PICICA: "O sucesso relativo de O anti-Édipo não nos compromete, nem a Félix nem a mim; de certo modo não nos diz respeito, já que estamos em outros projetos. Passo então à sua outra crítica, mais dura e mais penosa, que consiste em dizer que sempre estive a reboque, poupando meus esforços, me aproveitando das experimentações dos outros, bichas, drogados, alcoólatras, masoquistas, loucos…, etc, degustando vagamente suas delícias e seus venenos sem jamais arriscar nada. Você usa contra mim um texto que eu mesmo escrevi, onde pergunto como não tornar-se um conferencista profissional sobre Artaud, um amador mundano de Fitzgerald. Mas o que sabe você de mim, uma vez que eu acredito no segredo – quer dizer, na potência do falso – mais do que nos relatos que revelam uma deplorável crença na exatidão e na verdade? Se não me mexo, se não viajo, tenho como todo mundo minhas viagens no mesmo lugar, que não posso medir senão com minhas emoções, e exprimir da maneira mais oblíqua e indireta naquilo que escrevo. E minha relação com as bichas, os alcoólatras ou os drogados, o que isso tem a ver com o assunto, se obtenho em mim efeitos análogos aos deles por outros meios? O que interessa não é saber se me aproveito do que quer que seja, mas se tem gente que faz tal ou qual coisa em seu canto, eu no meu, e se há encontros possíveis, acasos, casos fortuitos, e não alinhamentos, aglutinações, toda essa merda em que se supõe que cada um deva ser a má consciência e o inspetor do outro. Eu não devo nada a vocês, nem vocês a mim. Não há nenhuma razão para que eu frequente seus guetos, já que tenho os meus. O problema nunca consistiu na natureza deste ou daquele grupo exclusivo, mas nas relações transversais em que os efeitos produzidos por tal ou qual coisa (homossexualismo, droga, etc.) sempre podem ser produzidos por outros meios. Contra os que pensam “eu sou isto, eu sou aquilo”, e que pensam assim de maneira psicanalítica (referência à sua infância ou destino), é preciso pensar em termos incertos, improváveis: eu não sei o que sou, tantas buscas ou tentativas necessárias, não-narcísicas, não-edipianas – nenhuma bicha jamais poderá dizer com certeza “eu sou bicha”. O problema não é ser isto ou aquilo no homem, mas antes o de um devir inumano, de um devir universal animal: não tomar-se por um animal, mas desfazer a organização humana do corpo, atravessar tal ou qual zona de intensidade do corpo, cada um descobrindo as suas próprias zonas, e os grupos, as populações, as espécies que o habitam. Porque não teria direito de falar da medicina sem ser médico, já que falo dela como um cão? Por que razão não falar da droga sem ser drogado, se falo dela como um passarinho? E por que eu não inventaria um discurso sobre alguma coisa, ainda que esse discurso seja totalmente irreal e artificial, sem que me peçam meus títulos para tal? A droga às vezes faz delirar, por que eu não haveria de delirar sobre a droga? Para que serve essa sua “realidade”? Raso realismo, o de vocês. E então por que você me lê? O argumento da experiência reservada é um mau argumento reacionário. A frase de O anti-Édipo que eu prefiro é: não, nós nunca vimos esquizofrênicos."
Gilles Deleuze
Carta a um crítico severo, de Gilles Deleuze
Deleuze e seus textos impossíveis de não amá-los. Carta a um crítico severo, surgido em 1973, posteriormente republicado como o primeiro dos textos de Pourparlers (ed. bras. Conversações,
da Editora 34, com tradução de Peter Pál Pelbart), é um dos textos de
Deleuze de que mais gosto. Leio-o como a experiência exemplar de uma
certa ascese filosófica espinosana que parece habitar o coração do
trabalho filosófico de Gilles Deleuze.
Por
ascese, no entanto, devemos compreender algo diferente da negação de
si; o momento em que se cria um si impessoal para si mesmo. Uma ascese
filosófica que poderia ser encontrada nos últimos trabalhos de Michel
Foucault, tão inspirados pelas pesquisas de Pierre Hadot: ascese como o
trabalho de si sobre si mesmo.
