PICICA: "Na virada para os anos 1970, o operaísmo se ramificou em duas
trajetórias. De um lado, o grupo mais ligado a Mario Tronti passou a
adotar o conceito de “autonomia do político” em relação à “autonomia de
classe”, ao mesmo tempo em que apostou na criação de um sindicato de
“tipo novo”, e se reintegrou às fileiras do PCI. Do outro lado4,
o grupo com Antonio Negri e Sérgio Bologna rompeu de vez com a esquerda
“oficial”, afirmando a autonomia da classe operária diante de qualquer
mediação por parte de estado, partidos, sindicatos ou outras instâncias
de representação. Para eles, o movimento de transformação deve assumir a
perspectiva diretamente de classe, contribuindo para a auto-organização
dos trabalhadores, a partir da realidade concreta do trabalho e da
exploração, menos do que depender de mediações e interpretações
externas. Pontuando o surgimento da vertente autonomista, Giuseppe Cocco
explica: “Após
mais de dez anos de contribuições teóricas inovadoras — crítica à
tradição do movimento operário ‘oficial’, às noções gramscianas de
‘bloco histórico’ e ‘intelectual orgânico’ — e de con ricerca, isto é, de pesquisas diretamente envolvidas com a construção de instâncias organizacionais dos novos sujeitos…”5.
Por esse motivo, o último grupo foi sucessivamente repudiado por
organismos da esquerda mais representativa e seus intelectuais
institucionais."
A copesquisa no operaísmo autonomista
por Bruno Cava – Universidade Nômade
- O operaísmo
Os
operaístas são um dos mais produtivos grupos militantes e intelectuais
de perspectiva marxista. Mais do que uma escola do pensamento,
elaboraram uma prática ativista original, junto das mobilizações e lutas
políticas de seu campo de atuação, conjugando densidade teórica e
efetividade. Este artigo se propõe a investigar, preliminarmente,
aspectos da metodologia desse movimento político e teórico cuja
história, relativamente pouco difundida, ainda está sendo escrita.
Oriundo da Itália1, inicialmente reunido ao redor das revistas Quaderni Rossi2e Classe Operaia,
o operaísmo se desenvolveu continuamente do início dos anos 1960 até o
limiar dos anos 1980, em constante mutação a partir da análise das
circunstâncias históricas, oportunidades políticas e possibilidades de
composição, abertas por suas hipóteses para a transformação social e
seus encontros militantes. No começo, era formado por dissidentes do
Partido Socialista Italiano (PSI) e do Partido Comunista Italiano (PCI),
decididos a realizar um retorno à Marx. A renovação do marxismo pelos
operaístas teve por primeiro objetivo desenvolver ferramentas para lidar
com os desafios revolucionários, no contexto da intensiva
industrialização fordista da Itália do pós-guerra. Nesse escopo, eles
propuseram radicalizar o marxismo professado pela esquerda oficial nos
partidos e sindicatos, cuja atuação fora diagnosticada pelos operaístas
como já funcionalmente integrada à própria matriz capitalista de
dominação. Determinaram-se a estudar a realidade da fábrica italiana,
para apreender as relações de força e os dispositivos materiais de
exploração e comando capitalista (a composição orgânica do capital), bem
como sondar a composição política de classe que lhe poderia resistir e
combater. A partir daí, realizaram análises inovadoras e discussões
políticas, circulando nos movimentos sociais e se articulando aos
desejos e organizações de resistência de seu tempo, como uma autêntica
subjetividade ativista. Em síntese, para o pesquisador argentino César
Altamira, a originalidade operaísta repousa “na
alternativa teórica à ortodoxia marxista predominante nos partidos
comunistas, à teoria crítica pela Escola de Frankfurt, ao
existencialismo humanista de Jean-Paul Sartre e ao estruturalismo de
Louis Althusser.”3Além
do marco teórico, não se pode esquecer que o operaísmo não se
restringiu a fenômeno circunscrito à intelectualidade marxista. Ele
somente pode ser entendido e explicado quando também considerado uma
expressão das forças vivas do movimento dos trabalhadores em estado de
revolta, como uma cultura de resistência e um fenômeno de contrapoder de
significativa abrangência.
Na virada para os anos 1970, o operaísmo se ramificou em duas
trajetórias. De um lado, o grupo mais ligado a Mario Tronti passou a
adotar o conceito de “autonomia do político” em relação à “autonomia de
classe”, ao mesmo tempo em que apostou na criação de um sindicato de
“tipo novo”, e se reintegrou às fileiras do PCI. Do outro lado4,
o grupo com Antonio Negri e Sérgio Bologna rompeu de vez com a esquerda
“oficial”, afirmando a autonomia da classe operária diante de qualquer
mediação por parte de estado, partidos, sindicatos ou outras instâncias
de representação. Para eles, o movimento de transformação deve assumir a
perspectiva diretamente de classe, contribuindo para a auto-organização
dos trabalhadores, a partir da realidade concreta do trabalho e da
exploração, menos do que depender de mediações e interpretações
externas. Pontuando o surgimento da vertente autonomista, Giuseppe Cocco
explica: “Após
mais de dez anos de contribuições teóricas inovadoras — crítica à
tradição do movimento operário ‘oficial’, às noções gramscianas de
‘bloco histórico’ e ‘intelectual orgânico’ — e de con ricerca, isto é, de pesquisas diretamente envolvidas com a construção de instâncias organizacionais dos novos sujeitos…”5.
Por esse motivo, o último grupo foi sucessivamente repudiado por
organismos da esquerda mais representativa e seus intelectuais
institucionais.
O operaísmo é uma força política marxista que, graças à metodologia de
pesquisa e formas de atuação, conseguiu disseminar-se pelas redes de
movimento na Itália dos anos 1960 e 1970. Foi um trabalho cooperativo,
ombreado com os trabalhadores, numa frente sucessivamente redefinida com
novos sujeitos e composições sociais, à medida que emergiam e se
organizavam no mundo do trabalho vivo. Operou lado a lado com coletivos
autônomos além dos sindicatos e auto-organizações de trabalhadores, em
meio ao cotidiano, mas também a greves, marchas e ações diretas. Esteve
integrado às lutas reais, especialmente, no Outuno Quente de 1969 (o
“Maio de 68” italiano), nas “greves selvagens” de 19736 e no heterogêneo Movimento de 19777.
Em 1979, os autonomistas operaístas sofreram a repressão intensificada
por parte do aparato estatal, mediante processos, perseguições, censuras
e prisões arbitrários, na sequência do assassinato de Aldo Moro
(cometido por outro grupo, as Brigadas Vermelhas).
A repressão contou com a cumplicidade do PCI que, no final da década,
compunha uma coalizão de governo com o partido de centro-direita, a
Democracia Cristã. Seguiu-se então um período de diáspora, com o exílio
de vários pensadores e militantes por outros países. Não houve Lei da
Anistia na Itália. Passados 30 anos do desmantelamento formal da Autonomia Operária,
sua força segue pulsante não só como memória das lutas, mas também como
um desejo de resistir e reexistir, consistentemente articulado em
propostas de organização política, metodologia militante e ferramentas
de análise.
