agosto 19, 2012

"A anomalia selvagem de Spinoza" (Resenha, Bruno Cava)

PICICA: "A democracia de que fala Spinoza e Negri se constrói na práxis, de baixo pra cima, na terra do materialismo absoluto. A concepção da crise do mundo recusa o contrato social e o mercado, em favor da organização autônoma da produção e sem quaisquer mediações. As essências, essas criaturas singulares, todas elas habitam o mesmo plano ontológico, na superfície do que a política compõe e decompõe as forças — uma política de autoprodução do ser, da democracia e da felicidade. Amar a verdade só é possível numa paixão ao real, em que aquela age como práxis. Bem diferente das pirâmides normativas e edifícios axiológicos, onde distintas ordens do ser transmitem valor e legitimidade de cima a baixo, um esquema hierárquico cuja motivação é pedir fidelidade ao tirano. A imanência se organiza, à transcendência se é fiel. A doutrina do judeu maldito dispensa juntos o Céu e o Inferno, todos os sacerdotes de uma só vez, e reconstrói a causalidade eficiente na gênese das forças de tudo o que existe. Simplesmente tudo, sem exceção. Não há lugar para a modernidade no Spinoza de Negri. Em vez de teorias sobre a melhor forma de estado, teorias sobre a melhor forma de libertar-se do estado. De destruí-lo de baixo a cima, a começar pelo estado em nós mesmos, na nossa própria economia de paixões." 

A anomalia selvagem de Spinoza
Resenha de NEGRI, Antonio. A anomalia selvagem. Trad. Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: 1993 [1981], ed. 34.


Escrito na prisão e publicado em 1981, quando os conflitos e movimentos dos anos 1970 pareciam abafados pela repressão e um consenso conservador da “esquerda” à “direita” partidária governava na Itália; Anomalia Selvagem reafirma a filiação de Antônio Negri ao pensamento da positividade. Não se abatendo com a ciranda da história, o maestro se concentrou em Spinoza para abraçar ainda mais uma ontologia constituinte e afirmativa. Para se animar com uma ontologia do ser pleno, sem concessões a derrotismos, catastrofismos ou outras paixões deprimidas da razão. Da intrincada malha de tratados, proposições e escólios, Negri desenovela o fio vermelho de uma política radical e transformadora. A ontologia spinozana transpira de política por todos os poros, uma política de baixo pra cima, uma política materialista que não separa razão e desejo. Propõe uma práxis revolucionária diretamente ao dilacerar a trama do presente, na materialidade do agir, do fazer.

A modernidade assistiu ao nascimento da concepção jurídica do mundo. De imediato, os defensores da modernidade colocaram como tarefa do pensamento filosófico fundamentar esse poder de novo tipo, vestindo-o com o manto da legitimidade e da justiça. Teorias voltadas a garantir o soberano, sua lei, seu direito, sua violência legítima. De Hobbes a Hegel, de Rousseau a Kant, várias as tentativas de elevar-se sobre as paixões, as vontades e as volúpias das plebes.

Quantos funcionários do poder não recorreram e continuam recorrendo às “verdades eternas”, que o homem deixado a seu bel prazer invariavelmente abusa do que pode, passa a perseguir fins condenáveis e praticar regularmente o mal; que não é prudente relaxar demais a lei e a punição; que o povo precisa de alguém para guiá-lo e só respeita um poder maior. Mesmo o mais ignaro popular não discordaria disso. Então, por que seríamos arrogantes, nós os ilustrados do novo tempo, a ponto de conceder-lhe o valor que ele mesmo não reclama, em vez de simplesmente dar ao povo o que, sem romantismos, ele mais precisa e deseja: ordem e autoridade? Temos de oferecer pelo menos um norte, um sistema razoável de normas e valores, em que o homem comum possa acreditar e confiar. O senso comum está do lado da polícia. No limiar da modernidade, o estado foi fundamentado como solução para desordem humana. O direito, como mediação de conflitos particulares e contenção da criminalidade. O estado moderno, um “mal necessário”, defendem os corações burgueses mais humanistas, porém o que de melhor a civilização humana pôde oferecer diante da natureza oscilante e imprevisível, em todo caso perigosa, dos homens. Quem vai cuidar de nossos filhos?