Na Carta... persiste uma assinatura impessoal que parece marcar o ponto de viragem em que todo o pathos reativo,
pessoal, subjetivo, que poderia impregnar uma carta endereçada a um
desafeto – um crítico severo – torna-se um empreendimento afirmativo,
positivo. Deleuze não se vitimiza, não procura lançar ardilosamente seu
interlocutor a uma armadilha; ao contrário, Deleuze explica como
construir um si, um corpo-sem-órgãos, talvez muito mais simplesmente que em Mil Platôs (“Como criar para si um corpo sem órgãos”).
Isso
se deve a dois gestos filosóficos impessoais. Primeiro, a vagarosa e
prudente desconstrução do argumento do ressentimento de seu
interlocutor. Para além do conceito de corpo-sem-órgãos, derivado das
leituras de Antonin Artaud, eis, aqui, outro motivo pelo qual chamo o
gesto deleuziano total contido nesse texto de uma espécie muito singular
de ascese: pelo menos desde os estóicos, conhecemos toda uma literatura
que vincula ascese, como relação de si para consigo mesmo, e uma certa
duração muito lenta no uso e na destruição do discurso do mestre. Uso do
discurso do mestre no sentido de intermediação de uma relação de si
para consigo, de criação de uma dobra de subjetivação impessoal no
discípulo; destruição do discurso do mestre, porque a palavra do diretor
das consciências – bem o vemos em Foucault –, não substitui ou supera
essa relação de si para consigo.
Se Agamben estiver certo, e só se puder filosofar entre amigos, e sob a condição de a amizade significar uma espécie de condivisione (partilha)
do mundo, eis um dos liames invisíveis entre as vidas filosóficas de
Foucault e Deleuze, um conceito impessoal de ascese, especialmente
espinosano (cf. Spinoza et le Problème de l’Expression,
de Deleuze, nesse sentido) em Deleuze, é um conceito teórico,
não-abstrato e potente, cuja genealogia Foucault busca reconstituir como
política de si e da amizade entre os anos de 1978-1984. Em Foucault, a
ascese é a operação prática de si capaz de dar forma a uma vida (Lebensform, Bíos etc.).
Apesar
de Deleuze utilizar a todo momento a primeira pessoa do singular (“a
maneira de me safar”, “minhas unhas”, “Meu livro sobre Bergson”, “Foi
Nietzsche quem me tirou disso tudo”, etc.), o pessoal só retorna ao
texto a fim de desagregar-se em si impessoal,
em dobra subjetiva, em escritura sem sujeito que, ao dissolvê-lo,
devolve o sujeito como um resto ao lado da máquina desejante. É apenas
ao preço de desterritorializar o sujeito que, de um lado, anula-se o
ressentimento ao pôr o desejo à frente da má-consciência.
Como
segundo gesto filosófico, formando um duplo do gesto da prudência,
aprofunda-se a ascese quando o si impessoal torna-se objeto de uma
afirmação sem precedentes. Já não somos nós que atravessamos pela
filosofia; com maior razão, a filosofia nos atravessa de um lado a outro
e vai derramar-se além.
O si é a dobra interior do mundo; daí, provavelmente, a retomada de Leibniz e do conceito de mônada em Le pli : Leibniz et le barroque (ed. bras. A dobra, com tradução de Luiz B. L. Orlandi) ou o conceito de outro como um mundo possível já em Proust et les Signes, mas também mais tarde, em O que é a filosofia?.
O sujeito envolve-se no mundo, do mundo, e nesse envolver-se, o reino
da singularidade irredutível, a paixão da diferença, recomeçar o novo no
cosmos como ressonância singular das séries disparatadas,
dessemelhantes, dos signos no sujeito. E o sujeito, como o pensamento –
vê-se bem em Diferença e Repetição, mas também na monografia sobre Proust –, constituem-se de com a violência dos signos. Assim, junto a Proust, mesmo
o amor se torna uma conversa silenciosa; os signos desenvolvem-se no
exterior e não requerem um sujeito senão a fim de afectá-lo; e essa
afecção é o próprio pathos, a paixão em si mesma. O livro é o Fora; o outro é o Fora; o amor é o Fora que redobramos por dentro.