Sobre a corrente operaista-autonomista, no artigo Sobre a dita “Italian Theory”8, Matteo
Pasquinelli aponta a recente virada da atualidade acadêmica nas
universidades anglo-americanas. Se, no começo dos anos 2000, a “French Theory”,
pós-estruturalista e desconstrutivista, predominava em conferências e
cursos, concentrada em filósofos como Michel Foucault, François Lyotard,
Gilles Deleuze, Jacques Lacan, Paul Ricoeur e Jacques Rancière,
Pasquinelli anota uma reocupação desse espaço universitário por parte de
autores formados no operaísmo: Antonio Negri, Paolo Virno, Christian
Marazzi, Sandro Mezzadra, Maurizio Lazzarato e Franco Berardi. “Negri
reivindica para o operaísmo o projeto de uma ontologia constituinte,
retomando o fio do discurso onde o pensamento francês havia deixado
desejo e micropolítica.”9
A virada de interesse no interior da filosofia nas instituições de
pesquisa está relacionada à força da “ontologia italiana” para pensar as
lutas sociais e fortalecê-las, no contexto de crise globalizada do
capitalismo. A maquinaria intelectual e militante do operaísmo permite
se situar à altura dos debates filosóficos políticos de seu tempo e, ao
mesmo passo, à margem dos grandes troncos da filosofia analítica (da
linguagem) inglesa, da hermenêutica alemã (heideggeriana, de “direita”
ou de “esquerda”) e do desconstrucionismo francês (derrideano).
Em nota sugestiva, Pasquinelli sublinha o caráter materialista e antagônico da “Italian Theory”, que
não deve ser esquecido inclusive para dentro das lutas na universidade e
na produção do conhecimento, que não pode se separar completamente das
mobilizações transformadoras. O núcleo inovador do operaísmo, que não se
pode perder com a recente tendência de “academicização”,
reside no campo compartilhado da copesquisa [con-ricerca] entre
intelectuais, militantes e movimentos. A copesquisa recusa a
disciplinariedade dos saberes e a hierarquização interna à produção
social do conhecimento ou “entre sujeito e objeto da investigação” (a distinção epistemológica neokantiana). “’Con-ricerca’ significa hoje repensar, até dentro da universidade, o nó entre práxis e teoria na época da crise financeira.”10
É por não sublimar a metodologia militante, diretamente implicada no
conhecimento produzido, que o operaísmo não correrá o risco de degenerar
em mais uma teoria meramente acadêmica sobre o existente.
A con-ricerca como subjetivação das lutas
Os operaístas nomearam con-ricerca11seu
método de pesquisa militante. A copesquisa começou quanto alguns
intelectuais e militantes decidiram produzir conhecimento formando redes
transversais com a classe operária, imergindo na organização real dos trabalhadores dentro da fábrica real
de sua época. Ou seja, no interior das grandes formações industriais do
norte da Itália, no auge do fordismo, durante o período de crescimento
econômico do segundo pós-guerra (o “Milagre Italiano”). Na Itália dos
anos 196012,
esta prática se contrapunha à do “intelectual orgânico” de partido
comunista. Geralmente advindo das camadas médias e universitárias, era
formado na linha do partido e então apresentado nas fábricas, greves,
comícios e intervenções públicas, com a missão de vocalizar os
dirigentes e conscientizar a massa de trabalhadores de sua própria luta.
Na copesquisa, diversamente, com todos os considerandos e problemas
associados, se propunha a romper a verticalização ideológica da produção
do conhecimento, que acabava reproduzindo a mesma divisão hierárquica
do trabalho que o marxismo costuma criticar.
Nessa proposta, os operaístas passaram a se articular diretamente com o
“chão de fábrica” e os movimentos sociais, mediante entrevistas,
enquetes, encontros, articulação de textos e debates, sem mediações
institucionais entre uns e outros. Os primeiros envolvimentos do novo
método foram coordenados pelo operaísta Romano Alquati nas grandes
fábricas da FIAT e da Olivetti, na virada para os anos 1960. A hipótese
de pesquisa era ousada: “na
opinião dos pesquisadores, uma série de processos objetivos e
subjetivos estavam se desenrolando na FIAT, de forma a estabelecer as
bases para a ressurgência da luta de classe dentro da empresa“13.
Considerava-se que era importante compreender a relação social entre as
classes, no lugar mesmo em que ela acontece: no momento produtivo. A
partir daí, eram discutidos, junto dos operários, o funcionamento real
da empresa, as formas de cobrança e supervisão, a remuneração e a
premiação, e a organização do trabalho, bem como a mediação exercida
pelos sindicatos e centrais sindicais. De maneira que os operários, eles
mesmos, em conjunto com os pesquisadores, desenvolvessem
progressivamente um ponto de vista a respeito de sua condição, diante da maquinaria produtiva em que estavam funcionalizados.
Assim, a con ricerca
gera efeitos na organização política de classe, que por sua vez
determina o sujeito da pesquisa, uma composição combinada de vozes
“externas” e “internas” ao processo. De modo mais arejado do que aplicar
dogmaticamente categorias de alguma teoria pré-estabelecida, a con ricerca
expõe e produz ressonância sobre os comportamentos operários,
decorrentes da real inscrição da força-trabalho nos mecanismos de
exploração. Com isso, começa a perceber micro-resistências de classe,
pequenas sabotagens e recusas, disrupções e insatisfações localizadas,
pouco visíveis, mas, ainda assim correntes, e intercambiadas
discretamente entre grupos de trabalhadores. Essas micro-resistências
podem ser articuladas, potenciadas, podem ganhar momentum como força
política. Elas exprimem uma inadequação subjetiva que, com
auto-organização que a copesquisa estimula, pode adensar e espessar em
consistência e duração, a fim de enfrentar diretamente as técnicas de
gestão do trabalho e os gestores capitalistas.
Por isso, se diz que a con ricerca
é antes uma pesquisa da subjetividade, do que da lógica objetiva de
como se produz valor numa unidade produtiva de organização capitalista14.
