agosto 25, 2012

"Sobre tubos, átomos e crianças", por Bruno Cava

PICICA: "Quando se fala em coletivos culturais, blogues, mídias livres, circuitos “guarda-chuvas”, movimentos arte-ativistas, na relação deles com o estado, as empresas, os partidos, o dinheiro, costuma surgir o problema: quem parasita quem? quem devora quem? quem vomita quem? quem captura quem? o movimento hackeia o sistema ou o sistema hackeia o movimento? como se orientar nessa zona cinzenta onde não fica claro quem está comendo quem? entre comer, digerir, indigerir e vomitar? onde estão os limites? os critérios? os parâmetros? quando traçar a linha? quando dizer não? dizer não e se mover, e resistir, e reexistir? onde, afinal, estão os elementos de autonomia?

Afasto-me desde já de qualquer solução que invoque a pureza. 
Deus me livre dos puros." 

Sobre tubos, átomos e crianças
Texto da palestra proferida no seminário Vômito e não: práticas antropoêmicas na arte e na cultura, na UERJ, 21/08/2012.




Quando se fala em coletivos culturais, blogues, mídias livres, circuitos “guarda-chuvas”, movimentos arte-ativistas, na relação deles com o estado, as empresas, os partidos, o dinheiro, costuma surgir o problema: quem parasita quem? quem devora quem? quem vomita quem? quem captura quem? o movimento hackeia o sistema ou o sistema hackeia o movimento? como se orientar nessa zona cinzenta onde não fica claro quem está comendo quem? entre comer, digerir, indigerir e vomitar? onde estão os limites? os critérios? os parâmetros? quando traçar a linha? quando dizer não? dizer não e se mover, e resistir, e reexistir? onde, afinal, estão os elementos de autonomia?

Afasto-me desde já de qualquer solução que invoque a pureza. 

Deus me livre dos puros.

A negatividade do grito fuck the system só faz sentido quando assentada sobre a positividade de um do it by yourself que lhe confira suficiente respaldo. Eis o ensinamento do movimento punk, contra os skinheads que se resumem a brigar e destruir gratuitamente. Seria voltar a Empédocles: a refrega e o ódio. A recusa que importa se apóia numa vontade de viver superior. A oposição, na diferença do fazer. A morte, na vida. O não, no sim.

Este, o problema.

Para enfrentá-lo, proponho três pontos. O capitalismo, a chuva de átomos, a beatitude. E três autores materialistas. Marx, Lucrécio e Spinoza.



O capitalismo. É possível vomitar o capitalismo no estágio em que se encontra globalizado, pós-fordista, pós-industrial, pós-pós, cognitivo, “cultural” e de subsunção real? Este capitalismo significa 1) não ter fora, 2) consistir na Grande Comunidade que se esparje por todo o globo, onde não existem mais espaços ou tempos não-subsumidos, 3) funcionar mediante uma abstração tão perfeitamente realizada que não tem cheiro, gosto ou cor. Estamos imersos na comutabilidade universal do dinheiro. Como vomitar o líquido amniótico onde existimos? Neste capitalismo, o dinheiro é a medida de todas as coisas. Comensura pessoas e coisas, sujeitos e objetos, trabalho e capital, renda e consumo. O dinheiro: substância comum que preenche o espaço disjuntivo entre os pares polares do processo do capital. Métrica de um Mesmo quantificador, homogeneizador e infinitamente fluido.

Os fluxos escoam na direção de quem reúne governabilidade. Trata-se da capacidade de entubar para extrair mais-valor de vida. Sugar o trabalho vivo para animar o processo do capital. Quem controla o dinheiro controla a vida. A moeda é a polícia do capital. No capitalismo, todo o dinheiro é dos bancos. Ou melhor, _o_ banco, no singular, porque o sistema financeiro é unívoco. Se forem somadas as dívidas de todos, resulta um débito muitas ordens de grandeza acima do total de créditos. É porque a dívida é infinita. Qualitativamente infinita. Nasce-se e morre-se devedor. É-se subjetivado como devedor diante do banco, o capital, o estado.

Este, o primeiro ponto.



