PICICA 1: "CRP - Depois de chegar a essas conclusões, como o senhor avalia o movimento pela luta antimanicomial?
Di Loreto - Eu tenho sentimentos "esquizofrênicos" em relação à luta antimanicomial e assemelhados. Tenho
muito respeito e admiração por essas pessoas que saíram ativamente para
essas lutas. Sem eles, teríamos ficado no plano retórico de estudar não
sei o quê e continuaríamos do mesmo jeito. Eles saíram para a luta. E
houve mudanças significativas. Hoje o que se interna é um décimo ou um
vigésimo do que se internava quando eu comecei a profissão.
No entanto, não tenho a mesma admiração por
eles hoje. Porque esses movimentos não mudaram o seu alvo à medida que
foram tendo ganhos. E o alvo a que me refiro é produzir conhecimentos
teóricos e práticos sobre o que colocar no lugar do hospital
psiquiátrico destruído, da instituição negada. Destruímos o hospital,
como se isso acabasse com a loucura. Isso não é verdadeiro. Apenas criou
uma nova tarefa: o que colocar no lugar? O campeão da instituição
psiquiátrica negada, Franco Basaglia, tinha isso muito claro na sua
mente. Os hospitais-dia são muito complexos. Conseguir que se tornem
realmente humanizados, dinâmicos e terapêuticos implica a obtenção de
conhecimentos, de técnicas e habilidades imensas. O velho hospício era
pobre e simples. As novas instituições psis sendo multidisciplinares são
complexas. Harmonizar as gigantescas rivalidades e invejas entre os
profissionais não tem se mostrado tarefa fácil. Ainda não aprendemos a
trabalhar juntos. Tornar o ambulatório psi eficiente não é fácil.
Por isso eu digo que mantenho o respeito e a
admiração integral pelo que foi conquistado. Eu não saí para essa luta e
não faço jus aos méritos em relação a esses ganhos. Participo mais do
segundo pedaço, que é fornecer idéias e práticas sobre o que colocar no
lugar. Há um aspecto sobre o qual todos nós podemos nos enganar com
facilidade na luta antimanicomial, que é o seguinte: não é fácil
enxergar que tendo sido mantido por séculos todo o atendimento
psiquiátrico praticamente centralizado dentro do hospital, no momento em
que essa estrutura foi implodida, toda a rede de necessidades começou a
aparecer. Toda a rede de atendimento estava disfarçada, parecia que não
existia porque estava embutida dentro do hospital. Assim, quando o
hospital implodiu, nós começamos a nos ver às voltas com todas as
necessidades. Essa luta implica agora uma outra etapa, a de produzir
pesquisas e conhecimentos."
PICICA 2: Oswaldo di Loreto nos deixou há pouco tempo. Certamente não lhe era desconhecido a extraordinária contribuição da Universidade Federal do Rio de Janeiro para a reforma psiquiátrica no campo do ensino e pesquisa, em particular na formação de profissionais para a prática clínica em saúde mental. Os Cadernos do IPUB estão aí para testemunhar a riqueza da sua produção científica, ainda que marcado pelas tensões entre grupos antagônicos, qual seja o das neurociências e o do campo da atenção psicossocial. Em Belo Horizonte, a psiquiatra e psicanalista Ana Marta Lobosque - autora de "Experiências da Loucura", "Clínica Antimanicomial" e "Clínica em Movimento" -, recentemente assumiu duas importantes tarefas: uma como Coordenadora do Grupo de Produção Temática em Saúde Mental da Escola
de Saúde Pública de Minas Gerais-ESP.MG, e outra como Coordenadora da Residência
Multiprofissional ESP-MG/ Secretaria Municipal de Betim. Porto Alegre tem inciativas semelhantes. Convenhamos, são ilhas de excelência no cenário brasileiro, carente de uma ação mais ampla em todo território nacional. Infelizes aqueles que acreditam que a nova rede de atenção diária à saúde mental seja capaz de funcionar a contento com profissionais sem a formação exigida pelo novo paradigma. Não basta contratar psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais e terapeutas ocupacionais que nunca ouviram falar, nem tiveram suas práticas fundamentadas no novo modelo de atenção psicossocial. Sem formação, eles costumam reproduzir o mesmo de sempre. Foi pensando nisso que quando Coordenador Estadual de Saúde Mental (2003-2007) propus a criação de uma residência médica em psiquiatria vinculada ao IPUB. A iniciativa foi solenemente ignorada pela Coordneação Nacional de Saúde Mental, o que não me impediu de criá-la. Essa prioridade decorria do fato que, enquanto em Manaus a Fiocruz cuidava de oferecer especialização multiprofissional em Saúde Mental, o quadro de psiquiatras constituia-se num desafio tal era a escassez desse tipo de profissional. Por essas e por outras, Oswaldo di Loreto tem suas razões. O desafio da formação é tarefa urgente. Enquanto isso, o Amazonas poderia contar com a experiência dos bons supervisores disponiveis pelo Ministério da Saúde. No momento estamos sem a presença dessa obrigatória supervisão.