A luta de classe acontece, essencialmente, quando há uma apropriação
subjetiva das condições de produção que o capital faz parecer como
objetivas (mas que desde o princípio dependeram da subjetividade). Isto
é, depende de um processo de subjetivação da condição de explorado, de
uma ativação dos antagonismos internos à relação do capital, que se
esforça por mediar a relação social por meio das coisas. Não há
pretensão de neutralidade. Mais do que apenas colher uma base
sociológica empírica para metas de pesquisa, acercando-se do objeto com
uma metodologia de tipo epistemológico, a con-ricerca
propõe-se a assumir inteiramente o ponto de vista de classe, adotar
abertamente a parcialidade das lutas operárias. Tudo isso para, daí,
desse conhecimento situado subjetivamente, compreender o todo, sem
perder de vista a sua importância como organização política. Se, por um
lado, ganha corpo com a experiência e a perspectiva desenvolvida pelos
trabalhadores; por outro, compartilha e faz circular os saberes e
hipóteses, contribuindo para a auto-organização do movimento, para a
geração de uma composição que, a rigor, não existia. Desta maneira,
podem ser superados muros teóricos e práticos, propiciando encontros
entre lutas paralelas e conectando pontos soltos das articulações
existentes, além de proliferar locais para os possíveis de antagonismo e
resistência. Trata-se de um processo multidirecional, work in progress,
que coordena a produção do conhecimento e ação política, para a ruptura
da condição explorada. A pesquisa não se organiza como uma espécie de
vanguardismo, que venha a considerar a classe operária “alienada” da
luta de classe e pacificada pelas seduções ou injunções do capital. Pelo
contrário, admite que o espontaneísmo das insatisfações, localizadas e
dispersas, já é um embrião da dita “consciência de classe”. “Alquati
raciocinava: se Lênin estava certo em insistir que a consciência de
classe fosse trazida de fora, estava errado em pensar que essa
consciência poderia ocorrer fora do contexto da produção mesma.”15
A copesquisa perquire pontos de antagonismo difundidos ao longo das
cadeias de organização do trabalho e assalariamento, e então busca
articulá-los na autonomia do movimento real da própria classe em
processo.
Na con-ricerca, portanto, não se pode falar propriamente numa preocupação em modificar o objeto
da pesquisa, na medida em que o operariado sequer é visto como objeto.
Não existe a distinção entre sujeito e objeto da pesquisa, devendo
avançar em permanente autocrítica (formal e material) no sentido da
mútua implicação entre lutas e teoria, no sentido de uma teoria das
lutas imanente aos problemas de autonomia, resistência e estratégias
coletivas do movimento. Isto não significa depor o rigor, mas
redimensioná-lo como resultado das interações diretas entre os muitos
agentes, enredados na produção colaborativa do conhecimento. O objetivo é
tanto conhecer para transformar, quanto transformar para conhecer. As
sínteses prático-teóricas permitem, se forem bem sucedidas, reforçar a
autovalorização do movimento, ao valorizar a capacidade de os próprios
sujeitos se envolverem em narrativas sobre si e a condição da fábrica,
que os empoderam como força política auto-organizada. Nesse contexto, a
colocação do problema, o estabelecimento das hipóteses, as referências
teóricas e a autoformação dos grupos precisam acontecer numa espécie
paradoxal de “espontaneidade estimulada”, em que os pesquisadores se
preocupam em abolir as muitas fronteiras e assimetrias e, fazer parte,
eles mesmos, do encontro entre teoria e militância, — tudo isso dentro
de uma problemática política, que também se metamorfoseia ao longo da con-ricerca.
Não se deve, de qualquer forma, mistificar a horizontalidade, como se
fosse um ponto de partida da copesquisa. A horizontalidade é ponto de
chegada, e se condiciona a um trabalho intensivo de exposição e
superação dos inúmeros desníveis, hierarquias ocultas e assimetrias,
encontrados no seio do movimento e na sua relação com os
pesquisadores-militantes.
Segundo o historiador do operaísmo (e operaísta-autonomista ele mesmo) Gigi Roggero, a copesquisa:
Ou
servia para organizar autonomamente os trabalhadores, ou então não
existia. E não havia qualquer ideal populista de horizontalidade: o
prefi xo “con”
expressava o questionamento das fronteiras entre a produção de
conhecimento e de subjetividade política, entre ciência e confl ito. Não
se tratava simplesmente do conhecimento, mas da organização de uma
resistência. Conricerca era a ciência da classe trabalhadora.16
Os Grundrisse como método
Se
a copesquisa informa um método de atuação dos pesquisadores no campo,
junto a movimentos sociais, os operaístas também elaboraram
continuamente ferramentas de caráter mais conceitual, para
operacionalizar a política das lutas. Para introduzir essa elaboração
teórica, vale, brevemente, reconstruir a trajetória heterodoxa do
marxismo apropriado pelos operaístas. Isto porque o operaísmo nunca
deixou de reivindicar uma apropriação bastante singular da obra de Marx.
A metodologia operaísta para a formulação teórica, no interior mesmo
das lutas e movimentos, se assenta em última análise sobre o método de
Marx. É um marxismo estratégica e seletivamente retrabalhado, tomando
por linhas de força a emergência de novos sujeitos das lutas e a ruptura
com o socialismo oficial das esquerdas dominantes na Europa Ocidental.
Pode-se assumir por eixo da reconstrução uma das realizações teóricas mais significativas do autonomismo operaísta. Marx além de Marx17
foi escrito em 1978 por Antonio Negri para uma série de seminários
apresentada na École Normale Supérieure, a convite de Louis Althusser.
Esse trabalho culmina as elaborações teóricas realizadas em esquema de con-ricerca
durante a década de 1970, e conquistou fortuna militante entre teóricos
radicais e movimentos. Simultaneamente, é a obra de encerramento de um
período das produções de Negri, que vai da associação com os
intelectuais das primeiras revistas operaístas dos anos 1960 até a
segunda prisão do filósofo, em 1979. Depois do que, passará a recombinar
o seu pensamento com os estudos aprofundados e criativos de Spinoza.
Marx além de Marx se compõe de nove lições sobre cadernos manuscritos de Marx impublicados em vida, os Grundrisse18. Os Grundrisse ocupam um lugar central na teoria e prática do operaísmo. É a “Bíblia do operaísmo”19. Especialmente, em termos de metodologia materialista: “A importância excepcional dos Grundrisse nas configurações do pensamento marxista está baseada no método”20. Negri sustenta a autonomia dos Grundrisse em relação a O Capital, em
vez de diminuí-lo como mero trabalho preparatório ou instrumental. O
“Marx além de Marx” do título pode, então, ser lido como o Marx dos
Grundrisse além do Marx de O Capital. Para Negri, os Grundrisse contêm
um Marx superabundante, selvagem, pleno de intuições e inquietações, que
somente em parte pôde ser vertido nos textos publicados em vida. “Os
Grundrisse foram escritos no delírio de uma inspiração poderosa, no
desespero do isolamento profundo, num momento em que a prática foi
colocada em xeque. Foram escritos febrilmente, à luz da meia noite”21. As peças mais polidas e sistemáticas que o filósofo conseguiu ver publicado foram capazes de exprimir parte do conjunto do pensamento abrangente de Marx, nunca o conjunto completo.