Ao
tornar o afecto – da arte ou do outro, pouco importa – objeto de uma
afirmação pura, e ao passo em que o campo de individuação que produz um
sujeito joga consigo mesmo, varia, deixa passar algumas intensidades,
bloqueia outras, seleciona as qualidades e os afectos segundo uma
imanência que vive e ondula destruindo a iminência a cada vez que a
assiste principiar, Deleuze torna a filosofia o campo do singular, de
uma guerra de guerrilhas, de uma guerra sem batalha, em uma conversa
intermédia: tal como um rizoma, sem começo e sem fim, envolvendo toda
exterioridade.
Se
assim for, a história da filosofia não pode permanecer a mesma; fazer
história da filosofia implicaria uma perversão, uma traição – "uma
enrabada ou, o que dá no mesmo, uma imaculada concepção", como zombava
Deleuze.
Nascimento
sem mácula nem má-consciência, porque apropriar-se do absolutamente
exterior – um conceito, um signo, uma imagem – não se faz sem
envolvê-lo, já, na própria existência, sem jogar com as séries
contingentes e plurais da diferença: eu, o outro, o si, o impessoal, o
campo de individuações, o Fora, a diferença, a vontade de poder –
princípio genealógico de toda diferença, inclusive do desejo, em
Nietzsche. Assim, por dentro e por fora tornada objeto de uma afirmação
singular, a única voz da diferença parece murmurar ao mundo em segredo:
“Eu não lhe peço nada, mas gosto muito de você’.
--
* Abaixo, segue Carta a um crítico severo, escrita por Deleuze, e publicada em 1973.
Carta a um crítico severo
Gilles Deleuze
{ arquivo } - Você
é encantador, inteligente, malevolente, quase ruim. Mais um esforço…
afinal, a carta que você me manda, invocando ora o que se diz,
ora o que você mesmo pensa, e os dois misturados, é uma espécie de
júbilo pela minha suposta infelicidade. Por um lado, você diz que estou
acuado, em todos os sentidos, na vida, no ensino, na política, que me
tornei uma vedete imunda, que aliás isso não dura muito, e que não tenho
saída. Por outro lado, você diz que eu sempre estive a reboque, que
sugo o sangue e degusto os venenos de vocês, os verdadeiros
experimentadores ou heróis, e que eu mesmo fico à margem, só observando e
tirando proveito. Para mim não é nada disso. Já estou tão cheio de
verdadeiros ou falsos esquizos que me converteria com prazer à paranóia.
Viva a paranóia! O que você pretende me injetar com sua carta é um
pouco de ressentimento (você está acuado, você está acuado, “confessa”…)
e um pouco de má consciência (não tem vergonha, está a reboque…); se
era só isso, não valia a pena me escrever. Você se vinga por ter feito
um livro sobre mim. Sua carta está repleta de uma comiseração fingida e
de uma real sede de vingança.
Primeiro,
é bom lembrar, apesar de tudo, que não fui eu quem desejou este livro.
Você diz porque quis fazê-lo: “Por humor, acaso, sede de dinheiro ou de
ascensão social.” Não vejo como vai satisfazer todas essas coisas assim.
Ainda uma vez, é problema seu, e desde o começo eu avisei que este
livro não me concernia, que eu não o leria ou só o leria mais tarde, e
como um texto referente exclusivamente a você. Você veio me ver pedindo
não sei o que de inédito. E na verdade, só para agradá-lo propus uma
troca de cartas; seria mais fácil e menos cansativo do que uma
entrevista no gravador. Com a condição de que essas cartas fossem
publicadas separadas de seu livro, como uma espécie de apêndice. Você já
se aproveita disso para distorcer um pouco o nosso acordo, e me
censurar por ter reagido como um oráculo, como uma velha Guermantes
dizendo “havemos de escrever-lhe”, ou como um Rike recusando seus
conselhos a um jovem poeta. Paciência!