Oswald di Loreto, criador da Comunidade Terapêutica Enfance, é o primeiro à esquerda.
Entrevista: Oswaldo Dante Milton di Loreto
Sociedade injusta produz loucura
Di Loreto se define como uma testemunha ocular
da história psi in- fantil do Brasil das últimas décadas. Sua auto-
imagem, no entanto, embora tenha um quê de verdade, é acanhada. Ele não
se limitou a assistir aos acontecimentos. Inquieto e idealista,
participou ativamente dos movimentos que tiveram a ousadia de transferir
a psicologia, que "estava boazinha, adaptada aos cultos, ricos e
ociosos, para o rude proletariado".
Foi assim que no fim da década de 60 criou, com
um grupo de outros profissionais, uma das primeiras comunidades
terapêuticas do Brasil, a Enfance, onde desenvolveram pesquisas e
chegaram a um modelo de atendimento que desmente a velha máxima segundo a
qual os hospitais psiquiátricos devem ser, como a loucura, locais
depositários de todo o horror da vida humana. A prática humanizada, no
entanto, no seu entendimento, não deve ser confundida com a psicologia
paternalista, tão enganadora quanto aquela que prega o horror como única
possibilidade de trabalhar com a loucura.
Hoje, "di", como tornou-se conhecido à medida
que "fui me reduzindo à minha insignificância", viaja por todo o Brasil,
ensinando os jovens trabalhadores psis. Leva na bagagem a experiência
que comprovou existir outra porta de entrada para o tratamento de
portadores de sofrimento mental, além dos fármacos e da psicoterapia.
Porta esta que abriu para o Jornal do CRP em sua clínica, no bairro
paulista do Brooklin.
CRP - O senhor se formou em medicina
numa época em que havia muito poucos cursos no Brasil, em 1954. Como foi
sua formação e sua chegada à psiquiatria?
Di Loreto - Estudei na Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo, no Araçá, em Pinheiros. Naquela
época, a formação médica era excepcionalmente boa. A Faculdade e o
Hospital das Clínicas eram pensados e postos a funcionar a serviço do
aprendizado. No último ano fazíamos o curso das especialidades. Entre
elas, a psiquiatria. Não existia residência. Os momentos de contato com a
prática eram feitos utilizando o Hospital do Juqueri e o antigo
Departamento de Assistência a Psicopatas (DAP), cuja versão moderna é a
Coordenadoria de Saúde Mental.
O curso de psiquiatria era quadrado, limitado e
unicamente descritivo. Era proibido pensar. Dessa forma, quando saí da
faculdade, eu era um ótimo médico, mas não sabia nada de psiquiatria.
Mas dei sorte; no ano em que me formei, em 1954, inaugurou-se a Clínica
Psiquiátrica anexa ao Hospital das Clínicas, da qual tornei-me o
primeiro e único residente da época. Mas, nessa clínica, encontrei uma
coisa imensamente pobre em termos de se conseguir pensar a loucura e não
apenas descrevê-la. As condições de trabalho no início da residência
eram humanas e boas. Mas, ainda assim, resisti menos de um ano e meio
(era para ficar dois anos) e fui trabalhar no único lugar que dava
emprego na época: o Juqueri. Não estava destruída em mim uma certa
idealização em que o jovem é especialista.
Mas, quando cheguei no Juqueri, o hospital
havia se tornado um grande depósito, não tinha nada a ver com a herança
de Franco da Rocha. Para se ter uma idéia, havia 18 mil doentes. Nessa
época, o Juqueri era inteiramente tocado por médicos e profissionais de
enfermagem. Mas o que se chamava de enfermeiro era o atendente. A
enfermagem alto padrão mal começava a existir no Brasil. É preciso
lembrar que nessa época, em 1955, a Constituição brasileira ainda
resguardava direito exclusivo aos médicos para tratar diretamente dos
doentes mentais. Não havia ainda as jovens profissões clínicas:
psicologia, terapia ocupacional, fonoaudiologia etc. As "equipes" eram
pobres, por serem unidisciplinares: médico + médico + médico. O que
tornava os médicos responsáveis por um saber "científico" que, na
verdade, não tinham. Todos mentiam. Alguém tinha que pagar a fatura por
tanta mentira. Evidentemente, eram os doentes, que não recebiam
tratamentos "científicos" e eram abandonados do ponto de vista humano.
As atuais tendências psiquiátricas de "conviver" com a loucura e não
"tratá-la" são, antes de mais nada, realísticas, verdadeiras. E
continuam sendo verdadeiras em 1997.