A manobra operaísta de resgatar os Grundrisse visa, também, a polemizar
com a ortodoxia marxista praticada pela esquerda oficial italiana. Para
Negri, esta insistia numa tomada mais objetivista e economicista da
crítica da economia política. O materialismo estava degenerando para um
tipo de determinismo, com categorias rígidas cada vez mais próximas do
dogma, o que repercutia na incapacidade de apreender e reforçar as lutas
contemporâneas, bem como na redução do espectro de sujeitos sociais que
poderiam compor e organizar a classe proletária. Ou, por outro lado,
levava a uma atitude passiva, de espera de alguma conjuntura objetiva de
crise, a partir da qual, porventura, viria a ocorrer a revolução: como
conseqüência de catástrofe econômica ou caos político. Ou, ainda,
convertia os marxistas no poder (do PCI, por exemplo) em gestores
tecnocráticos da economia capitalista, num discurso de planificação do
capital e de conciliação de classes, segundo planejamentos a partir do
estado. Os “revolucionários” se tornam mais preocupados em fazer
funcionar a máquina de um modo mais humano ou justo, do que em reforçar a
resistência operária no propósito de sabotagem e destruição do
capitalismo. A leitura objetivista deslocava o foco dos marxistas dos
processos sociais de insurgência, levando os partidos e sindicatos a
coabitar a máquina capitalista da representação e suas esferas de
negociação, planejamento e síntese. Tudo isso termina por tirar o
marxismo do foco na subversão da ordem e no poder constituinte, para
reinstalá-lo, domesticado, num gradual reformismo de poder constituído.
Com uma leitura simultaneamente rigorosa e inovadora dos Grundrisse,
Negri se decidia a atacar a neutralização “marxista” do ímpeto
revolucionário, dentro do próprio marxismo, que estava sendo reduzido a
um reformismo anódino, — quiçá ao conservadorismo puro e simples,
tendências que pairavam nas “esquerdas oficiais” dos anos 1960 e 1970, —
amiúde muito pouco alinhadas e até inimigas das mobilizações políticas
de classe de seu tempo. Os inimigos teóricos de Marx além de Marx são,
portanto, as teorias socialistas voltadas ao planejamento, à
representação, ao reformismo e à mediação de classe. Portanto, “a objetivação de categorias em O Capitalbloqueia
a ação da subjetividade revolucionária. Não seria o caso de os
Grundrisse serem um texto dedicado à subjetividade revolucionária?”22 E ainda, “Nos Grundrisse, o marxismo é uma teoria anti-econômica.”23
Nesse
sentido, o que importa às lutas sociais, — mais do que o fechamento
sistêmico de teorias econômicas ou sociológicas, — é levantar a questão “da relação entre a crise e a emergência da subjetividade revolucionária”24. Assim, “a
iminência da crise não pode se restringir simplesmente à ocasião de uma
previsão histórica; ela se torna uma síntese prático-política”25.
Isto significa que a crise não deveria ser respondida pelos marxistas
com esforços e tentativas de recuperação e profilaxia, a fim de reformar
o funcionamento global da economia. Tampouco, com algum diagnóstico
sobre as razões cíclicas ou as contradições autodestrutivas do sistema,
que não consiga ver a crise como produção dos próprios movimentos e
resistências, como ressonância da subjetividade revolucionária, mais que
defeito sistêmico objetivo. Por isso, a crise pode ser respondida com a
radicalização dela mesma, no sentido revolucionário, pelo
aprofundamento e intensificação da organização de classe.
Para o autor, mais importante do que engendrar uma sociologia do
capital, ou longas e detalhadas descrições dos dispositivos econômicos
do sistema capitalista, faz-se necessário concentrar, primeiro de tudo,
nos movimentos e lutas como produção imanente de crise, da “subjetividade revolucionária”.
Mas o que isto significa? Em primeiro lugar, implica sondar nas forças
sociais os pontos de antagonismo, os momentos determinantes, ainda em
estado de processo, semiespontâneos, mutantes, onde sucedem as
resistências e as reinvenções subjetivas, e aparecem as novas
composições do trabalho vivo (sua forma de cooperação, comunicação,
circulação, afetiva, as relações entre as esferas da produção e da
reprodução). Os conceitos precisam ser capazes de “mover a análise a cada vez em novos terrenos indeterminados, constituídos de modo que possam ser redefinidos, caracterizados.”26Em
segundo lugar, renunciar à paixão da totalidade e ao excessivo caráter
sistêmico, — bem como ao fetiche do método que o desvincula da própria
jornada, do caminhar mesmo que propõe. A análise precisa evitar esquemas
binários que não contemplem “a pluralidade e a diversidade da subjetividade”27.
Abrir-se para a prospecção de novas realidades e novas formulações no
seio mesmo dos processos sociais críticos, no interior e além da crise. A
luta de classe não pode ser enrijecida em esquemas fechados, que
paralisem o movimento vivo da criação, que permitam sejam erigidas
instâncias representativas da luta mesma. Com isso, Negri diz ser
possível “um
método materialista completamente subjetivado, totalmente aberto ao
futuro e criativo, que não pode ser confinado à totalidade dialética ou
unidade lógica.” Dinamismo,
abertura, fluidez, — e o entendimento antideterminista de que as
determinações materiais são pontos de chegada e sempre atravessadas por
conflitos, concreções precárias, instáveis, reversíveis, destrutíveis,
sujeitas à reacomodação e à requalificação das forças em disputa. Está
em pauta uma organização da autonomia da produção militante, uma
organização cumulativa das insatisfações, desejos e revoltas
espontâneas, em crise geral e efetivamente transformadora. A
subjetividade revolucionária assume um status de autonomia em relação às
condições objetivas e econômicas do processo do capital28.
Não é produzida por falhas objetivas; mas é ela mesma, a subjetividade,
que instabiliza e sabota o funcionamento do processo. O que, por sua
vez, implica aprofundar a força do desejo (da reinvenção, da crítica
criativa) além de necessidades ditadas pelo capital, o trabalho vivo
além da sua objetivação em valor, e a subjetividade além de concepções
epistemologicamente objetivantes dos sujeitos sociais, como alguma
ciência reificadora, — ainda que maquiada do ruge socialista.
Em conclusão intermediária, “o método marxista é constituinte quando a luta de classe constitui antagonismos explosivos.”
Cabe à pesquisa perscrutar pelos potenciais de explosão, pela
capacidade de difusão e articulações deles, por novos terrenos de
constituição de determinações, onde emergem sujeitos, na franja mesma em
que emergem, inacabados e desejantes, — isto é, como subjetividades.
Deve manter prospectivo o campo plural de lutas, examinando e mesmo
imaginando os saltos, as rupturas, as descontinuidades, as urgências
contingentes e, sobretudo, a extrema conflitividade que perpassa todas
as sínteses e determinações operadas pelo lado do capital. Assume o
antagonismo, sem margem à conciliação, entre a subjetividade
revolucionária e a subjetividade do capital.
O conceito de subjetividade (que é um objeto real29)
propicia aos operaístas evitar uma visão marxista vulgarizada nas
esquerdas oficiais da época, que separa infra (forças econômicas) e
superestrutura (política, cultura, ciência). Estabelecem uma dicotomia
onde a ideologia operaria na segunda camada, como momento determinado
pelo desenvolvimento das forças produtivas. O direito constituiria, por
exemplo, uma ideologia burguesa, que funciona no nível superestrutural.