É
verdade que a benevolência não é o forte, em vocês. Quando eu já não
souber amar e admirar pessoas ou coisas (não muitas), me sentirei morto,
mortificado. Mas vocês, parece que nasceram completamente amargos, é a
arte da piscadela, “comigo não… faço um livro sobre você, mas você vai
ver…”. De todas as interpretações possíveis, em geral vocês escolhem a
mais maldosa ou a mais baixa. Primeiro exemplo: eu gosto de Foucault e o
admiro. Escrevi um artigo sobre ele. E ele sobre mim, onde está a frase
que você cita: “Um dia talvez o século será deleuzeano”. Seu
comentário: eles se jogam confete. Não passa pela sua cabeça que minha
admiração por Foucault seja cômica, feita para divertir os que gostam de
nós e enfurecer os demais. Um texto que você conhece explica essa
malevolência inata dos herdeiros do esquerdismo: “Se tiver peito, tente
pronunciar diante de uma assembléia esquerdista a palavra fraternidade
ou benevolência. Eles se entregam com extrema aplicação ao exercício da
animosidade sob todos seus disfarces, da agressividade e ridicularização
a propósito de tudo e de todos, presentes ou ausentes, amigos ou
inimigos. Não se trata de compreender o outro, mas de vigiá-lo”. Sua
carta é isto: alta vigilância. Lembro de um cara da Fhar (Frente
Homossexual de Ação Revolucionária) declarando numa assembléia: se a
gente não estivesse aqui para ser a má consciência de vocês… Estranho
ideal policialesco, o de ser a má consciência de alguém. Também para
você, pareceria que fazer um livro sobre (ou contra) mim lhe dá algum
poder sobre minha pessoa. Nada disso. Repugna-me tanto a possibilidade
de ter má consciência como a de ser a má consciência dos outros.
Segundo
exemplo: as minhas unhas, que são longas e não aparadas. No final da
carta você diz que minha jaqueta de operário (não é verdade, é uma
jaqueta de camponês) corresponde ao corpete plissado de Marilyn Monroe, e
minhas unhas, os óculos escuros de Greta Garbo. E você me inunda com
conselhos irônicos e maldosos. Já que você volta tantas vezes ao assunto
das unhas, eu explico. Sempre dá para dizer que minha mãe as cortava, e
que tem a ver com Édipo e a castração (interpretação grotesca, mas
psicanalítica). Também dá para notar, observando a extremidade dos meus
dedos, que me faltam as impressões digitais normalmente protetoras, de
tal modo que tocar um objeto com a ponta dos dedos, e sobretudo um
tecido, me dá uma dor nervosa que exige a proteção das unhas longas
(interpretação teratológica e selecionista). Dá para dizer ainda, e é
verdade, que o meu sonho é ser não invisível, mas imperceptível, e que
compenso esse sonho com unhas que posso enfiar no bolso, pois nada me
parece mais chocante do que alguém olhando para elas (interpretação
psicossociológica). Enfim dá para dizer: “não precisa comer as unhas só
porque são suas; se você gosta de unha, coma a dos outros, se quiser ou
puder” (interpretação política, Darien). Mas você escolhe a pior
interpretação: ele quer se singularizar, se fazer de Greta Garbo. De
qualquer modo, é curioso que de todos os meus amigos nenhum jamais tenha
notado minhas unhas, achando-as inteiramente naturais, plantadas aí ao
acaso, como que pelo vento, que traz as sementes e não faz ninguém
falar.
Chego então à sua primeira crítica, onde você diz e repete com todas as letras: você está cercado, você está acuado, confessa.
Procurador geral! Não confesso nada. Já que se trata por sua culpa de
um livro sobre mim, gostaria de explicar como vejo o que escrevi. Sou de
uma geração, uma das últimas gerações que foram mais ou menos
assassinadas com a história da filosofia. A história da filosofia exerce
em filosofia uma função repressora evidente, é o Édipo propriamente
filosófico: “Você não vai se atrever a falar em seu nome enquanto não
tiver lido isto e aquilo, e aquilo sobre isto, e isto sobre aquilo.” Na
minha geração muitos não escaparam disso, outros sim, inventando seus
próprios métodos e novas regras, um novo tom. Quanto a mim, “fiz” por
muito tempo história da filosofia, li livros sobre tal ou qual autor.
