julho 27, 2014

"Nietzsche e as possibilidades da alma", por Rafael Trindade

PICICA: "Está aberto o caminho para novas versões e refinamentos da hipótese da alma: e conceitos como ‘alma mortal’, ‘alma como pluralidade do sujeito’, ‘alma como estrutura social de impulsos e afetos’ querem ter, de agora em diante, direito de cidadania” – Nietzsche, Além do Bem e do Mal, § 12"

Nietzsche e as possibilidades da alma

 
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Muito se fala sobre Nietzsche, pelos blogs circulam dezenas de citações que muitas vezes não são suas; talvez ele seja o filósofo alemão mais famoso atualmente. Mas poucos vêem para além de seu bigode exagerado e percebem que por trás de seus aforismos aparentemente desconexos se esconde um sistema filosófico magnífico que procura afirmar a vida sem necessidade de monumentos metafísicos flutuando no ar.

Há vários motivos para incluir Nietzsche numa contra-história da psicologia. O próprio filósofo escreve pouco antes de seu colapso mental que “antes de mim não havia sequer psicologia” (EH). Para ele, todos aqueles que diziam estudar o homem se baseavam em considerações metafísicas de origem platônica e posteriormente cristã, mas sem nunca parar para pensar se estas próprias idéias tinham alguma consistência. O primeiro trabalho do filósofo-psicólogo então é desconstruir as ilusões criadas na unidade do homem, que ele mesmo chama de atomismo anímico.

Demócrito (460 a.C.) já havia postulado o átomo como algo indivisível, indestrutível, imperecível. Esta sedução da linguagem nos leva por um caminho enganoso que foi seguido posteriormente por Platão, pelo cristianismo, Descartes, Kant e Schopenhauer. Contudo, “a unidade da palavra não garante a unidade da coisa” (HDH). Só porque temos uma palavra que indica algo, isso não se dá necessariamente. O mundo é um mar de forças, por trás do átomo encontramos várias outras partículas relacionando-se umas com as outras; a crença na unidade não passa de uma busca por um porto seguro, um ponto de apoio onde se fixar. Mas a imobilidade mata a vida. Platão pensou encontrar este lugar no mundo das idéias, do qual nosso mundo seria apenas uma cópia imperfeita e perecível; e assim, sua busca por um mundo superior, desvalorizou nossa realidade. O cristianismo, cópia vulgar do platonismo, persiste neste fóssil metafísico da unidade, não consegue ver que toda essência é ilusão. Precisamos voltar a Heráclito e dizer que o rio que entramos pela segunda vez não é o mesmo que o primeiro porque suas águas já são outras. Mas principalmente, nós mesmos já somos outros também.

Todas estas idéias se repetem quando falamos do homem. “A versão materialista do atomismo ainda não é o solo mais profundo a que a crítica pode chegar, porque há um ponto ainda mais radical que o atomismo materialista, que é o atomismo psíquico, atomismo da alma” (Giacoia, p. 54). Buscamos algo de essencial e eterno no ser humano, algo que resista às forças tanto internas quanto externas e que sobreviva ao movimento. Esta ilusão se dá na palavra “Eu”. Mas esta noção é completamente aleatória, uma mentira útil, servindo apenas na medida em que serve ao próprio homem. A alma é um jogo de forças, um mar agitado num embate furioso onde uma onda se sobrepõe à outra. Minha consciência é apenas um subconjunto, a última e mais recente parte, que se manifesta nessa dança corporal de impulsos. Várias partes do meu processamento cerebral escapam à minha consciência, várias condições corporais me passam despercebido, a mente consciente é uma janela reduzida demais para chamar de “alma”. Se do átomo só encontramos seu movimento e sua força, Nietzsche nos propõe chamar o corpo de um grande conjunto de vontades, afetos, impulsos e sensações:
Está aberto o caminho para novas versões e refinamentos da hipótese da alma: e conceitos como ‘alma mortal’, ‘alma como pluralidade do sujeito’, ‘alma como estrutura social de impulsos e afetos’ querem ter, de agora em diante, direito de cidadania” – Nietzsche, Além do Bem e do Mal, § 12
Se o mundo externo não possui unidade por si só, mas é uma criação do homem para suportar o infinito devir da existência, o mesmo deve ser aplicado ao homem; a multiplicidade de forças do mundo é a mesma pluralidade de forças internas que move o ser humano, os dois não constituem nada mais que uma unidade transitória, um rio no qual temos a ilusão de entrarmos duas vezes. Deste modo, palavras como essência, alma, unidade, eu, passariam a ser apenas palavras, criações que nos utilizamos sabendo que são mentiras, porque por debaixo desse suposto “Eu” se escondem milhares de outros “Eus”, que também querem e desejam e se empurram na busca para crescer e saciar suas vontades. Está desfeita a unidade de Descartes ao dizer “penso, logo existo”, porque o próprio “eu” se multiplica por detrás de si; Schopenhauer também afirmou a unidade do sujeito no “Eu quero”, mas ele não pode ignorar a pergunta “quem quer?”.

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A ideia de ter várias almas é deslumbrante, poético demais para não ser filosofia. Se precisamos interpretar o mundo, por que não assim? O objetivo principal de Nietzsche é não se esconder atrás de nada que diminua o prazer de viver e não esconda a realidade e toda sua magnitude. Assim podemos encarar a existência de frente, com seu lado bom e ruim. A vida é movimento, e determinadas idéias procuram dissimular o andamento do rio, secá-lo. “Só conseguimos estar atentos a esta coloração da vida quando nos despojamos da necessidade de hábitos duradouros, porque estes dão a falsa ilusão de um território seguro, mas na realidade congelam nossa existência numa única estampa” (Aline Nascimento). O objetivo de Nietzsche ao postular várias almas é também trazer a opção de novas possibilidades, outras interpretações, que afirmem a vida por si própria sem recorrer à “céu”, “inferno” e outras existências para validar a nossa realidade.
“Assim falava alguém de si para si, em uma caminhada ao sol da manhã: alguém em quem não somente o espírito, mas também o coração sempre se transforma de novo e que, ao contrário dos metafísicos, se sente feliz por albergar em si, não ‘uma alma imortal’, mas muitas almas mortais” – Nietzsche, Humano Demasiado Humano II, §17
Fonte: Razão Inadequada

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