Em termos práticos, isto altera coordenadas do modo de fazer as lutas
políticas, que não se dão mais como confrontodireto
pela reapropriação das condições de produção, mas como trabalho de
conscientização das massas sob o efeito da ideologia, que deveriam ser
esclarecidas pela via de um positivismo científico de coloração
marxista. Ainda no exemplo do direito, este “marxismo
mecanicista consiste na produção de uma imagem que neutraliza as lutas
de classes e na tradução de uma visão positivista do mundo social, que
não explicita o próprio processo de produção do direito, como
superestrutura e como ideologia”30
Aí se deve reconhecer, apesar de divergências noutros pontos, a
contribuição de Althusser na crítica ao marxismo objetivista, que o
operaísmo desdobra. Partindo da citada dicotomia, o filósofo francês
propõe “o caráter material da ideologia”31. A fim de reproduzir as condições sociais de existência do capital, a ideologia existe materialmente,
e se desdobra em comportamentos, práticas e relações reais. Não se
trata de ilusões na cabeça das pessoas, de algum problema psicológico,
mas do funcionamento real da sociedade, suas estruturas e instituições
em suas relações sociais. A contribuição althusseriana provoca um
deslocamento do objetivismo dicotômico dominante nas esquerdas oficiais,
o que igualmente pode conduzir à pesquisa de subjetividade. Nessa
acepção materialista de “ideologia”, mais próxima de subjetividade, “não
há ideologia senão para homens concretos e através de homens concretos e
não há prática senão através de ideologia e amparada por ideologia.”32Por
meio dela, os indivíduos se subjetivam e podem emergir como sujeitos
políticos, contrapostos aos aparelhos de dominação capitalista. Este não
é um processo psicológico de conversão ou esclarecimento científico,
mas uma interpelação política prorrompida pela realidade em que se vive e
se pensa, um agenciamento social de práticas de resistência e afirmação
de classe em processo. Disso, decorrem enormes incidências na
metodologia de campo, uma vez que tende a similarmente considerar o
mundo da produção como um problema de comportamentos e relações reais
ante as formas de exploração e mando, em vez de incorrer no reducionismo
do mascaramento ideológico (no sentido de idealismo).
O operaísmo autonomista, em geral, supera a problemática da ideologia e
da dicotomia entre infraestrutura e superestrutura, por meio do
ferramental conceitual da produção de subjetividade, considerando que,
desta maneira, coloca melhor o problema materialista, sob o ponto de
vista de classe, isto é, revolucionário.
O método da tendência antagonista
Negri dedica a lição 3 de Marx além de Marx33para tratar exclusivamente sobre metodologia conceitual. Adota por ponto de partida o Caderno Mde Marx, também conhecido por “Introdução”
dos Grundrisse. Escrito no mesmo período do final da década de 1850, o
Caderno M foi publicado junto com os Grundrisse na primeira edição
moscovita, um século depois. O filósofo italiano afirma que a relação
entre eles vai além da justaposição editorial, visto que eles se
articulam organicamente, como uma síntese metodológica que percorre a
formulação da subjetividade revolucionária nos cadernos.
A Introdução coloca, inicialmente, o problema da abstração. Quando uma
abstração interessa à compreensão da realidade e suas conexões? Quando
não passa de fantasia para mistificar as relações materiais? De que modo
abstrair enquanto pesquisador materialista? E quando desmascarar
abstrações mistificadoras?
Marx34
expõe o caso da “produção em geral”. Para os economistas políticos
liberais, quem produz em primeiro lugar são os indivíduos. A partir dos
indivíduos, entendidos como átomos com autonomia da vontade, se
desenvolvem as trocas, pactos, cooperações, competições, associações e
organismos coletivos. A premissa da produção é, portanto, o indivíduo.
Marx contesta a “robinsonada” máxima da economia burguesa, na medida em
que o próprio indivíduo já é uma produção social. O indivíduo não pode
ser naturalizado como a fonte da produção, quando é, desde criança,
atravessado pelo conjunto de relações sociais que o interpelam, num
constante processo autoconstitutivo, onde não se pode falar propriamente
em “dentro” e “fora”. O indivíduo dentro da lógica liberal, como
sujeito livre e igual de direitos, dotado de autonomia da vontade e
capacidade de obrigar-se, capaz de trocar produtos no mercado, já é uma
realidade determinada historicamente, resultado de certo desenvolvimento
das forças produtivas e da reorganização e/ou dissolução das formas
históricas que lhe precederam. O indivíduo consiste, assim, de uma
abstração que mistifica o jogo de forças e relações que propiciam que
algo como o indivíduo exista em certa formação histórica da produção em
geral. Até aqui, se está numa manobra conceitual bastante conhecida da
crítica da economia política. O mais original, contudo, vem a seguir.
O que intriga Marx é como o indivíduo burguês, ao mesmo tempo em que é abstrato e isolado, pode compor a matriz produtiva da “época das relações sociais (universais desse ponto de vista) mais desenvolvidas até o presente”.
Isto é, no movimento mesmo em que o indivíduo é abstraído e isolado,
ele se torna funcional à maquinaria mais complexa e engenhosa até então:
o modo de produção capitalista. A abstração, portanto, não tem o condão
de criar uma fantasia inexistente, para mascarar o existente, — como se
o problema do materialismo fosse denunciar a ideologia por meio de uma
ciência verdadeira. Com efeito, a abstração se constitui de um processo
onde a mesma operação que abstrai conceitos (indivíduo, valor, trabalho)
organiza-os entre si num processo dinâmico (o capital). Nessa
maquinação processual, que concatena e encadeia dinamicamente,
determinações contraditórias passam a coexistir no mesmo conceito, e se
alternar entre si, em função do momento dinâmico do processo como um
todo. Daí que, ao mesmo tempo, o conceito de indivíduo carregue a
determinação privada (homem econômico no mercado) e pública (cidadão); o
de valor, como de troca e de uso; o capital como variável (trabalho
vivo) e constante (trabalho morto). Essa abstração força duas
determinações a habitar o mesmo conceito, para que o processo continue
se movendo. Essa abstração é real, na medida em que é assim, realmente, que os indivíduos se comportam na realidade, que o valor circula no capitalismo, e que o trabalho é explorado pelos patrões…, tudo isso coordenadamente; fenômenos que não se limitam a acontecer na cabeça dos marxistas.
Marx propõe mover o plano de abstração das robinsonadas para o plano da
produção em geral. Desse ponto de vista, o que persiste nas formas
históricas é a produção e não o indivíduo. E é ao redor da produção que
se devem estender as malhas conceituais e falar de meios de produção,
trabalho acumulado, organização do trabalho, forma de governo, relações
jurídicas e o restante da maquinaria conceitual que Marx introduziu.
Este deslizamento se torna fundamental para o intento de Marx, pois a
produção é um conceito de atividade, de geração, que permite analisar os
processos e não somente os produtos (o indivíduo, a riqueza, a
propriedade). É assim também que a abstração pela produção em geral
permite articular como totalidade processual as diversas esferas
produtivas do capital: produção, circulação, distribuição e consumo35.