De forma que lá fui eu tomar posse no meu
primeiro emprego de médico do Juqueri. Assinei o livro de posse e o
diretor foi me mostrar a minha cota de doentes. Levei um susto: 1.200.
Não é que o governo do Estado não quisesse colocar mais médicos,
simplesmente não tinha. Fazer psiquiatria naquele tempo significava
ficar carimbado, para o resto da vida, que você era um pouco deficiente.
Portanto, nós éramos 12 ou 13 médicos, tudo o que se conseguia
arregimentar.
Foi assim que sobrou para mim a cota de 1.200.
Eu deveria fazer o trabalho nos pavilhões ou colônias com dois ou três
enfermeiros, geralmente pessoas que tinham sido guindadas à condição de
enfermeiro. Acresce que os recursos psis da época também eram
ultra-rudimentares. Havia um esquizofrênico na sua frente, o que se
podia fazer, além de descrevê-lo? E, ao final, o que se podia escolher?
Eletrochoque, insulinoterapia ou a associação dos dois. Ainda não
existiam os fármacos, que, mais tarde, vieram dar uma boa mão na prática
psi.
E a condição humana era degradada ao último
grau. Entre os meus 1.200 pacientes, mais de mil não usavam roupa há
décadas. E viviam jogados por ali. Isso me pegou com 24 anos de idade.
Após uns poucos meses, percebi que quem entrava no Juqueri ficava 3
meses ou 30 anos. Decidi ir embora poucos meses depois da minha entrada,
no dia em que, junto com um dos médicos que já estava lá há 30 anos,
fui fazer um atendimento num dos pavilhões dos mais regredidos. Lá havia
centenas de pacientes nus, jogados pelo chão, cobertos de moscas.
Andávamos por cima deles, atravessando o pátio e, onde passávamos, fazia
aquele poeirão de moscas. Fui embora porque olhei para esse meu colega e
percebi que aquilo era a coisa mais tranqüila e natural da vida dele.
Ele perdera a capacidade não só de se comover, mas de perceber. Percebi
então que, um dia, acabaria ficando igual a ele. Afinal, somos feitos da
mesma massa humana. Ele não era maldoso, mas precisava se defender da
angústia daquela condição de trabalho. Voltei a trabalhar no Juqueri
anos depois, já mais experiente e capaz.
CRP - E na psiquiatria, por que a escolha pela psiquiatria infantil?
Di Loreto - Quando saí do Juqueri, caí
num grande vazio profissional. Para não me sentir demasiadamente
desesperado, ia fazer hora no Hospital das Clínicas que era a minha
casa, os amigos ficavam por lá. Um dia encontrei a Dulce Vieira, uma
colega de classe, a segunda que tinha escolhido fazer psiquiatria da
minha turma. E ela então me contou que estava assustada, porque seu
sogro, Pedro Alcântara, que era professor do Serviço de Pediatria das
Clínicas, queria montar o Serviço de Psiquiatria Infantil, mas não o
fazia por falta de personagens. Não havia psiquiatras da infância no
Brasil. Ele havia solicitado que ela fizesse isso. Ela então disse:
"Você vai viver isso comigo". Eu nem sabia que havia distúrbio psíquico
da criança. Mas aceitei. Foi assim, ao acaso, que cheguei à psiquiatria
infantil. Cheguei por acaso, mas me encontrei e me realizei nela. Isso é
o que importa, não a motivação inicial que se tem para as coisas.
Nós não sabíamos nada do assunto. Aprendemos
tudo em termos de angústia e ansiedades. Os livros nos passaram a dica
de que, para trabalhar com criança, se trabalhava com brinquedo. Aí,
entupimos a sala que tinha lá com brinquedos. Eram os inícios da
psiquiatria infantil aqui por São Paulo. Os heróicos tempos. Até que o
ambulatório começou a encaminhar pacientes. Um dia tivemos que dar a
partida e chegou o meu primeiro paciente. Ele estava mais aterrorizado
ainda do que eu. Ficamos os dois na sala. Tive um desdobramento de
consciência. Quando "acordei" estava no corredor da neuropediatria e um
colega mais velho estava me chacoalhando e dizia: "Di Loreto, o que está
acontecendo, você está com um ar estranho". Aí "acordei" e lembrei-me
de que havia deixado o paciente na sala. Veja o nível de ansiedade
profissional em que se vivia. Ter vivido esses níveis bárbaros de
ansiedade nos meus inícios é o que me vocaciona, hoje, para o ensino a
jovens profissionais psis. Os psis recém-formados de hoje saem das
faculdades tão "perdidos" como eu, há 43 anos.
CRP - Nessa época, que crianças eram encaminhadas à psiquiatria?