Mas eu me compensava de outras maneiras. Primeiro, gostando dos autores
que se opunham à tradição racionalista dessa história (e entre Lucrécio,
Hume, Espinosa, Nietzsche, há para mim um vínculo secreto constituído
pela crítica do negativo, pela cultura da alegria, o ódio à
interioridade, a exterioridade das forças e das relações, a denúncia do
poder…, etc.). O que eu mais detestava era o hegelianismo e a dialética.
Meu livro sobre Kant é diferente, gosto dele, eu o fiz como um livro
sobre um inimigo, procurando mostrar como ele funciona, com que
engrenagens – tribunal da Razão, uso comedido das faculdades, submissão
tanto mais hipócrita quanto nos confere título de legisladores. Mas
minha principal maneira de me safar nessa época foi concebendo a
história da filosofia como uma espécie de enrabada, ou, o que dá no
mesmo, de imaculada concepção. Eu me imaginava chegando pelas costas de
um autor e lhe fazendo um filho, que seria seu, e no entanto seria
monstruoso. Que fosse seu era muito importante, porque o autor precisava
efetivamente ter dito tudo aquilo que eu lhe fazia dizer. Mas que o
filho fosse monstruoso também representava uma necessidade, porque era
preciso passar por toda espécie de descentramentos, deslizes, quebras,
emissões secretas que me deram muito prazer. Meu livro sobre Bergson me
parece exemplar nesse gênero. E hoje tem gente que morre de rir
acusando-me por eu ter escrito até sobre Bergson. É que eles não
conhecem o suficiente de história. Não sabem o tanto de ódio que Bergson
no início pôde concentrar na Universidade francesa, e como ele serviu –
querendo ou não, pouco importa – para aglutinar todo tipo de loucos e
marginais, mundanos ou não.
Foi
Nietzsche, que li tarde, quem me tirou disso tudo. Pois é impossível
submetê-lo ao mesmo tratamento. Filhos pelas costas é ele quem faz. Ele
dá um gosto perverso (que nem Marx nem Freud jamais deram a ninguém, ao
contrário): o gosto para cada um de dizer coisas simples em nome
próprio, de falar por afetos, intensidades, experiências,
experimentações. Dizer algo em nome próprio é muito curioso, pois não é
em absoluto quando nos tomamos por um eu, por uma pessoa ou um sujeito
que falamos em nosso nome. Ao contrário, um indivíduo adquire um
verdadeiro nome próprio ao cabo do mais severo exercício de
despersonalização, quando se abre às multiplicidades que o percorrem. O
nome como apreensão instantânea de uma tal multiplicidade intensiva é o
oposto da despersonalização operada pela história da filosofia, uma
despersonalização de amor e não de submissão. Falamos do fundo daquilo
que não sabemos, do fundo de nosso próprio subdesenvolvimento.
Tornamo-nos um conjunto de singularidades soltas, de nomes, sobrenomes,
unhas, animais, pequenos acontecimentos: o contrário de uma vedete.
Comecei então a fazer dois livros nesse sentido vagabundo, Diferença e repetição, Lógica do sentido.
Não tenho ilusões: ainda estão cheios de um aparato universitário, são
pesados, mas tento sacudir algo, fazer com que alguma coisa em mim se
mexa, tratar a escrita como um fluxo, não como um código. E há páginas
de que gosto em Diferença e repetição,
aquelas sobre a fadiga e a contemplação, por exemplo, porque são da
ordem do vivido bem vivo, apesar das aparências. Não fui muito longe,
mas já era um começo.
E
depois houve meu encontro com Félix Guattari, a maneira como nós nos
entendemos, completamos, despersonalizamos um no outro,
singularizamo-nos um através do outro, em suma, nos amamos. Isso deu O anti-Édipo,
e foi um novo progresso. Eu me pergunto se uma das razões formais para a
hostilidade que às vezes surge contra esse livro não é justamente por
ter sido feito a dois, uma vez que as pessoas gostam de brigas e
partilhas. Então tentam separar o indiscernível ou fixar o que pertence a
cada um de nós. Mas visto que cada um, como todo mundo, já é muitos,
isso dá muita gente. E sem dúvida não se pode dizer que O anti-Édipo esteja
livre de todo aparato de saber: ele ainda é bem acadêmico, bastante
comportado, e não chega a ser a pop’filosofia ou a pop’análise sonhadas.