Negri contesta os pensadores mais notáveis na fundamentação desse senso comum. E rasga outra modernidade, uma alternativa antimoderna. De Maquiavel a Spinoza a Marx, três malditos em desafio e escárnio diante da concepção jurídica do mundo. Minhas bússolas em impudência. Contra o problema do fundamento da moral, do direito ou do estado, uma máquina de guerra anti-idealista, no maravilhamento e vertigem da imanência. A subversão spinozana divorciou a teologia da ontologia. Um Spinoza crítico do transcendente, do finalismo, do estado e do mercado. Não só expulsou Deus como não O deixou voltar travestido pela janela.

A democracia de que fala Spinoza e Negri se constrói na práxis, de baixo pra cima, na terra do materialismo absoluto. A concepção da crise do mundo recusa o contrato social e o mercado, em favor da organização autônoma da produção e sem quaisquer mediações. As essências, essas criaturas singulares, todas elas habitam o mesmo plano ontológico, na superfície do que a política compõe e decompõe as forças — uma política de autoprodução do ser, da democracia e da felicidade. Amar a verdade só é possível numa paixão ao real, em que aquela age como práxis. Bem diferente das pirâmides normativas e edifícios axiológicos, onde distintas ordens do ser transmitem valor e legitimidade de cima a baixo, um esquema hierárquico cuja motivação é pedir fidelidade ao tirano. A imanência se organiza, à transcendência se é fiel. A doutrina do judeu maldito dispensa juntos o Céu e o Inferno, todos os sacerdotes de uma só vez, e reconstrói a causalidade eficiente na gênese das forças de tudo o que existe. Simplesmente tudo, sem exceção. Não há lugar para a modernidade no Spinoza de Negri. Em vez de teorias sobre a melhor forma de estado, teorias sobre a melhor forma de libertar-se do estado. De destruí-lo de baixo a cima, a começar pelo estado em nós mesmos, na nossa própria economia de paixões.

Em Anomalia Selvagem, Negri faz um recorte na trajetória de Spinoza e opõe duas “fundações” da obra. A ruptura da primeira para a segunda fundação se dá em razão de uma crise constitutiva do pensamento de Spinoza. Essa crise radicaliza as tensões mais politicamente revolucionárias de sua ontologia. A “primeira fundação” ainda consiste no Spinoza matizado pelo iluminismo burguês. A espécie de deslize cometido pelo filósofo nesse período estaria contida na doutrina dos atributos. Embora existam em número infinito, o ser humano só pode conhecer dois atributos: a extensão e o pensamento. Os modos da extensão são os corpos. As ideias que temos dos corpos, por exemplo, são modos do pensamento.

Para Negri, trechos da “primeira fundação” suscitam a interpretação que os atributos atuam como mediações entre as substâncias e os modos. A substância causaria os modos passando necessariamente pelos atributos. Isto fere mortalmente a imanência do ser, pois nada pode se interpor entre a substância e os modos. A duplicação da terra ontológica. Reintroduz-se outro tipo de ontologia: o emanentismo de raiz neoplatônica. Assim, a substância não mais produziria os modos; ela os emanaria de si. Essa emanação significaria uma redução da perfeição intrínseca ao ser. Quer dizer, da substância aos modos ocorreria uma redução qualitativa, uma degradação do ser. Exalta-se a substância enquanto se atribui aos modos uma existência ínfera. Essa bipartição entre substância e modo reabre a dimensão dos valores, restaura o Céu e a Terra, e aniquila toda a política subversiva que poderia transpirar da ontologia constituinte. Para Negri, a “primeira fundação” não é por acaso. A doutrina emanentista das mediações confina com o espírito do tempo mercantilista do século 17, impregnado no renascentismo tardio. Nesse período histórico, está em formação o mercado capitalista. Quer dizer, um sistema universal de equivalências, capaz de fixar o preço das coisas. Os mercados estabelecem a mediação das relações de compra e venda, e homogeniza um espaço adequado para as trocas. A mediação se interpõe entre a constituição de ser e a produção de riqueza. Justificam-se, assim, as forças produtivas mediadas pelo mercado, o estado, a teoria do valor. O povo e o soberano estabelecem um pacto mediador, seja como cessão de direitos, seja como transferência de poder. Origem dos contratualismos. Daí por diante, fica fácil, segue logicamente a parafernália de normas de organização do trabalho, regulamentação das trocas, formas jurídicas e soluções soberanas, tudo para que o capitalismo moderno possa funcionar. A hipótese realmente subversiva de Spinoza é outra.