Todas elas se imbricam e se determinam mutuamente, sem algum progresso
linear da produção ao consumo. Tanto a produção implica o tipo de
produto a ser consumido, quanto o consumo determina a produção. Tanto a
primeira produz o consumidor, quanto o último o produtor. “A produção, por conseguinte, produz não somente um objeto para o sujeito, mas um sujeito para o objeto”36
O filósofo alemão está mais preocupado nas relações reais que se
estabelecem num processo dinâmico do que num substrato essencial, uma
unidade auto-idêntica (identidade perene) que pudesse marcar algum
conceito. Os conceitos se definem mais pelo papel orgânico e dinâmico no
processo, inclusive contradizendo-se ao longo do desenvolvimento.
Negri sublinhará dessas passagens metodológicas o fato que todas as
determinações particulares estão baseadas na diferença entre si, no seu
aspecto relacional e dinâmico37.
A totalidade, portanto, unifica as diferenças em processo, e assim
produz uma estrutura dinâmica formada pelas abstrações reais. O que
importa, para Negri, não é parar a análise por aí, como descrição do
funcionamento do capital, mas apontar as “descontinuidades dos processos reais” e então “subordinar a dialética ao materialismo”.
Para ele, o ponto principal não é tanto o resultado estrutural do
processo de abstração (a subjetividade reificante do capital), mas como
as duas subjetividades (das classes em luta) atravessam e instabilizam
todo o constructo teórico. O antagonismo vai atravessar, portanto, todos
os conceitos marxistas. Menos para encerrá-los (dialeticamente, dois em
um) do que para perscrutar os pontos em que podem ser explodidos,
libertando e fazendo emergir a subjetividade revolucionária
(antagonisticamente, um em dois): “Como
se a dissociação não fosse passada da realidade aos livros-texto, mas
inversamente dos livros-texto à realidade, e como se aqui se tratasse de
um nivelamento dialético de conceitos e não da concepção das relações
reais.”38Torna-se
fundamental não nivelar os conceitos atrás de explicações sistêmicas
fechadas, mas, precisamente, tornar visível e factível a instabilização
dos arranjos dialéticos do processo. “A
relação deve conter a possibilidade de cisão; não existe categoria que
não possa ser definida fora da possibilidade de cisão.”39 Do que decorre: “a identidade é partida em diferença, e a diferença percebida como antagonismo.”40
O método da abstração determinada41 propõe partir do abstrato para o concreto, e então percorrer o caminho de retorno. Nesse vaivém, permite apreender a “rica totalidade de muitas determinações e relações”42O
elemento concreto que importa, assim, é ponto de chegada, é o resultado
do método e não sua premissa. O processo de síntese não está na ação do
pensamento, como no hegelianismo, mas no próprio processo real que o
pensamento tenta se acercar43.
Marx dá o exemplo da relação jurídica da propriedade. Ela não pode ser
sintetizada no real sem passar pela posse, que é categoria que a precede
em desenvolvimento. A propriedade contém como uma de suas determinações
a posse, mas não pode ser explicada só por ela, como se fosse uma
evolução. É que a propriedade, como relação jurídica, está determinada
por um processo produtivo mais complexo e dinâmico, do que aquele que
sustenta a posse, operativa numa matriz mais simples das forças
produtivas. Daí que a propriedade permite a compreensão da posse, jamais
o inverso, — uma vez que a propriedade não
decorre de um desenvolvimento interno das possibilidades intrínsecas da
posse, como se sua autoidentidade tivesse desabrochado em um estágio
historicamente mais evoluído. Por isso, embora a propriedade seja mais
abstrata do que a posse, lhe sucede em riqueza de determinações, como
entidade participante do processo do capital. “Portanto, as abstrações mais gerais surgem unicamente com o desenvolvimento concreto mais rico”44e, metaforicamente, “A anatomia do ser humano é a chave para a anatomia do macaco”.45
Para a metodologia marxista, mais uma vez, o que importa ressaltar não é
a consistência da sistematização de abstrações reais do capital, quase
em contemplação estética da dialética capitalista. Mas perceber que “são igualmente produto de relações históricas e têm sua plena validade só para essas relações e no interior delas”46,
de modo que se torne visível e factível a sua subversão e destruição,
tensionando até romper essas relações que o processo busca sintetizar
abstratamente.
Para Negri, isto não significa “ceticismo epistemológico, mas a destruição de qualquer tipo de fetichismo do concreto”47.
A teoria ocupa um lugar importante no materialismo. É preciso
transformar a metodologia de produção do conhecimento, do abstrato ao
concreto, o que o autor operaísta esclarece ser um “processo coletivo, um esclarecimento coletivo proletário e, em consequência, elemento de crítica e uma forma de luta.”48. A
pesquisa militante se situa, portanto, a meia distância, entre as
abstrações que buscam a riqueza de determinações do real, e os projetos
de luta, ou seja, os problemas reais enfrentados pela classe. Daí a
importância da mútua implicação entre militância e intelectualidade; uma
para situar os problemas, a outra para disparar a abstração determinada
neles. A composição se congrega, a seguir, numa produção colaborativa
de conhecimento que, em seu processo mesmo, contribui para a organização
do movimento.
Para Paolo Vinci49,
a abstração determinada como teoria materialista do conhecimento assume
duplo rendimento. Essa dupla faz do método mais que critério
epistemológico, no estatuto de ferramenta prática de luta. Primeiro,
como analítica das relações de poder, interrogando sobre os diferentes
elementos, contradições e antagonismos que constituem determinada
expressão situada da produção em geral. Segundo, como invenção contextualizada dessa realidade, como “antecipação estratégica do campo de possibilidades (tendência)”.
A colocação em marcha dos problemas e campos de possibilidade
subjetiviza o conhecimento, isto é, abre a sua dimensão de processo
materialista, o que, a seu passo, reforça as determinações subjetivas e a
“afirmação de classe”.