A chuva de átomos.  Existem átomos e vazio, e nada mais. No atomismo clássico de Demócrito, os átomos se relacionam mecanicamente. São indivisíveis, indestrutíveis, subsistentes, mudos, surdos, passivos, movimentam-se pelo vácuo. Eles se identificam a si mesmos e não fazem um mundo. Para Lucrécio, os átomos têm uma carga delirante. São desviantes, diferenciam-se infinitamente em si mesmos. Atua o clinâmen. Os atómos se inclinam uns sobre os outros, se encontram e desencontram, se compõem e se decompõem, formam espirais, volúpias, trombas, sirremas. Da estática atomista à topologia, da dinâmica à mecânica dos fluidos. Os átomos e o clinâmen fazem um mundo. O equilíbrio se revela um caso particular da desordem. Teoria da turbulência. Produz, destrói, forma e declina. Entropia afirmativa dos átomos contra as clausuras termodinâmicas. Ética contra moral. O filósofo é um agitador.

O capitalismo precisa da turbulência. Se parar, o valor não se move, e o processo não acontece. O fluxo descontrolado todavia não tem direção, não acumula, e o processo também não acontece. Problema do regime laminar. Canalizar a chuva de átomos. Esta é imprevisível, ela inova. O capitalismo precisa se adaptar, processar, aprender e reaprender a digerir. Precisa de um sistema digestivo. O capital é um tubo. Ou sistema de tubos e vasos. Mediações, medida por si mesma: o capital-dinheiro. A potência de vida é entubada como poder; o trabalho vivo como valor; a vida e a alegria como ameaça de morte e medo. A mediação, a métrica, o dinheiro.

A catarata atômica resiste à mediação dos tubos.

Este, o segundo ponto.



Spinoza. Nunca elaborou sistema fechado. Cada átomo exprime em si o infinito. Tem uma qualidade interna tão infinita quanto a substância. É uma causa interna que se afirma ante o assédio das causas externas. É o conatus, o desejo, a respiração do ser que pulsa e persevera. O infinito spinozano não se resolve no quantitativo. Trata-se também de um infinito qualitativo. A diferença infinita entre as coisas é resultado desse infinito qualitativo. Um processo de diferenciação que o desejo mobiliza rumo ao infinito. O ser não guarda reservas e tem horror ao vazio. Tudo que pode existir existe. Toda a maravilhosa multiplicidade que pode existir existe. O infinitamente diferente se realiza em essências únicas e irrepetíveis. Eis essências singulares: causas únicas e efeitos únicos.

Os singulares são incomensuráveis. Nenhuma medida poderia potenciá-los. Não podem ser mediados sem amortecer a causa interna que é sua essência-potência. Debatem-se para existir no infinito que as impele. Debatem-se contra as mediações, os variados graus de impotência. O desejo é revolucionário. Ele não se restringe à autoafirmação do átomo. O clinâmen eticamente se exprime como cupidez, cupiditas. As essências singulares se propagam, umas sobre as outras, singularidades que se encontram. Constituem um comum marcado pela diferença. O desejo encontra a razão, a cupiditas se organiza como amor. A política consiste na arte dos bons encontros, a arte da constituição do comum, a arte da organização da criação de ser, intensificação da alegria e geração do amor.

O dinheiro em si não é sujo. Erro moralista. Não importa de onde venha ou para onde vá. Erro finalista. Só importa analisar o dinheiro como mediador de uma relação. O problema está na desigualdade que a métrica abstrai. Só na determinação material da relação entre os termos, é que se pode examinar o caso. Ética contra moral.

Ou a revolução é uma desmedida, ou não é.

Este, o terceiro ponto.



Mas como isso resolve o nosso problema inicial?

Não resolve. Mas lhe define algumas condições.

Para o quê? A autonomia.

Quer dizer, o direito de auto-organização das essências singulares, na turbulência da diferenciação infinita que o desejo concita, na cupidez dos bons encontros e potências compartilhadas, no amor da construção comum, por dentro dos tubos, contra suas paredes e válvulas, dentro e contra, e dentro do líquido amniótico — que é, aliás, de onde surge uma criança: um corpo liberto, novo, amoroso, político e inviolável, um devir.

E não é o nascimento da criança, a própria expressão da beatitude?

Fonte: Quadrado dos Loucos

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