agosto 24, 2012

"O complexo de vira-latas dos amazonenses", por Simão Pessoa

PICICA 1: "No ano passado, segundo dados da Suframa, o Polo Industrial de Manaus faturou US$ 40 bilhões. Desse montante, quanto ficou no estado? Levando-se em conta que o orçamento total do governo do Amazonas está estimado em US$ 3 bilhão, sobra menos de 10% do faturamento do DI para custear nossas demandas crescentes e perpetuar a miséria dos grotões no interior. 

Portanto, somente energúmenos de galochas ou com complexo de vira latas podem continuar a defender esse esdrúxulo “modelo de desenvolvimento” que serviu (serve) apenas para enriquecer a tripa forra uma centena de empresários alienígenas."

PICICA 2: O uso político da manutenção da 'zona franca' de Manaus depõe contra nossa inteligência. O modelo está com os dias contados e não há discussão sobre as alternativas econômicas para o Estado. Comenta-se - entre jornalistas - que há um estudo na Superintendência da Zona Franca de Manaus mantida a sete chaves. A prática é conhecida. Nem a sociedade civil é convidada para debater o tema, tampouco esta se mobiliza para discutir o pós-zona franca. Parlamentares, à direita e à esquerda, mantém seus eleitores na mais absoluta ignorância sobre o futuro da capital da zona franca. Convém que assim seja, senão perde-se o mote das campanhas. Todo mundo - exceções de praxe - tira uma 'casquinha' do fim da  zona franca, um 'fim-de-mundo' anunciado para o qual desinteligentemente todos contribuem. Lástima!

O complexo de vira-latas dos amazonenses


Na última sexta-feira, 17, o governador tucano Geraldo Alckmin ajuizou uma intempestiva Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin nº 4832/2012) contra dispositivos da Lei n. 2826/2003 e do Decreto Estadual n. 23.994/2003 que criam o “crédito estimulo” e o “corredor de importação”, com incentivos fiscais para a integração, expansão, modernização e consolidação dos setores industrial, agroindustrial, comercial, de serviços, florestal, agropecuário e afins da Zona Franca de Manaus.

Por que o governador de São Paulo demorou nove anos para ajuizar essa Adin?

Porque, além de ser sabidamente um caipira provinciano e mentalmente fronteiriço, Alckmin está jogando para a plateia.

Ele sabe que a Adin será fulminada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mas, nesse meio tempo, poderá falar em alto e bom som para o eleitorado paulista que fez o que era possível para defender os interesses do seu estado.

Até aí, morreu o Neves. O papel de cada governador é puxar a brasa para a sua sardinha.

O que não dá para entender é essa cacofonia de gritos histéricos que toma conta da cidade cada vez que uma “ameaça” ronda a ZFM.

Parece que ninguém, em sã consciência, percebe a oportunidade histórica de questionar de verdade esse enclave multinacional incrustrado em nosso território que, ao longo de 45 anos, apenas aumentou assustadoramente a desigualdade econômica entre Manaus e os municípios interioranos, condenando à miséria metade da população amazonense.

“Manaus não pode ficar sem a ZFM”, berra um vereador mais afoito do que um bandeirinha de várzea marcando um impedimento.

“O fim da ZFM significa jogar na miséria 100 mil trabalhadores!”, dispara um deputado da base governista, mais sério do que cu de vaca gir durante a inseminação artificial.

“Precisamos nos unir contra mais esse crime de lesa pátria”, desconversa um empresário sulista, enquanto confere o plano de milhagem que o fará ir embora de graça dessa comédia e descobrir locais melhores para investir o lucro auferido na mal afamada zona franca.

Porto de lenha, tu nunca serás... aquilo tudo que o poeta Aldisio Filgueiras falou com propriedade já se vão algumas décadas.


Continuamos tabaréus por nossa culpa, nossa máxima culpa.


Pois é esse complexo de vira-latas, de coitadinhos, de menores abandonados ou permanentemente abrigados sob a saia encardida do governo federal, que torna os amazonenses dependentes químicos dessa verdadeira aberração chamada ZFM.

Por causa da ZFM, a capital do estado concentrou 95% das atividades econômicas do Amazonas e condenou os outros 61 municípios a uma vida em morte severina.

Do ponto de vista social, essa gritante concentração de renda não significa porra nenhuma: Manaus possui um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do país, ou 0,774.

A capital paraense, Belém, que nunca teve Zona Franca, tem um IDH de 0,806.

Cuiabá, capital do Mato Grosso, que também nunca teve Zona Franca, tem um IDH de 0,821.

Idem, Palmas, capital do Tocantins, com IDH de 0,800.

Não estou chutando, macacada: os números estão disponíveis no Portal ODM, que faz o acompanhamento municipal dos objetivos de desenvolvimento do milênio.

“E se a ZFM acabar, o que será de nós?”, geme um operário, como se tivesse sido pego sem calças se preparando para detonar um padreco dentro do confessionário.

Eu, particularmente, não faço a menor ideia.

Desconfio, entretanto, que a gente descobriria alguma coisa pra fazer.


Sergio Machline e seu pai, o saudoso Mathias

Eu posso falar de cadeira sobre a ZFM porque fui funcionário da Sharp do Brasil (de agosto de 1973 a agosto de 1978), da Electra Industrial (de novembro de 1978 a fevereiro de 1980) e da Philco da Amazônia (de março de 1980 a novembro de 1991).

