julho 06, 2014

"Filma eu!", por Sírio Possenti

PICICA: "Como se tornou notório, um jornalista de gabarito entrevistou sósia de Felipão e publicou a matéria. Depois que tudo ficou esclarecido, ele pediu desculpas etc. O episódio só me interessa em razão de uma afirmação do jornalista: “Realmente foi um erro tolo. Agi de boa-fé. Percebi o erro e corrigimos, deu para corrigir. Não prejudiquei ninguém, a não ser eu mesmo.”
O leitor terá percebido, especialmente se estiver no grupo que avalia qualquer violação de regras gramaticais como sintoma de degradação da língua, que o jornalista não disse “a não ser a mim mesmo”, mas “a não ser eu mesmo”. Ou seja, empregou “eu” como objeto direto de “prejudicar” (talvez não empregasse essa forma se “eu” estivesse junto a “prejudicar”; a distância talvez tenha favorecido a construção).
Pelas ditas regras gramaticais, ‘eu’ só se emprega em posição de sujeito. Em qualquer outra função, será ‘me’ ou ‘mim’ (‘a mim’, ‘para mim’, ‘de mim’, ‘em mim’ etc.).
Pelo menos dois fenômenos ocorrem com os chamados pronomes pessoais. Um é que eles preservam ‘casos’, ou seja, formas diferentes conforme a função (eu: me – mim; te: ti (-tigo); ele: o – lhe etc.).
O outro fenômeno é que a flexão de caso está em variação com sua queda. Ou seja, há construções em que tal flexão poderia ocorrer, mas não ocorre. A declaração do jornalista é um exemplo. Curioso é que passe despercebido. Pode-se apostar que a maioria dos rígidos defensores da uniformidade gramatical não considerou estranha a variante."

LÍNGUA & LINGUAGEM

Filma eu!

Por Sírio Possenti em 01/07/2014 na edição 805

Reproduzido do Ciência Hoje On-Line, 27/6/2014


Como se tornou notório, um jornalista de gabarito entrevistou sósia de Felipão e publicou a matéria. Depois que tudo ficou esclarecido, ele pediu desculpas etc. O episódio só me interessa em razão de uma afirmação do jornalista: “Realmente foi um erro tolo. Agi de boa-fé. Percebi o erro e corrigimos, deu para corrigir. Não prejudiquei ninguém, a não ser eu mesmo.”

O leitor terá percebido, especialmente se estiver no grupo que avalia qualquer violação de regras gramaticais como sintoma de degradação da língua, que o jornalista não disse “a não ser a mim mesmo”, mas “a não ser eu mesmo”. Ou seja, empregou “eu” como objeto direto de “prejudicar” (talvez não empregasse essa forma se “eu” estivesse junto a “prejudicar”; a distância talvez tenha favorecido a construção).

Pelas ditas regras gramaticais, ‘eu’ só se emprega em posição de sujeito. Em qualquer outra função, será ‘me’ ou ‘mim’ (‘a mim’, ‘para mim’, ‘de mim’, ‘em mim’ etc.).

Pelo menos dois fenômenos ocorrem com os chamados pronomes pessoais. Um é que eles preservam ‘casos’, ou seja, formas diferentes conforme a função (eu: me – mim; te: ti (-tigo); ele: o – lhe etc.).

O outro fenômeno é que a flexão de caso está em variação com sua queda. Ou seja, há construções em que tal flexão poderia ocorrer, mas não ocorre. A declaração do jornalista é um exemplo. Curioso é que passe despercebido. Pode-se apostar que a maioria dos rígidos defensores da uniformidade gramatical não considerou estranha a variante.

Análise de Mattoso Câmara

Dou notícia de um estudo já antigo que trata de um aspecto dessa questão. “Ele como acusativo no português do Brasil” é um breve ensaio de Mattoso Câmara (1904-1970) publicado em Dispersos, coletânea organizada por Carlos Eduardo Falcão Uchoa (revista e ampliada, foi republicada pela Editorial Lucerna em 2004).

O texto é belíssimo, apesar de não dizer toda a verdade. Suas teses principais são: 1) a ocorrência de “ele” em posição de objeto direto é uma das principais características do português do Brasil; 2) o ensino escolar a condena, e, na literatura, a forma aparece para caracterizar falantes de baixa extração social; 3) é corrente, no entanto, na língua falada, em todos os níveis sociais, e só é evitada em situações nas quais quem fala “sente a responsabilidade de homem instruído”; 4) explicações históricas não dão conta do fenômeno, especialmente duas delas: a) que seja o análogo ou o descendente dos objetos diretos arcaicos (vi ela, nom temo ty), já que só a forma de terceira pessoa sobreviveu; b) não é “simplificação” de construções como vi-o a ele, de que se subtraiu depois o pronome regime “o”; c) não é analogia com construções de acusativo com infinito (mandei ele fazer).