Di Loreto - Era mais ou menos o que você
tem hoje num consultório, enviados por uma triagem médica, pediátrica.
Eram enviadas basicamente por distúrbios de conduta. Vinham aquelas
descrições de que a criança não dormia, não comia, fazia xixi na cama,
cocô nas calças, não obedecia, não ia bem na escola. Não existia muito a
criança perversa de hoje. E não havia o problema das drogas. Havia, na
época, muitas neuroses. A descrição das psicoses na infância e do
autismo começava a chegar ao Brasil.
CRP - E na realidade de hoje, como o senhor definiria a criança?
Di Loreto - Você tem, hoje, os filhos da
classe média e da aristocracia econômica que são parecidos com as
crianças daquela época. Acrescido talvez de um fato novo, as crianças de
hoje têm muito mais medo. Medo de andar pela rua, de assalto. Naquele
tempo as crianças também gostavam de ter um tênis bonito. Só que depois
de atormentar o pai e ganhar o tênis não tinham medo de que servisse de
veículo para que ele fosse assaltado e, quem sabe, morto. Os objetos não
vinham tão impregnados desse elemento mental, o medo. Se voltarmos ao
Serviço de Psiquiatria Infantil do Hospital das Clínicas onde se atendia
o povão miserável das favelas, hoje, encontraremos uma enorme
predominância de violência, de perversidade. Ou seja, hoje há o jogo: a
violência e o seu par inseparável, o medo.
O que mudou? Mudaram os neurônios da cabeça das
crianças? Não, eles continuam iguais; o potencial com que nascemos é
igual. O problema é o mundo aí fora. Vivemos numa sociedade cuja
distribuição é ferradamente desigual, não é assim? A mente é o retrato
do social internalizado no biológico, nos neurônios, no nosso cérebro.
Se há coisa que deforma a realidade
profissional da nossa época é falar em psicologia no singular. De que
psicologia se está falando? Há uma psicologia peculiar à classe média
alta e à aristocracia, em que os meios, o instrumental utilizado, são os
mais evoluídos e racionais possíveis. Mas são longos e caros. E há a
psicologia do rude proletariado, da pobreza, em que se usam arremedos
desse mesmo instrumental.
E aí entram as questões de mercado. Quem pode
consumir isso? Eu criei um slogan irritante, mas que a prática
demonstrou ser verdadeiro: esse nível de psicologia só é acessível aos
cultos, ricos e ociosos. Porque exige cultura suficiente e a dimensão
psicológica do homem ainda viva, ainda não massacrada pelo dia-a-dia,
além da possibilidade de dispor do próprio tempo.
Recebo mães paupérrimas, que moram para lá de
deus-me-livre, e que por alguma mágica ainda conversam comigo sobre o
filho dizendo que ele está triste, ou alegre, ou que tem inveja, ciúme
do irmão mais novo. Quer dizer, têm conservada essa dimensão
psicológica. Mas há um grande número de pessoas que foram massacradas
pela rudeza da vida. Muitas crianças, aos 6 anos de idade, já estão com
um grau de "carimbo" disso na mente que já não tem mais jeito.
CRP - E para esses não há alternativa?
Di Loreto - Inexoravelmente, essa
psicologia evoluída só pode ser consumida por cultos, ricos e ociosos.
Às vezes me perguntam e eu mesmo me pergunto a seguinte questão: "Você,
que pretende e exibe até a condição de testemunha ocular da história psi
infantil nesses Brasis, o que escolhe como sendo o acontecimento que
mais marcou os destinos e influenciou o trabalho psi nos últimos
tempos?" Acredito que o fator que mais marcou os destinos da psicologia
no Brasil foi a ousadia de transferir a psicologia, que estava boazinha,
adaptada aos cultos, ricos e ociosos, para o rude proletariado. Costumo
dizer que criamos um sistema de pregar com o serrote ou serrar com o
martelo. O objetivo não combina com a ferramenta.
CRP - Mas foi justamente esse o desafio
que o senhor assumiu quando partiu, na década de 60, para a Enfance.
Como foi a experiência concreta nessa comunidade terapêutica?
Di Loreto - Esse desafio teve motivações
gerais e motivações mais específicas e menores. A Enfance aconteceu num
tempo em que era permitido sonhar com um mundo mais decente. A idéia do
socialismo estava presente na cabeça de todos os bons caráter do Brasil
da época.
Quando iniciei minha vida profissional, quanto
mais evoluía, mais eu via que a prática psi alijava o profissional da
visão social do homem e o colocava em contato com uma visão individual.
Quando recebo um cliente cuja conduta é agressiva e hostil, como
trabalhador psi não tenho instrumental que me permita alterar o fato de
ele morar numa favela, de seu pai ser alcoólatra e espancá-lo ou à sua
mãe etc. Não tenho ferramental para fazer alguma coisa contra tudo isso.