Não se trata, propriamente, de conscientização, uma vez que o
conhecimento não busca conhecer o concreto além das abstrações, mas
criá-lo ele mesmo por meio delas, — e em paralelo às sínteses fechadas
do capitalismo. O círculo abstrato-concreto-abstrato não se limita a
repropor alguma sociologia empírica, mas, sim, inviabilizar qualquer
possibilidade de conhecimento não-situado na luta de classe, na dimensão
política e antagonista de todos os conceitos, métodos e estratégias, em
processo de elaboração. “O
elemento subjetivo é importante, porque é ele que reclama a superação
da divisão social, a reapropriação de suas relações sociais”50
A abstração determinada culmina com o método da tendência.51
Mediante a tendência, Negri estabelece uma relação entre o simples e o
complexo. Se, por um lado, o abstrato busca o concreto, o que se dá na
abstração determinada; o concreto também busca no abstrato a sua
determinação. Isto é, categorias simples, que podem existir
cronologicamente antes, só atingem seu pleno desenvolvimento em
condições complexas e abrangentes (extensiva e intensivamente) da
produção em geral. Daí que elementos conceituais mais simples e
concretos, como a posse, o valor de uso ou o trabalho concreto,
articulam-se em processo na esteira do desenvolvimento de formas
históricas mais complexas, o que os converte em abstrações mais gerais,
como a propriedade, o dinheiro ou o trabalho abstrato. O que de mais
concreto sucede na vida precisa galgar um status de abstração não para
se depurar de determinações, mas para preencher-se delas em seu estado
mais rico e diversificado. Não ocorre propriamente uma evolução, mas uma
sucessiva síntese de diferenças em direção ao abstrato, cujas
categorias mobilizam o processo produtivo. Como o desenvolvimento
histórico é determinado pela luta de classe, essas diferenças são
antagonismos, e a tendência carreia consigo num turbilhão o caráter
conflitivo diretamente no âmago da maquinaria abstrata do capitalismo. É
isto que Negri chama “comunismo na metodologia”:
a percepção de que o processo do capital, em sua pletora de relações
complexas de abstrações reais, pode ser desestabilizado e destruído por dentro
das próprias determinações abstratas. Não se trata mais, portanto, de
desmistificar o abstrato a fim de reencontrar o concreto livre do
capital (a posse, o valor de uso, o trabalho concreto). Mas constatar
como todas as categorias abstratas desta maquinaria complexa (a
propriedade, o dinheiro, o trabalho abstrato) podem ser reapropriadas,
mediante uma metodologia que rasgue a unidade sintética das
determinações, resgatando os antagonismos e contradições (históricos)
que permearam a abstração em primeiro lugar. O que Negri chama de “verdadeiro na prática”52
(ou critério prático de verificação): o coração das lutas, numa relação
saturada de subjetividades. Por isso, a aposta da subjetividade
revolucionária, para se articular às lutas reais e emergências de
sujeitos e sabotar o funcionamento global do sistema, na sua lógica
capitalista. Menos para retornar a algum concreto selvagem, mas para
inventar um novo abstrato (pois toda forma histórica da “produção em
geral” resulta de abstrações determinadas), destruindo a subjetividade
do capital (do comando/obediência, da exploração/mais-valor, do
estado/controle social).
Disso decorre a sequência metodológica de forte abstração (com fundo
real), que caminha em direção à prática e à subjetividade, para, a
seguir, em reconstrução do processo em seus momentos constitutivos,
despedaçá-lo no aprofundamento da crise, dos antagonismos e
contradições. De dentro dos fluxos produtivos de que o capital se
apropria, trata-se de fazer escoar a subjetividade revolucionária, em
alteridade radical com relação aos capitalistas, ou melhor, à produção
de capitalistas. Tais condições epistêmicas asseguram a luta de classe dentro e contra
o capitalismo, numa copesquisa junto dos circuitos e processos
produtivos, na fronteira em que os sujeitos e objetos são constituídos
uns para os outros, na disposição do capital. A metodologia dos
Grundrisse “é
completamente subjetivada, totalmente aberta ao futuro, e criativa, e
não pode ser fechada em totalidades dialéticas ou unidades lógicas. A
determinação é sempre a base de todo o significado, de toda a tensão, de
todas as tendências.”53
O método busca coletivamente os pontos onde a prática militante possa
se apoiar e saltar, irrompendo as relações sintetizadas pelo capital,
seus antagonismos e contradições. O ritmo da investigação acompanha o
ritmo das lutas e vice-versa, pois a partir daí se formulam os problemas
e oportunidades reais, para a ruptura da maquinaria. “Cada
pesquisa resulta, em sua apresentação, tentativas de caracterizar o
conteúdo do antagonismo e vê-lo, tendencialmente, em seu próprio
dinamismo; quando o dinamismo dispara, observamos uma verdadeira
explosão conceitual”.54Participa,
deste modo, de um processo de organização e produção de subjetividade,
em constante deslocamento: testa e investe no aprofundamento dos
antagonismos que atravessam as categorias do capitalismo presente, — que
a ciência econômica a seu serviço tenta apresentar e estabilizar como
objetivamente determinadas.
A renovação da copesquisa
Um pouco mais de 20 anos depois do seminário Marx além de Marx,
Antonio Negri apresentou uma lição sobre “a práxis militante como
sujeito e episteme”, em aula ministrada na universidade calabresa de
Cosenza55. Nela, o autor reforça o caráter imanente da produção de subjetividade, que explode antagonismos por dentro
da produção social capitalista. Ressalta como a investigação teórica
que constitui o objeto (o concreto como linha de chegada) das relações
caminha lado a lado com a emergência incessante dos sujeitos (a franja
da subjetividade), numa ontologia constituinte. As mutações no mundo do
trabalho vivo e das formas de poder constituído devem ressoar em novas
formas de organização ativista, que mantenham afiadas as armas da
copesquisa militante. O campo prático dos antagonismos precisa ser
investigado na emergência de novos sujeitos sociais, num contexto de
capitalismo globalizado e financeirizado, em plena crise do
neoliberalismo: “qual é a copesquisa que hoje se pode fazer, no pós-moderno, dentro da total transformação dos horizontes do trabalho da organização social?”56
No século 20, a Introdução (Einleitung,
em alemão) aos Grundrisse bastava para lançar as bases para uma
pesquisa metodológica em que ação e teoria se conjugam para a ruptura da
ordem capitalista. Na virada do século 21, se propõe uma renovação do
método, uma “nova Einleitung”57,
mais condizente à realidade contemporânea das lutas sociais e da matriz
de exploração e comando do capitalismo. Se, do lado do capital, se
sofisticaram os mecanismos de controle, mais pervasivos e abrangentes;
mudam também as coordenadas de criação e aprofundamento da subjetividade
revolucionária. A cooperação intensificada pelas novas tecnologias
sociais e a socialização do processo produtivo por todo o tecido
populacional conduzem à geração de um excedente cada vez maior, em
relação ao sistema da fábrica convencional. Esse excedente cooperativo e
socializado galga autonomia em relação ao planejamento e controle dos
capitalistas. Antes, o capitalista reunia meios de produção e os
trabalhadores no mesmo tempo e espaço, onde induzia e mantinha sob
controle a cooperação. Agora, a cooperação acontece cada vez mais fora
da fábrica. A produção social se dissemina mais abertamente pela esfera
da circulação e da reprodução. O capital então desenvolve outras formas
de exploração, ao captar o valor produzido nas “externalidades
positivas”. Isto é, fora do processo fabril, sem mediação do comando e
divisão capitalistas, através da cooperação social imediatamente
produtiva. A fábrica se espalha molecularmente pelo corpo social, se
torna um feixe de relações difusas pelas esferas da circulação e da
distribuição. O capital nunca foi tão socializado e abstrato, num regime
de acumulação mais intensivo e flexível. Neste contexto, as abstrações
reais do capital mudam de configuração, sofisticam-se (incrementam em
riqueza de determinações) na mesma medida em que se tornam mais
abstratas, quando a lei do valor entra em crise, bem como toda a
metrificação do valor baseada no tempo de trabalho.58
Coloca-se, portanto, um novo desafio para os problemas da copesquisa e
do método da abstração determinada/tendência antagonista, na
contemporaneidade59. Se nos anos 1960, no auge do fordismo, a con ricerca
encontrava como campo de atuação a organização dos trabalhadores na
fábrica, agora, no século 21, devem ser perscrutados os territórios
sociais onde se articula, com centralidade, as forças do trabalho vivo.