Mas surpreende-me o seguinte: os que acham sobretudo que este livro é
difícil são aqueles com mais cultura, principalmente cultura
psicanalítica. Eles dizem: o que é isso, o corpo sem órgãos, o que quer
dizer máquinas desejantes? Ao contrário, os que sabem pouca coisa, os
que não estão envenenados pela psicanálise têm menos problemas, e deixam
de lado o que não entendem sem preocupação. É por isso que dissemos que
este livro, pelo menos de direito, se dirigia a pessoas com idade entre
quinze e vinte anos. É que há duas maneiras de ler um livro. Podemos
considerá-lo como uma caixa que remete a um dentro, e então vamos buscar
seu significado, e aí, se formos ainda mais perversos ou corrompidos,
partimos em busca do significante. E trataremos o livro seguinte como
uma caixa contida na precedente, ou contendo-a por sua vez. E
comentaremos, interpretaremos, pediremos explicações, escreveremos o
livro do livro, ao infinito. Ou a outra maneira: consideramos um livro
como uma pequena máquina a-significante; o único problema é: “isso
funciona, e como é que funciona?” Como isso funciona para você? Se não
funciona, se nada se passa, pegue outro livro. Essa outra leitura é uma
leitura em intensidade: algo passa ou não passa. Não há nada a explicar,
nada a compreender, nada a interpretar. É do tipo ligação elétrica.
Corpo sem órgãos, conheço gente sem cultura que compreendeu
imediatamente, graças a seus próprios “hábitos”, graças à sua maneira de
se fazer um. Essa outra maneira de ler se opõe à anterior porque
relaciona imediatamente um livro com o Fora. Um livro é uma pequena
engrenagem numa maquinaria exterior muito mais complexa. Escrever é um
fluxo entre outros, sem nenhum privilégio em relação aos demais, e que
entra em relações de corrente, contra-corrente, de redemoinho com outros
fluxos, fluxos de merda, de esperma, de fala, de ação, de erotismo, de
dinheiro, de política, etc. Como Bloom, escrever na areia com uma mão,
masturbando-se com a outra – dois fluxos, em que relação? Nós, o nosso
fora, pelo menos um deles, foi uma certa massa de gente (sobretudo
jovens) que estão fartos da psicanálise. Eles estão “acuados”, para
falar como você, pois continuam mais ou menos se analisando, já pensam
contra a psicanálise, mas pensam contra ela em termos psicanalíticos.
(Por exemplo, tema de gracejo íntimo, como é que os rapazes do Fhar, as
moças do movimento de Libertação das Mulheres – MLF, e muitos outros
ainda, podem fazer análise? Isso não os incomoda? Acreditam nisso? O que
será que procuram no divã?) É a existência dessa corrente que tornou
possível O anti-Édipo.
E se os psicanalistas, dos mais estúpidos aos mais inteligentes, têm em
geral uma reação hostil a esse livro, embora mais defensiva do que
agressiva, evidentemente não é só por causa do seu conteúdo, mas em
razão dessa corrente que vai crescer, de pessoas que estão cada vez mais
cheias de se ouvirem dizendo “papai, mamãe, Édipo, castração,
regressão”, e de se verem propor da sexualidade em geral, e da sua em
particular, uma imagem propriamente imbecil. Como se diz, os
psicanalistas deverão levar em conta as “massas”, as pequenas massas.
Recebemos belas cartas nesse sentido, vindas de um lumpemproletariado da
psicanálise, muito mais belas que os artigos da crítica.
Essa
maneira de ler em intensidade, em relação com o fora, fluxo contra
fluxo, máquina com máquinas, experimentações, acontecimentos em cada um
nada têm a ver com um livro, fragmentação do livro, maquinação dele com
outras coisas, qualquer coisa…, etc., é uma maneira amorosa. Ora, você
leu exatamente assim. E o trecho da sua carta que me parece belo,
maravilhoso, até, é onde você conta como o leu, como o usou para os seus
próprios fins. Mas que pena! Infelizmente você volta rápido demais às
recriminações: você não vai se sair dessa, vamos ver vocês no segundo
tomo, estamos de olho, só esperando… Não, não é nada disso, já temos
nossa posição. Vamos continuar porque gostamos de trabalhar juntos. Mas
não será de modo algum uma continuação. Com a ajuda do fora, faremos uma
coisa tão diferente em termos de linguagem e de pensamento, que as
pessoas que nos “esperam” serão obrigadas a dizer: eles ficaram
completamente loucos, ou são safados, ou foram incapazes de continuar.