Quer dizer, dos 17 aos 35 anos eu estive no olho do furacão.

A Sharp do Brasil foi a segunda empresa a se instalar no Distrito Industrial (a primeira foi a Electra), ambas na rua Acará.

Para se ter uma pálida ideia do pioneirismo, nós (eu, Engels, Pauderney, Pauderley, Ivaldo, Alexandre, Reinildo, Edmilson, Salgado, Augusto Cézar, etc), todos finalistas da ETFA, tivemos que pegar no pesado e montar as esteiras manualmente, uma por uma, no gigantesco galpão construído pelo engenheiro José Moura, da Coencil.

Em cinco anos, a Sharp do Brasil já faturava anualmente US$ 1 bilhão e o Grupo Machline possuía 25 empresas – todas sediadas em São Paulo.

Ou seja, o lucro era gerado em Manaus, mas reinvestido em São Paulo.

Para os tapuias nativos ficavam os salários (1% do faturamento, ou US$ 10 milhões) e os impostos (25% do ICMS ou US$ 50 milhões).

Multipliquem isso pela quantidade de empresas multinacionais que estavam implantadas no DI e terão uma boa ideia do tamanho da sangria.

Quer saber mais? Clica aqui.

Não foi a toa que uma leva de pequenos comerciantes paulistas se transformou em empresários milionários num piscar de olhos à custa do trabalho semiescravo dos nossos nativos.

Leo Kryss, por exemplo, era dono de uma lojinha de confecções na rua 25 de Março quando resolveu montar a Evadim no Distrito Industrial, com generosos empréstimos do BNDE.

Atualmente dono do banco Tendência, Leo Kryss coleciona jatinhos, iates e campos de golfe.

Leiam o que a revista Veja escreveu sobre o empresário, na matéria “Mordendo a maçã”, em agosto de 1997:

“Tímidas excentricidades se comparadas ao tríplex do empresário Leo Kryss, dono de uma indústria de produtos eletrônicos.

Cada um dos três andares de seu apartamento, avaliado em 4 milhões de dólares, tem um estilo de decoração diferente.

“Os corrimãos das escadas são folheados a ouro”, descreve uma amiga de Kryss.

Há colunas de mármores nobres, banheiros cor-de-rosa do teto ao chão e pesadas cortinas de veludo.

A cozinha, com equipamentos industriais, lembra a de um grande hotel.

O apartamentaço conta ainda com três quartos só para abrigar empregados.

As más línguas dizem que ficaria melhor em Miami.”

A Evadim nunca investiu um único centavo em Manaus.


Leo Kryss e o príncipe herdeiro Joseph, que nunca colocou os pés em Manaus

Fundada pelo remediado engenheiro eletricista Affonso Brandão Hennel, a Sociedade Eletro-Mercantil Paulista (Semp) era uma fabriqueta de fundo de quintal especializada na montagem de rádios valvulados, vendidos exclusivamente no interior de São Paulo.

 Em 1977, a empresa fez uma joint-venture com a gigante japonesa Toshiba e, graças aos generosos empréstimos do BNDE, se instalou no Distrito Industrial.

A Semp-Toshiba chegou a faturar mais de US$ 1 bilhão por ano – e com o lucro auferido em Manaus abriu novas unidades industriais em Salvador, Cajamar e São Paulo.

Em Salvador, por exemplo, a empresa produz 300 mil notebooks por ano, mas pretende elevar essa produção para 1 milhão de unidades no prazo de cinco anos.

Ou seja, a Semp-Toshiba transformou Afonso Hennel em um novo milionário, está gerando emprego e renda para os baianos e pouco se lixando para essa histeria tardia que ainda grassa nos arraiais da terra de Ajuricaba.

Sim, porque nesses 35 anos a Semp-Toshiba também nunca investiu um único centavo em Manaus.


Affonso Brandão Hennel, fundador da Semp, e Norio Sasaki, presidente da Toshiba

Eu poderia citar dezenas de exemplos semelhantes aos dos dois empresários já citados, mas não pretendo me alongar.

Mudou alguma coisa de 1991 pra cá? Acredito que não.

No ano passado, segundo dados da Suframa, o Polo Industrial de Manaus faturou US$ 40 bilhões.

Desse montante, quanto ficou no estado?

Levando-se em conta que o orçamento total do governo do Amazonas está estimado em US$ 3 bilhão, sobra menos de 10% do faturamento do DI para custear nossas demandas crescentes e perpetuar a miséria dos grotões no interior.

Portanto, somente energúmenos de galochas ou com complexo de vira latas podem continuar a defender esse esdrúxulo “modelo de desenvolvimento” que serviu (serve) apenas para enriquecer a tripa forra uma centena de empresários alienígenas.

Quando ouço essa propaganda eleitoral apelativa da nova-cristã Vanessa, em que um desajustado locutor berra, com a voz embargada de emoção, que ninguém vai nos tirar a Zona Franca, porque “a Zona Franca é nossa, a Zona Franca é de Manaus”, tenho vontade de perguntar: “Nossa de quem, cara pálida?...”

Brincadeira tem hora.
Fonte: Blog do Simão Pessoa

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