Essa análise afasta completamente os critérios históricos. A explicação de Mattoso é absoluta e magistralmente sincrônica. Fundamenta-se em vários fatos: 1) “ele” comporta-se como um nome ou um pronome demonstrativo (Pedro / ele / aquele saiu; disse a Pedro / a ele / àquele; vi Pedro / ele / aquele); 2) o português do Brasil é basicamente proclítico, fato do qual decorre 3): “o”, “a”, “os”, “as”, sendo átonos, não têm a característica necessária para ocupar a posição proclítica (o vi, a quero; ao contrário de “me”, “te”: me vê, te quero); 4) o quase desaparecimento de “tu” (substituído por “você”), do que decorre que, embora “te” conviva com “você” (abusivamente, diz Mattoso), a “tendência” é que a forma “lhe” ocupe a posição de objeto direto quando o falante pretende ser “correto” (Manduca está lhe chamando é de Artur Azevedo).

Em suma: “o”, “a”, “os”, “as” estão em franco desaparecimento; o falante cuja atitude favoreça o padrão empregará “lhe(s)” no lugar dessas formas. Mas o fato decisivo é que “ele” / “ela” e seus plurais tornaram-se praticamente formas invariáveis, isto é, sem flexão de caso.

Segundo Mattoso Câmara, tal comportamento do pronome “ele” decorreria de seu estatuto semiótico especial, diferente do dos pronomes pessoais, o que lembra as análises do linguista francês Émile Benveniste (1902-1976): “ele” substitui nomes e tem flexões, o que não ocorre com “eu” e com “tu”. Ou seja: “ele” não é um pronome pessoal.

O equívoco de Mattoso Câmara

As teses de Mattoso seriam perfeitas se não fossem desmentidas pelos fatos. E o fato é que “ele/a” não é o único “pronome” a ir perdendo as flexões casuais, embora o grau dessa mudança seja certamente mais profundo do que a que ocorre com os outros pronomes (nesses casos, talvez se trate apenas de variação).

Ou seja, o erro de Mattoso consiste em dizer (não sei de que dados ele dispunha) que nada de semelhante ocorre com outros pronomes, dos quais sempre “usamos as flexões casuais (me, a mim)”.
Em contraponto, há fatos que são sintomas de que o sistema dos pronomes está balançando.

a) A toada “Leva eu, sodade”, dos Cantores de Ébano, da qual um analista amador de música popular disse que tem uma “letra ingênua, tosca, de uma simplicidade comovedora”, que inclui “eu” como objeto direto: Ô leva eu/ minha sodade/ eu também quero ir/ minha sodade/ quando chego na ladeira tenho medo de cair! Leva eu, ô leva eu.../ minha sodade.

b) Sérgio Reis gravou música cujo refrão é Oh, leva eu, Mainha/ Aqui não posso ficar/ Oh, leva eu, Mainha/ Que a saudade faz chorar (observe-se que a gramática não é totalmente caipira: a forma é “saudade”, não “sodade”);

c) J. Luna e Antonio Barros compuseram “Procurando tu”, cujo refrão é Passei a noite procurando tu / procurando tu / procurando tu, em que ocorre a forma pronominal “tu” na função de objeto direto (a música não é sobre “saudade” e o verbo não é “levar”...);

d) É de Zeca Pagodinho um sucesso musical recente cujo refrão é Deixa a vida me levar/ Vida leva eu/ Deixa a vida me levar/ Vida leva eu;

e) “Beija eu”, de Arnaldo Antunes e Marisa Monte, inclui Molha eu/ Seca eu; beija eu/ beija eu/ beija eu, me beija; então deita e aceita eu...

O que esses fatos mostram? Que, se não está em curso a mudança de todo o sistema dos pronomes pessoais, no que se refere a sua flexão casual, pode-se dizer com segurança que, ao lado das formas tradicionais, está vivíssima uma gramática na qual todos os pronomes aparecem em todas as posições sintáticas com sua forma ‘básica’ e invariável, aquela que estávamos acostumados (estávamos mesmo?) a considerar exclusiva da função sujeito.

Nos casos de “eu” e de “tu” como objeto, trata-se sempre de contextos informais, como se pode confirmar com dados como os cartazes que vemos na TV ou na internet: Filma nóis, Galvão, por exemplo.

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Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) 

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