Decepcionar é um prazer. Nem de longe queremos nos fingir de loucos, mas
enlouqueceremos à nossa maneira e na nossa hora, não precisam nos
empurrar. Sabemos que O anti-Édipo primeiro
tomo ainda está cheio de concessões, entulhado de coisas ainda eruditas
e que se parecem com conceitos. Pois bem, mudaremos, já mudamos, vamos
de vento em popa. Alguns pensam que vamos continuar no mesmo embalo,
houve até quem acreditasse que formaríamos um quinto grupo
psicanalítico. Que pobreza! Nós sonhamos com outras coisas, mais
clandestinas e mais alegres. Não faremos mais concessão alguma, já que
necessitamos menos delas. E sempre encontraremos aliados que queiramos
ou que nos queiram.
Você me julga acuado. Não é verdade: nem Félix nem eu nos tornamos os subchefes de uma subescola. E se alguém usa assim O anti-Édipo,
que se dane, visto que já estamos bem longe. Você me quer acuado
politicamente, reduzido a assinar manifestos e petições,
“super-assistente social”: não é verdade, e entre todas as homenagens
que se deve a Foucault, está a de ter por si só e pela primeira vez
quebrado as máquinas de cooptação, e de ter tirado o intelectual de sua
situação política clássica de intelectual. Vocês, por sua vez, ainda
estão na provocação, na publicação, nos questionários, nas confissões
públicas (“confessa, confessa…”). Sinto chegar, ao contrário, a idade
próxima de uma clandestinidade meio voluntária meio imposta, que será o
mais jovem desejo, inclusive político. Você me quer acuado
profissionalmente, porque dei aula por dois anos na Universidade de
Vincennes, e porque dizem, diz você, que ali não faço mais nada. Você
acredita que enquanto eu dava aula estava na contradição, “recusando a
posição do professor mas condenado a ensinar, retomando a rédea quando
todo mundo a havia largado”: não sou sensível às contradições, não sou
uma bela alma vivendo o trágico de sua condição. Falei porque o desejava
muito, fui apoiado, injuriado, interrompido, por militantes, falsos
loucos, loucos de verdade, imbecis, gente muito inteligente, era uma
farra viva em Vincennes. Isso durou dois anos, foi o suficiente, é
preciso mudar. Então, agora que já não falo nas mesmas condições, você
diz ou conta que se diz que já não faço nada, e que estou impotente,
gorda rainha impotente. Não é menos falso: eu me escondo, continuo
fazendo minhas coisas com o mínimo de gente possível, e você, em vez de
me ajudar a não virar vedete, vem pedir que eu preste contas, e me deixa
a opção entre a impotência e a contradição. Por último, você me quer
acuado no plano pessoal, familiar. Aí você não voa muito alto. Explica
que tenho uma mulher, e uma filha que brinca de boneca e triangula pelos
cantos. E acha isso engraçado em relação a O anti-Édipo.
Você também poderia acrescentar que tenho um filho logo em idade de se
analisar. Se você acredita que são as bonecas que produzem o Édipo, ou o
casamento por si só, é estranho. Édipo não é uma boneca, é uma secreção
interna, é uma glândula, e nunca se luta contra as secreções edipianas
sem lutar contra si mesmo, sem experimentar contra si mesmo, sem se
tornar capaz de amar e de desejar (em vez da vontade choramingona de ser
amado, que nos conduz, todos, ao psicanalista). Amores não-edipianos
não é pouca coisa. E você deveria saber que não basta ser celibatário,
sem filhos, bicha, membro de grupos, para evitar Édipo, já que há o
Édipo de grupo, homossexuais edipianos, MLF edipianizado…, etc.
Testemunha disso é um texto, “Os árabes e nós”, que é ainda mais
edipiano que minha filha.