Se a fábrica agora é social, difusa e global, faz-se necessário engajar a
copesquisa no mundo pós-fordista ou pós-moderno do trabalho social. A
produção social se estende através da sociedade urbana como um todo.
Seus feixes, redes e mananciais organizam e continuamente deslocam e
reorganizam a captura capitalista da mobilidade e da produtividade da
vida como processo produtivo imanente, da produção biopolítica, dos
planos multiestratificados de economia, cultura e política, numa
espessura compartilhada de existência metropolitana. As ferramentas
conceituais elaboradas pelos operaístas precisam ser testadas e
recombinadas, junto à franja de emergência de novos sujeitos e lutas
sociais da metrópole, isto é, da subjetividade revolucionária de nossa
condição. A produção de subjetividade que está em jogo só pode circular e
se intensificar nesse horizonte de lutas. É preciso levar em
consideração os processos de cooperação, comunicação, imaginação, as
novas formas de vida e de relações sociais, que somente aparecerão, —
subjetivando-se, — quando compreendidos na imanência mesma da
copesquisa.
Isto significa, por outro lado, testar hipóteses, de maneira militante,
a respeito das novas formas difusas de exploração, da captura dos
fluxos produtivos ao longo dos circuitos de circulação e valorização do
capitalismo contemporâneo. Nesse sentido, copesquisar (em todo o seu
sentido como organização do movimento) a condição de explorado dos
“trabalhadores” da fábrica social é uma síntese prático-teórica
fundamental, como campo de formulação de hipóteses e métodos de atuação.
Em suma, trata-se de indagar sistematicamente a composição política de
classe, que pode ser constituída e se constitui, no processo mesmo de sua constituição.
Portanto, seguindo o melhor Marx, o além-Marx dos Grundrisse, se o capitalismo se reestruturou na extrema
abstração de um controle financeirizado, globalizado e biopolítico, —
essa matriz sofisticada de abstração real só pode significar, como
contrapartida, a extrema
riqueza de determinações e diferenças e antagonismos que proliferam ao
longo de todo o processo produtivo, que o capital precisa abstrair para
continuar explorando a vida. Noutras palavras, o trabalho vivo está mais
autônomo do que nunca, — capaz de organizar-se e cooperar na fortuna
material de sua composição, — em relação ao capital, a seu passo cada
vez mais parasitário. A copesquisa pode ajudar a organizar essa
autonomia, além das mediações, constituindo a classe, a luta de classe. A
atualidade comunista paradoxalmente se torna viável no mais pervasivo
capitalismo globalizado, dentro e contra a maquinaria capitalista.
O operaísmo, de fato, nunca foi tão atual.
———-
1 ALTAMIRA, César Os marxismos do novo século. Trad.
Leonora Corsini. Rio de Janeiro: 2008. Civilização Brasileira. Capítulo
2: O operaísmo italiano. P. 115-217. Mais sobre a história do operaísmo
autonomista: WRIGHT, Steve. Storming heaven: class composition and struggle in Italian Autonomist Marxism. NY: 2004, mimeo. BALLESTRINI, Nanni, MORONI, Primo. L´orda d´oro. Milão: 1988, Sugar & Co.
4 A corrente mais autonomista e movimentista se organizou em dois eixos principais: Potere Operaio e Lotta Continua. O primeiro, Potere Operaio, título também de sua revista,durou de 1969 a 1973, encabeçado por Antonio Negri, Sérgio Bologna, Oreste Scalzone e Lanfranco Pace, até gerar o mais famoso Autonomia Operaria (1973-79),
que se concentrou nas lutas dos desempregados, trabalho informal,
artistas, coletivos culturais, imigrantes e outros setores
não-contemplados pela concepção rígida de proletariado industrial dos
sindicatos. O segundo, o grupo Lotta Continua, baseou-se mais ao noroeste italiano (principalmente Turim) e durou até 1982, articulando lutas de universidades e fábricas.
8 PASQUINELLI, Matteo. On the so called Italian Theory. Artigo em seu site pessoal (2011): http://matteopasquinelli.com/on-the-so-called-italian-theory (acesso em fevereiro de 2012)
28 A autonomia
das forças vivas do trabalho em relação ao processo de exploração e
comando do capital, em suma, autonomia do trabalho em relação ao
capital, autonomia de classe, é uma tese autonomista-operaísta que
transcende o operaísmo de primeira extração (começo dos anos 1960), como
de Mário Tronti, onde a tarefa de classe operária consiste em recusar e
dialeticamente inverter as abstrações e mediações que sustentam os
processos capitalistas sobre o trabalho. Diversamente, a organização da
autonomia para Negri e os autonomistas não depende de nenhuma relação
dialética com o capital, a ser invertida. Por sinal, para Negri, a
resistência não deve se pautar na inversão da relação social do capital,
mas de sua destruição não-dialética (absoluta), da progressiva
autonomização do trabalho vivo ante o capital. Cf ALTAMIRA, César. Os marxismos do novo século. Op. Cit. p. 186-211. Para uma síntese de teses operaístas mais afinadas ao método dialético: TRONTI, Mário. The Strategy of Refusal in Italy: Autonomia. Post-Political Politics. Vol 3. N. 3. Nova Iorque: 1980, Semiotext(e). Esse artigo data de 1965.
29 Mais sobre subjetividade, texto já clássico de GUATARRI, Félix, ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 10ª
ed. Petrópolis: 2005, Vozes. Especialmente: Cap. II – Subjetividade e
História, p. 33-148. Sobre o estado do debate atual, vale: MELITOPOULOS,
Angela, LAZZARATO, Maurizio. O animismo maquínico. In Revista Lugar Comum, n.º 33-34 (2012). p. 157-183.
58 Para uma exposição bastante conceitual da virada em direção ao capital social e à crise da lei do valor: NEGRI, Antonio. Crise della legge del valore-lavoro e Lavoro produttivo e improduttivo, verbetes
in DEL RE, Alisa et al (orgs.), Lessico Marxiano, Op. cit. p. 87-94 e
p. 117-136. Para explanação mais panorâmica, o trabalho já clássico:
LAZZARATO, Maurizio, NEGRI, Antonio, Trabalho imaterial.
Op. Cit. (o livro todo). Explorar a mudança entre fordismo e
pós-fordismo (também descrita como do moderno ao pós-moderno
capitalista), numa perspectiva diacrônica, desborda do escopo definido
neste artigo, ficando o fio solto para futuros desenvolvimentos.
59 Desenvolvimento abrangente da problemática da copesquisa hoje, na edição dedicada à “Fare inchiesta metropolitana” [Fazer pesquisa metropolitana]: Rivista Posse n.º 2/3, Roma: 2001. Texto mais recente recolocando o problema na crise global: I luoghi della lotta di classe: per fare conricerca [Os lugares da luta de classe: para fazer copesquisa] http://uninomade.org/i-luoghi-della-lotta-di-classe-per-fare-conricerca/ (texto coletivo da Universidade Nômade Itália, 2012).
Fonte: Rede Universidade Nômade
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