Então o que me resta? Ver o que ele tem na mente e agir de forma a
mudar alguma coisa dessas inscrições mentais. O campo de trabalho fica
extremamente intrapsíquico. Dessa forma, quem tem a dimensão social bem
desenvolvida, depois de passar longo tempo verificando o que tem dentro
da cabecinha dessa criança, começa a se perguntar por essa dimensão
social.
Um dos desafios da Enfance era irmos a lugares
mais largos, do ponto de vista social, do que permite o trabalho em
consultório. Criamos uma pequena sociedade substituta à família e um
campo de investigação sobre se a vida numa sociedade modificada consegue
mudar a cabeça. Criamos um lugar geográfico para onde os pacientes
transferissem a vida inteira e não apenas a mente, em duas horas
semanais.
Quando jovem e idealista, eu perguntava aos
médicos mais velhos por que o hospital psiquiátrico era aquele horror. E
eles indefectivelmente respondiam que "a loucura é assim". Eu escutava
aquilo e me perguntava: "Será que necessariamente o hospital
psiquiátrico é esse horror?" Havia em mim o desejo de viver uma
experiência em que se pudesse conduzir as coisas para a pesquisa. Na
Enfance a assistência era uma espécie de decorrência natural do trabalho
prático. O principal era responder à pergunta: será que necessariamente
o hospital psiquiátrico é um horror?
E aí fomos para Diadema. Demos sorte e
conseguimos formar uma preciosidade: uma equipe coesa, afinada,
doutrinariamente organizada como grupo, com liderança, com comunicação
interna.
E fomos para constatar aquilo que a rebeldia
juvenil apontava. E constatamos. Na maioria dos pacientes esta condição
de vida regredida a ponto de perder características humanas não tem nada
a ver com a loucura. É lógico que há pacientes que têm o impulso
regressivo maior do que o de outros, mas, mesmo nesses casos, se você
investir humanamente não viram bicho.
Na Enfance não partimos para uma experiência
psicológica, o que nos levaria a reproduzir um monte de consultorinhos
lá dentro. Partimos para uma experiência social, microssocial. Não se
pode reproduzir a sociedade dentro da instituição porque dessa forma não
se modifica nada. É preciso que os benefícios e as rudezas existentes
no mundo sejam repartidos de forma razoavelmente igualitária. Não me
refiro a uma divisão linearmente igual, que caracterizaria o socialismo
utópico. E é preciso considerar cada item da oganização social. Por
exemplo, não se deve mentir sobre a realidade, mas possibilitar um viver
realístico em todos os aspectos. Se não tem sobremesa hoje porque não
se tem dinheiro, é preciso que isso seja dito. Da mesma forma, os
aspectos mais psicológicos devem ser tratados com realismo. Um paciente
agressivo tem que saber que é pesado conviver com sua agressividade,
embora isso não me faça abandoná-lo. Ou seja, é preciso praticar uma
psicologia do real e construir uma realidade hospitalar microssocial em
que se procura dar sentido à vida.
A loucura é um acontecimento psicológico, mas
tem sua origem principal no social. Tanto microssocial, como a família,
como macrossocial. A loucura, sob suas múltiplas formas, como a
violência indiscriminada, está intimamente ligada à organização social.
Se se quer diminuir a loucura, é indispensável diminuir os pontos ruins,
injustos, mentirosos, irrealísticos, alienantes das organizações
sociais, micro e macro. Não é humanamente factível uma boa sociedade
sendo o homem como é. O que vale é o esforço em torná-la melhor. É a
disposição de melhorá-la que diminui a alienação, isto é, a loucura.
Não conheço coisa mais iníqua, enganadora e
fabricadora de loucura do que a doutrina de "deixar o bolo crescer para
depois reparti-lo", tão citada e usada pela direita brasileira. O bolo
nunca fica de bom tamanho e nunca é repartido. Isso é o que fazíamos na
Comunidade Enfance: nos esforçamos o tempo todo para criar uma boa
sociedade. Com êxitos maiores ou menores, mas sempre lutando para isso.
Isso é o que torna uma sociedade terapêutica. Para todos, pacientes e
trabalhadores.
Dessa forma, conviver na Enfance era procurar
dar sentido ao viver a vida. E o que quer dizer isso? Nós não levantamos
de manhã só porque é hora de levantar, mas porque temos expectativas,
compromissos. Então, aprontávamos mil coisas. Realizávamos torneios de
esporte, de teatro, de "fazer coisas". Conseguíamos programas muito
inteligentes, do tipo copiar a vida comum. Por exemplo, em que os
brasileiros pensam, seis meses antes e seis meses depois da copa do
mundo? Na copa do mundo. As nossas crianças, não é porque eram
carimbadas de louquinhas, que eram diferentes disso. Portanto, havia aí
um manancial infinito a ser explorado. O Brasil ia jogar, por exemplo,
com a Romênia. Saíamos atrás do que era a Romênia nos atlas, olhávamos
no mapa. Basta dar o impulso inicial que elas fazem o resto. Porque é
muito estimulante. Não é à toa que em qualquer hospital psiquiátrico o
paciente que levanta de manhã e não tem a expectativa de que vá
acontecer alguma coisa vai ficando regredido mesmo.
