excessos de Moro. Foi assim com a Folha de S.Paulo, que publicou editorial na sexta-feira, 18 de março, alertando para o que chamou de “protagonismo perigoso”
de certos atores do Judiciário. Observadores distintos e igualmente
respeitados como Jânio de Freitas e Elio Gaspari, no mesmo jornal,
chamaram a atenção para a necessidade do fortalecimento das instituições
e os perigos de se cair no canto das sereias da fama e da adoração
pública. Na revista Época, Leandro Loyola lembrou que o juiz passou de herói a incendiário em poucos dias. O alerta foi soado para além das fronteiras nacionais, como se pode ver em artigo de Eliane Brum para The Guardian, e na ampla reportagem de Glenn Greenwald, Andrew Fishman e David Miranda para The Intercept. No português Público,
a professora Sylvia Moretzsohn expandiu a lente para além do foco em
Moro, captando também movimentos do ministro do STF Gilmar Mendes.
Os
gritos dos manifestantes contrários ao impeachment e as queixas de
vozes influentes chamam a atenção para a parcialidade da cobertura
jornalística e para a falta de isenção da justiça, duas feridas com que
regimes democráticos não podem conviver. É evidente que o jornalismo
precisa fiscalizar os poderes. Mas insisto no plural, o que inclui o
Judiciário, sempre tão temido (ou poupado). É evidente que o Judiciário
tem que fazer seu papel e punir a quem tiver cometido crimes. Mas é
admissível um processo que seja embasado em provas irregulares ou
ilícitas? Ou que esse mesmo processo seja conduzido por quem se mostra
parcial?
A
soma de cobertura parcial, de pré-julgamento nas redações, de excessos
do juiz Moro, de declarações que demonstram parcialidade (como do juiz
Catta Preta e de Gilmar Mendes) e o acirramento da polarização política
criam um ambiente inflamável. Os contrários ao impeachment bradam que há
um golpe jurídico-midiático em curso. Os favoráveis taxam seus
adversários de cúmplices da corrupção. É um choque de narrativas e
muitos sentidos estão em disputa. O jornalismo joga um papel muito
importante nesse embate.
Dias contados?
Além dos gritos contrários, diversos manifestantes chegaram a empunhar cartazes pedindo o fim da TV Globo.
Militantes avaliaram que Dilma Rousseff estaria pagando um alto preço
político por não democratizar a mídia. O jogo é maior e ele tem regras. A
emissora do Rio e todas as demais que dependem de outorgas públicas
devem satisfações à sociedade justamente por contarem com essa condição:
operam porque detêm concessões públicas.
A
Constituição é clara neste sentido: seus conteúdos devem ser
preferencialmente informativos, educativos e culturais, e essas
emissoras devem contrapartidas sociais aos brasileiros. As concessões
para rádios duram dez anos e as de TV, quinze. Podem ser renovadas e até
mesmo cassadas, mas o rito depende de aprovação do Parlamento. Cassar a
concessão da TV Globo sem passar por isso é também um golpe, não se pode esquecer.
Alguém
pode lembrar que monopólios e oligopólios na radiodifusão são proibidos
pela Constituição e que o Grupo Globo passa por cima dessa regra,
usando diversas estratégias. É verdade, e ele não é o único, o que faz
com que sete ou oito famílias dominem o setor neste país continental.
Mas não se pode admitir uma ilegalidade para combater outra! Trocando em
miúdos: se há monopólios e oligopólios na radiodifusão e eles são
ilegais, devem ser usadas as leis e a política para corrigir os vícios.