O Spinoza da “segunda fundação”, depois da crise, descarta inteiramente a funcionalidade das mediações. É o Spinoza dos três últimos livros da Ética. Assim como o estado deve ser dissipado para ceder lugar ao comunismo; os atributos, para a ontologia constituinte. Contra o confisco da imaginação por contratos sociais e teorias jurídicas, trata-se de inventar o mundo por dentro, na práxis constituinte. Sem mediações, as forças produtivas podem agir diretamente, como autonomia e auto-organização. Os modos não dependem de ordens emanadas de cima. Os modos se insurgem contra os valores e derrubam os templos. A natureza naturada passa a determinar como vai ser, isso é coisa do diabo. A libertação das forças produtivas demanda uma dupla frente de ação: destrutiva e afirmativa. Faz-se necessário derrubar as estruturas que expropriam a constituição de ser, o poder constituinte. Cortar o nexo que se pretende necessário entre as forças produtivas e as relações de produção, tensionar os focos de antagonismo, e derramar a carga ontológica da positividade. “O pensamento spinozano é uma apologia das forças produtivas.”As forças mediadas pelo estado e pelo capital não passam de graus inferiores da potência. Esse poder constituído subsiste sobre a potência, parasitando-a. Uma impotência causada pelo medo, a superstição e a indução da escassez, que mobiliza os súditos à tristeza. Daí reapropriar-se, primeiro, da própria potência. Reapropriar-se da riqueza mediada/expropriada pela propriedade, o trabalho, a representação política. Ou seja, desmontar as relações de produção, toda a estrutura de mediação que filtra, segrega e acumula o poder.

Mas, também, construir instituições autônomas, imediatamente produtivas nas relações entre as singularidades. Essa a democracia absoluta de Spinoza, uma democracia materialista e produtiva, cuja política está na arte da composição e dos encontros. Organizar a produção, cultivar instituições não mediadas pelo valor e a soberania. Uma tarefa prática para a imaginação multitudinária orientar. Neste terreno da libertação, o único direito digno é um direito atribuído às singularidades. Um direito vivo, diferencial, produtivo. Um direito que é potência afirmativa, e não norma. Além de jusnaturalismos ou juspositivismos, — ambos, de uma forma ou de outra, dependentes da mediação/norma; — refiro-me a direitos singulares cujo plano de composição política elabora o direito comum.

O direito comum para instituir e sustentar um ciclo virtuoso de relações geradoras de ser e vida, em quantidades e qualidades. Essa imaginação incorrupta pelo medo da diferença, da potência do outro. Imaginação paranoica só pode resultar em superstição e servidão voluntária. Esse direito do comum vai até onde se dilata a potência dos agenciamentos das singularidades, e a multiplica muitas vezes. Pauta-se pelos bons encontros, a produtividade e a alegria crescente do conjunto. Age no real potenciando os direitos singulares, proliferando as relações e afecções mútuas. Viceja no prazer por um mundo infinito a fazerem-se juntos. É potência material, no amor da práxis coletiva de organização.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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