Nós tínhamos que descobrir outros caminhos e
descobrimos. Descobrimos que aqueles que ainda não têm a mente carimbada
a ferro e fogo com a idéia de que gente não presta mesmo, se tiverem a
oportunidade de viver um tempo razoável, 1 ano, 10 meses, numa pequena
sociedade que não reproduza aquela de onde ele é originário, portanto
uma sociedade artificialmente modificada, não viram bicho. E insisto,
tem muito paciente que aos 6 anos de idade já tem esse carimbo
definitivo na cabeça.
CRP - Mas como era a relação dos técnicos com os pais dessas crianças? Como vocês fechavam essa cadeia de relações?
Di Loreto - Na Enfance a internação era
integral. Eles dormiam lá. Tanto que o nosso medo era que eles ficassem
tão ajustados ao hospital que ficassem desajustados cá fora. Então havia
um "ato institucional". Sexta-feira à tarde as famílias vinham
buscá-los para passar o final de semana até o domingo de tarde. Nesse
dia, reuníamos pais e mães em subgrupinhos e conversávamos com eles para
tentar fazê-los entender os mecanismos pelos quais eles estavam
enlouquecendo os filhos. Com alguns isso era suficiente, a origem da
doença familiar era pequena e as pessoas eram muito plásticas,
sensíveis. Esses entendiam e conseguiam mobilizar modificações.
Desgraçadamente, devo testemunhar que é a minoria. Relações familiares
tendem a ser algo muito estável e profundamente estabilizado.
Ainda assim continuávamos nos esforçando.
Chamávamos as famílias além da sexta-feira para entrevistas, sessões
durante a semana etc. Quanto mais você investe, mais aparece a
probabilidade de êxito e o limite a partir do qual o outro é
imodificável. E há aquelas famílias imodificáveis. Quando isso
acontecia, investíamos apenas na criança. A expectativa era de que a
criança, entendendo os mecanismos familiares que a estavam
enlouquecendo, pudesse se defender melhor. E aí acontece de tudo. Havia
crianças que percebiam isso com nitidez e tinham capacidade para começar
a tirar mãe e pai "de letra". Havia casos em que a criança aprendia,
mas o peso das patogenias era tão forte que ela não agüentava. E havia
outros em relação aos quais nós até brincávamos que "só se vivessem o
resto da vida na comunidade". Porque ali não eram nem agressivos nem
passivos. Eram cooperativos, mas iam para casa, caíam no núcleo
enlouquecedor e voltavam modificados. Segunda-feira era um dia em que
eles vinham muito modificados.
CRP - A Enfance funcionou de 1968 a
1987, justamente no período da ditadura militar. Ela teve uma dimensão
mais ampla do que a proposta de um serviço técnico. O que esse resultado
tem a ver com o contexto?
Di Loreto - Quando começamos a
experiência, tínhamos uma coisa que é sempre muito bom ter: um inimigo
externo. E principalmente se esse inimigo for bem delimitado. Funcionou
como uma espécie de "reforço" o fato de estar num campo político que nos
colocava numa posição não de revolucionários - porque não estávamos em
nenhuma Sierra Maestra, estávamos numa firma estabelecida - , mas ao
menos de oposição a tudo aquilo que estava acontecendo. Fazíamos
oposição "no varejo", no microssocial. Quanto mais a sociedade ia
ficando injusta, perseguidora, geradora de medos e de todas as demais
porcarias, mais nos sentíamos impulsionados a fazer uma pequena
sociedade hospitalar justa. Na medida em que a coisa começou a ficar
ambígua - lembram-se das ambigüidades do Figueiredo do tipo "eu prendo e
arrebento quem não quiser a democracia"? -, nós também começamos a
ficar confusos.
Mas não foi isso que derrubou a comunidade.
Teríamos sido capazes de viver com essa ambigüidade por muito tempo. O
que fez a comunidade encerrar, foi que nós, muito envolvidos no projeto
de pesquisa, descuidávamos muito da realidade, de precisar ganhar
dinheiro, das contas no final do mês. Vivíamos uma espécie de delírio de
laboratório em relação às exigências mínimas da vida. E nisso fomos nos
afundando. As condições não eram muito favorecedoras.