Notem que ainda carecemos de uma lei que determine como se deve quebrar a
concentração de mídia no país e tal ausência cria brechas
perigosíssimas. Quem pode formular e aprovar essas leis são deputados e
senadores, muitos deles diretores e até proprietários de meios de
comunicação, condição igualmente proibida pela Constituição! O imbróglio
é tamanho que mal sabemos por onde começar…
Apenas cassar a concessão da Globo
não resolve. Se os contrários ao impeachment clamam por democracia e
respeito à lei, eles devem também respeitar as regras vigentes. Podem se
organizar em movimentos pela democratização da mídia, podem pressionar
seus representantes para fazer reformas nas leis, podem cobrar os
governos, podem acionar a justiça com denúncias de parlamentares que
descumprem a Constituição, podem exigir que a programação das emissoras
atendam aos preceitos constitucionais…
Lula
e Dilma tiveram mais de uma década para liderar um debate nacional
sobre a democratização dos meios de comunicação. Ignoraram os movimentos
sociais, e a estrutura organizacional da mídia no país permanece a
mesma de antes da redemocratização.
O que fica, então?
Como
estamos no meio da tempestade, medir seus estragos e antever seu fim
são tarefas para os profetas. Pessoalmente, não sei como sairemos disso.
Mas como já disse, o jornalismo tem um papel importantíssimo no jogo da
crise: pode apontar caminhos para as investigações, deve morder os
calcanhares dos poderosos, desviar de vaidosos e pretensos heróis, e
oferecer um conjunto de elementos que permitam o julgamento e o
discernimento das audiências.
O nome do jogo é credibilidade.
Jornalistas
têm o dever de apurar se Lula, Dilma e tantos outros cometeram crimes.
Têm o dever de investigar se os esquemas de corrupção se limitam aos
governos petistas. Precisam manter uma faísca de dúvida diante de
dossiês que chegam às redações, de vazamentos seletivos, de delações
premiadas, de depoimentos das mais diferentes partes. Jornalistas não
julgam. E mesmo quem deve julgar, deve fazê-lo de forma serena e
equilibrada, sem paixões ou cores partidárias.
A
concorrência jornalística, a busca pelo furo, o tiroteio de versões, as
contrainformações, tudo isso desnorteia repórteres e editores. Mas 2016
não é 1964 nem 1992, embora associações possam ser feitas com a vinda
dos militares e o impeachment de Collor. Só teremos uma compreensão
melhor do que está acontecendo se houver um jornalismo que não antecipe
cenários provisórios. É preciso que repórteres investiguem com rigor e
que as notícias sejam divulgadas com equilíbrio, senso e serenidade. A
pressa, o descaso, a incompletude minam a credibilidade dos relatos,
precarizam eticamente a narrativa.
No afã de produzir manchetes e oferecer cadáveres políticos, o Correio Braziliense
acusou em 1991 o então ministro da Saúde Alceni Guerra de comprar 23
mil bicicletas a preços superfaturados. Descobriu-se depois que a
operação foi regular, mas já era tarde. Alceni ficou com fama de
corrupto e perdeu o cargo. Dois anos depois, Veja envolveu o
presidente da Câmara Federal, Ibsen Pinheiro, no chamado escândalo dos
Anões do Orçamento. Na capa, a revista perguntava: “Até tu, Ibsen?”.
Erros de apuração da reportagem ajudaram a produzir um massacre político
e midiático que resultou na cassação do político em 1994. Outros
exemplos poderiam ser citados aqui…
O
jornalismo precisa fugir das compreensões de senso comum e se desviar
das dicotomias fáceis. Tratar alguns como vilões e outros como heróis
não é apenas irreal, é desonesto. Esses personagens só existem na
ficção. Fazer acreditar que o crime e a corrupção começaram neste ou
naquele governo é amnésia histórica e parcialidade de contextos. Confiar
cegamente em investigadores, delegados, juízes, delatores, autoridades
políticas e seus assessores é de uma atitude primária em termos de
técnicas jornalísticas. Acreditar que quanto pior o cenário, melhor o
noticiário político é investir no caos. E ele vai corroer tudo: primeiro
os governantes de plantão, depois seus sucessores e na sequência, as
instituições, a nossa esperança no país, o tecido social e a democracia.
Quando não sobrar nada disso, como irá sobreviver o jornalismo? E a
quem iremos responsabilizar?
***
Rogério Christofoletti é professor de jornalismo na UFSC e pesquisador do objETHOS
Fonte: OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA
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