Portanto, não tenho nada a “confessar”. O sucesso relativo de O anti-Édipo não
nos compromete, nem a Félix nem a mim; de certo modo não nos diz
respeito, já que estamos em outros projetos. Passo então à sua outra
crítica, mais dura e mais penosa, que consiste em dizer que sempre
estive a reboque, poupando meus esforços, me aproveitando das
experimentações dos outros, bichas, drogados, alcoólatras, masoquistas,
loucos…, etc, degustando vagamente suas delícias e seus venenos sem
jamais arriscar nada. Você usa contra mim um texto que eu mesmo escrevi,
onde pergunto como não tornar-se um conferencista profissional sobre
Artaud, um amador mundano de Fitzgerald. Mas o que sabe você de mim, uma
vez que eu acredito no segredo – quer dizer, na potência do falso –
mais do que nos relatos que revelam uma deplorável crença na exatidão e
na verdade? Se não me mexo, se não viajo, tenho como todo mundo minhas
viagens no mesmo lugar, que não posso medir senão com minhas emoções, e
exprimir da maneira mais oblíqua e indireta naquilo que escrevo. E minha
relação com as bichas, os alcoólatras ou os drogados, o que isso tem a
ver com o assunto, se obtenho em mim efeitos análogos aos deles por
outros meios? O que interessa não é saber se me aproveito do que quer
que seja, mas se tem gente que faz tal ou qual coisa em seu canto, eu no
meu, e se há encontros possíveis, acasos, casos fortuitos, e não
alinhamentos, aglutinações, toda essa merda em que se supõe que cada um
deva ser a má consciência e o inspetor do outro. Eu não devo nada a
vocês, nem vocês a mim. Não há nenhuma razão para que eu frequente seus
guetos, já que tenho os meus. O problema nunca consistiu na natureza
deste ou daquele grupo exclusivo, mas nas relações transversais em que
os efeitos produzidos por tal ou qual coisa (homossexualismo, droga,
etc.) sempre podem ser produzidos por outros meios. Contra os que pensam “eu sou isto, eu sou aquilo”, e que pensam assim de maneira psicanalítica (referência
à sua infância ou destino), é preciso pensar em termos incertos,
improváveis: eu não sei o que sou, tantas buscas ou tentativas
necessárias, não-narcísicas, não-edipianas – nenhuma bicha jamais poderá
dizer com certeza “eu sou bicha”. O problema não é ser isto ou aquilo
no homem, mas antes o de um devir inumano, de um devir universal animal:
não tomar-se por um animal, mas desfazer a organização humana do corpo,
atravessar tal ou qual zona de intensidade do corpo, cada um
descobrindo as suas próprias zonas, e os grupos, as populações, as
espécies que o habitam. Porque não teria direito de falar da medicina
sem ser médico, já que falo dela como um cão? Por que razão não falar da
droga sem ser drogado, se falo dela como um passarinho? E por que eu
não inventaria um discurso sobre alguma coisa, ainda que esse discurso
seja totalmente irreal e artificial, sem que me peçam meus títulos para
tal? A droga às vezes faz delirar, por que eu não haveria de delirar
sobre a droga? Para que serve essa sua “realidade”? Raso realismo, o de
vocês. E então por que você me lê? O argumento da experiência reservada é
um mau argumento reacionário. A frase de O anti-Édipo que eu prefiro é: não, nós nunca vimos esquizofrênicos.
Afinal
de contas, o que há em sua carta? Nada seu mesmo, exceto o tal belo
trecho. Um conjunto de rumores, diz-que-diz, apresentados com agilidade
como se viessem dos outros ou de você mesmo. Talvez você a quisesse
assim, uma espécie de pastiche de boatos ressoando entre si. É uma carta
mundana, bastante esnobe. Você me pede um “inédito”, depois me escreve
maldades. Minha carta, por causa da sua, parece uma justificação. Assim
não se vai longe. Você não é um árabe, é um chacal. Você faz de tudo
para que eu me transforme nisso que você critica, pequena vedete,
vedete, vedete. Eu não lhe peço nada, mas gosto muito de você – para pôr
fim aos rumores.
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