Na Enfance, fazíamos a vida enxutíssima,
igualitária, não havia ala particular, não havia ala de indigente. A
regra era outra. Todos dormiam nos mesmos quartos. E, às famílias ricas,
avisávamos isso, assim como avisávamos que o que levassem para os
filhos seria dividido entre todos. Não é preciso dizer que isso afastou
toda a classe média e a aristocracia e começamos a trabalhar mais e mais
com convênios que não pagavam quase nada. Além disso, fazíamos projetos
que afrontavam a nossa realidade, mas que faziam parte da fantasia de
uma pesquisa. Por exemplo, chegamos a ter uma residência formal para
transformar jovens psiquiatras em psiquiatras comunitários. Ou seja, de
um lado não tínhamos dinheiro para pagar o padeiro e de outro ficávamos
fazendo programas de ensino, como se fôssemos uma universidade. Parece
que tínhamos uma idéia de que aquilo não poderia durar muito tempo. Era
idealizado demais.
CRP - O senhor concluiu que é inviável manter um projeto desses na realidade macrossocial que temos?
Di Loreto - Exatamente. O microssocial fica muito discrepante no macrossocial.
CRP - Mas a Enfance cumpriu a função a
que se propunha, de pesquisa, e respondeu à questão sobre se os
hospitais necessariamente devem ser tão desumanos.
Di Loreto - Respondeu, sem dúvida. Ficou
demonstrado que não necessariamente o hospital psiquiátrico precisa ser
o horror que é. Não ficamos apenas no plano da retórica. Pesquisamos e
chegamos a uma ideologia e a uma prática. Depois de alguns anos, eu era
capaz, como fui muitas vezes, de dizer qual é a receita de se fazer um
hospital psiquiátrico humanizado, dinâmico, que trate os loucos e onde
eles não se tornam regredidos.
Além disso, a Enfance deixou demonstrado acima
de qualquer dúvida razoável que há uma terceira porta de entrada para
trabalhar com a doença mental, além das únicas que a psicologia e a
psiquiatria usam ainda hoje, que são a porta de entrada biológica, os
fármacos, e a porta de entrada psicológica, as psicoterapias. Deixamos
demonstrado que há uma porta de entrada social. Se você cria uma pequena
sociedade modificada, com características sociais justas, equânimes,
verdadeiras, ligadas à realidade, que procura cultivar relações humanas
não tóxicas etc., isso tem o mesmo efeito modificador sobre a cabeça do
paciente que têm as portas de entrada biológica ou psicológica.
CRP - Depois de chegar a essas conclusões, como o senhor avalia o movimento pela luta antimanicomial?
Di Loreto - Eu tenho sentimentos "esquizofrênicos" em relação à luta antimanicomial e assemelhados. Tenho
muito respeito e admiração por essas pessoas que saíram ativamente para
essas lutas. Sem eles, teríamos ficado no plano retórico de estudar não
sei o quê e continuaríamos do mesmo jeito. Eles saíram para a luta. E
houve mudanças significativas. Hoje o que se interna é um décimo ou um
vigésimo do que se internava quando eu comecei a profissão.
No entanto, não tenho a mesma admiração por
eles hoje. Porque esses movimentos não mudaram o seu alvo à medida que
foram tendo ganhos. E o alvo a que me refiro é produzir conhecimentos
teóricos e práticos sobre o que colocar no lugar do hospital
psiquiátrico destruído, da instituição negada. Destruímos o hospital,
como se isso acabasse com a loucura. Isso não é verdadeiro. Apenas criou
uma nova tarefa: o que colocar no lugar? O campeão da instituição
psiquiátrica negada, Franco Basaglia, tinha isso muito claro na sua
mente. Os hospitais-dia são muito complexos. Conseguir que se tornem
realmente humanizados, dinâmicos e terapêuticos implica a obtenção de
conhecimentos, de técnicas e habilidades imensas. O velho hospício era
pobre e simples. As novas instituições psis sendo multidisciplinares são
complexas. Harmonizar as gigantescas rivalidades e invejas entre os
profissionais não tem se mostrado tarefa fácil. Ainda não aprendemos a
trabalhar juntos. Tornar o ambulatório psi eficiente não é fácil.
Por isso eu digo que mantenho o respeito e a
admiração integral pelo que foi conquistado. Eu não saí para essa luta e
não faço jus aos méritos em relação a esses ganhos. Participo mais do
segundo pedaço, que é fornecer idéias e práticas sobre o que colocar no
lugar. Há um aspecto sobre o qual todos nós podemos nos enganar com
facilidade na luta antimanicomial, que é o seguinte: não é fácil
enxergar que tendo sido mantido por séculos todo o atendimento
psiquiátrico praticamente centralizado dentro do hospital, no momento em
que essa estrutura foi implodida, toda a rede de necessidades começou a
aparecer. Toda a rede de atendimento estava disfarçada, parecia que não
existia porque estava embutida dentro do hospital. Assim, quando o
hospital implodiu, nós começamos a nos ver às voltas com todas as
necessidades. Essa luta implica agora uma outra etapa, a de produzir
pesquisas e conhecimentos.
