agosto 26, 2012

"O discurso que salva ‘o ditador’" (Revista Babel)

PICICA: "O apelo do ditador esteriotipado, ao conclamar aos americanos para que imaginem sua pátria como uma ditadura, é a verdadeira grande paródia da trama. Ao fazer isso, Sacha Baron Cohen chama atenção para outro modelo de ditadura – aquela que se traveste de democracia, da imprensa livre, para ludibriar os incautos que se acreditam inteligentes e bem informados. É o que salva o filme, definitivamente."

O discurso que salva ‘o ditador’


Não se pode esperar muito de um filme do ator e roteirista inglês Sacha Baron Cohen além do que já é tradicional e virou sua maior marca no cinema comercial: comédia pastelão forçada, usando de esteriótipos diversos, piadas preconceituosas e tudo mais que reza na cartilha da comédia stand-up da classe média branca metida a “politicamente incorreta”.

Pode ser, como afirmam alguns, que tudo seja apenas uma provocação – e não a babaquice clássica de alguns comediantes.

De qualquer forma, devo admitir que o novo filme do ator inglês, filme O Ditador, chega a surpreender. Sobretudo no fim, no ápice da trama, quando o personagem de Cohen – o general Aladeen, ditador da República da Wadiya – faz um discurso anti-democracia e pró-ditadura. Sim, não me confundi nos termos: anti-democracia e pró-ditadura.

É bem provável que a mensagem contida nessa cena não seja percebida pela maioria, enebriada pela paródia de um ditador insano nos moldes do que os EUA (e boa parte do Ocidente) entendem como um ditador insano: um sujeito de gostos duvidosos, que traja roupa militar carregada de emblemas e com comportamento extravagante, como usar um guarda pessoal formada por soldados mulheres e mandar à morte qualquer um que ouse discordar do “supremo líder” – qualquer associação com Kadafi, Ahmadinejad e afins não será por acaso.



A mensagem transmitida pelo ditador – que, me permitam a comparação descabida, lembra um pouco O Grande Ditador, de Charles Chaplin, quando o sósia do protagonista faz um belo discurso pela liberdade – é uma paródia dentro da paródia.

Ao enaltecer o que chama de ditadura, o personagem acaba criticando o mais tradicional modelo de “democracia” do Ocidente, com toda a sua hipocrisia e falácia de liberdades e afins. Veja, a seguir, o trecho do discurso “pro-ditadura” do general Aladeen e me digam se não lembra uma democracia ocidental:
“Imaginem se a América fosse uma ditadura! 1% do povo teria toda a riqueza da nação. Ajudariam os seus amigos ricos diminuindo os impostos deles e pagando as dívidas de jogo deles. Ignorariam as necessidades de saúde e educação dos pobres. Sua mídia pareceria livre mas seria controlada por uma pessoa e a família dela. Grampeariam telefones e torturariam prisioneiros estrangeiros. Adulterariam as eleições. Mentiriam sobre as guerras. Encheriam as prisões com uma raça específica e ninguém reclamaria. Usariam a mídia para assustar o povo apoiando políticas contra os interesses dele. Sei que é difícil para vocês, americanos, imaginarem. Mas, por favor, tentem”.
Não soa familiar, sobretudo em um mundo pós-Wikileaks onde toda a falácia de democracia dos EUA caiu por terra com o vazamento de documentos? Não parece a prisão de Guantánamo, em Cuba, onde são mantidos prisioneiros sem qualquer acusação formal ou julgamento e com direito a tortura?

Não lembra um país de desigualdades sociais que dá dinheiro público para salvar banqueiros enquanto cidadãos moram nas ruas? Ou o caso do News of The World, do magnata Rupert Murdoch, que grampeou ilegalmente políticos ingleses e membros da família real – aquela família da intocável do hino “God save the Queen”?



O apelo do ditador esteriotipado, ao conclamar aos americanos para que imaginem sua pátria como uma ditadura, é a verdadeira grande paródia da trama. Ao fazer isso, Sacha Baron Cohen chama atenção para outro modelo de ditadura – aquela que se traveste de democracia, da imprensa livre, para ludibriar os incautos que se acreditam inteligentes e bem informados. É o que salva o filme, definitivamente.

Paralelamente no mundo real, enquanto os EUA tentam, por meio dos obedientes ingleses, levar Julian Assange para a morte por crime de vazamento de docmentos no Wikileaks – sob falsa alegação de assédio sexual na Suécia –, me pergunto quantos mais observaram esse arremedo de democracia ocidental. Não é difícil. Ou talvez seja. Parafraseando o general Aladeen, “sei que é difícil para vocês imaginarem. Mas, por favor, tentem”.

Concluo falando (só agora) sobre a trama em si: o ditador é convidado pela ONU para se manifestar a respeito do uso de urânio enriquecido, cujo uso é voltado para a construção de armas atômicas. Nos EUA, antes do seu pronunciamento, o general Aladeen é trocado por um sósia – a mando do braço direito (Ben Kingsley).

O objetivo do traidor é fazer com que o sósia assine uma nova constituição para abrir o país para a democracia. Por trás disso, porém, esconde-se o desejo do personagem de Kingsley de abrir a exploração dos campos de petróleo para empresas estrangeiras. Claro, tudo isso mediante pagamento de propinas.

Familiar, não? 

Fonte: Revista Babel

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