CRP - Qual a sua opinião sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente? Nossa criança cabe dentro dessa lei?
Di Loreto - Se estiver num surto
delirante e quiser idealizar sem nenhum compromisso com a realidade,
você fabrica um Estatuto da Criança e do Adolescente mais ou menos igual
ao que está aí. Agora, no momento em que não estiver mais delirando,
você verá que este Estatuto não reproduz em nada o que está acontecendo
na realidade e freqüentemente até dificulta, porque é fruto de
idealizações. Eu vejo, por exemplo, o Judiciário ser profundamente
pressionado a "tomar medidas". Aí encaminham as crianças para esses
serviços sem nenhum recurso. Legalmente elas estão em liberdade "assistida", mas na maior parte dos casos isso é uma grande mentira.
Onde estão os recursos? As condições macrossociais brasileiras, sociais,
políticas e econômicas, que, é lógico, influenciam as microssociais,
família, escola, hospital, são tais que produzem loucura em escala
industrial. Mas os recursos técnicos que temos são de escala
laboratorial.
Quer escala mais laboratorial do que pegar um a
um e investir muito tempo e muito dinheiro? Então os recursos que se
jogam em escala laboratorial, frente às necessidades em escala
industrial, vão para o ralo, desaparecem. Esse é o grande problema.
Hoje, se pegarmos todo o PIB do Brasil e destiná-lo durante cinco anos
para a recuperação das pessoas loucas, agindo em escala laboratorial,
como seria necessário fazer, não seria suficiente. O caminho viável para
diminuir a loucura são as modificações macrossociais, nos quadros
político e econômico.
CRP - Tomando como base esse seu raciocínio, o que é ser um trabalhador psi hoje?
Di Loreto - Eu penso que é difícil ser
um trabalhador psi hoje. Os trabalhadores psis são levados, pelas
condições de realidade social, a trabalhar com as duas pontas da escala
sócio-econômica. A infinita pobreza e a infinita riqueza. E é pavoroso o
que ocorre com a mente das pessoas nessas duas pontas. Nisso, eles
curiosa e ironicamente tendem a funcionar como se fossem iguais. Eles se
reproduzem pelo contraste. A infinita pobreza leva, em relação à
infinita riqueza, a desvantagem de que as coisas se apresentam mais
feias. Na infinita riqueza, tem um cenário mais bonitinho. O miolo de
onde sai a origem dos distúrbios psíquicos é o mesmo. Mas tem hora que o
cenário é importante.
E como o Brasil não tem tanta aristocracia
econômica assim, e a que tem já está sendo atendida pelos profissionais
velhos e mais conhecidos, ser hoje um jovem profissional psi te coloca
quase que obrigatoriamente na condição de trabalhar com a infinita
pobreza, nesses ambulatórios da prefeitura, do Estado. Ou seja o que
espera o jovem mal preparado, saído de uma faculdade enganosa e
enganadora, que não lhe deu o menor recurso prático de formação? Depois
de batalhar muito, o que o espera é um emprego na prefeitura. Aí, ele é
jogado num desses ambulatórios para onde vão as grandes desgraças. E
voltamos à questão de que os recursos são poucos, caros, longos,
complexos e difíceis.
E o que ele vai encontrar de possibilidade é
serrar com o martelo e pregar com o serrote. Ou seja, ele vai ficar
manejando instrumentos longos, complexos, difíceis e caros para uma
clientela que não tem a menor condição de corresponder a isso. São
pessoas com necessidades imediatas, sem recursos para todas essas
exigências de vir ao ambulatório toda semana, freqüentemente
embrutecidas pela dureza da vida, embrutecidas psicologicamente. Então
fica o desencontro e as pessoas saem, desesperadas, atrás de recursos
mais rápidos, mais fáceis e que, se não são eficientes, ao menos se
apresentam como tal. E vão cair nas terapias de vidas passadas, nos
tarôs ou nos remédios, que são rápidos, fáceis e baratos.
Essa é a realidade que vem se acentuando depois
que se perdeu a esperança de que pode existir um mundo melhor. Quando
eu era jovem, não importava se esse mundo melhor existia ou não, nós
corríamos atrás dele, portanto, havia uma causa que dava sentido à vida.
Essa esperança me alimentou por décadas. Mas a tal da modernidade
deixou estabelecido, principalmente para o jovem, que o mundo é dos
espertos, que tem que sair batendo para sobreviver e não tem utopia para
sonhar. Eu não queria ser um jovem psi hoje.
Fonte: Conselho Regional de Psicologia SP
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