PICICA: "Se Eichmann nunca percebeu o que estava
fazendo, para Hannah Arendt isto se deu porque ele era incapaz de
pensar. Essa incapacidade de pensar está na essência do mal banal.
Estamos aqui diante de uma reflexão de filosofia moral. Para entendê-la,
precisamos buscar referências – aliás, esta é uma constante: quando se
estuda um filósofo é necessário recorrer a outros, porque os filósofos
estão sempre dialogando uns com os outros, mesmo quando parecem falar
sozinhos."
Hannah Arendt e a banalidade do mal – Por Luiz Ferri de Barros
Por Luiz Ferri de Barros – 21/07/2015
Otto Adolf Eichmann, criminoso nazista
de guerra, ex-tenente-coronel da SS, capturado pelo serviço secreto
israelense na Argentina em maio de 1960, e levado para Israel, foi a
julgamento na Corte Distrital de Jerusalém em 11 de abril de 1961. Após
121 sessões que se estenderam por quase nove meses, foi condenado à
morte por enforcamento.
Na época, a revista The New Yorker
destacou Hannah Arendt como correspondente para a cobertura do
julgamento, o mais importante desde os que, após a Segunda Guerra,
ocorreram no Tribunal Militar Internacional de Nuremberg. Em 1963, a
partir dos artigos que publicou para a revista, Arendt lança o livro Eichmann em Jerusalém – Um Relato sobre a Banalidade do Mal, onde mescla jornalismo, história, reflexão política, direito e filosofia moral.
É nessa obra que pela primeira vez a
pensadora sugere a noção de banalidade do mal, ao constatar o contraste
entre a monstruosidade dos crimes cometidos e a personalidade “normal”,
mediana, do criminoso.
O livro não se restringe a narrar fatos,
mas a cada passo os interpreta. Também não se limita a retratar os
fatos que conduziram Eichmann ao banco dos réus sob a ótica da culpa
exclusiva do acusado. A partir de dados históricos, análise política e
considerações de filosofia moral, Arendt responsabiliza pessoas e
organizações que não estavam em julgamento em Jerusalém, entre elas os
conselhos judeus.
Por isso, mas não só por isso, Eichmann em Jerusalém
foi seu livro mais polêmico e controverso, acarretando campanhas que se
moveram contra ela e a obra, o que, visto em retrospecto, não
surpreende: contratar um livre pensador, uma filósofa da estatura dela
para produzir tal reportagem não poderia resultar em jornalismo
convencional.
Em relação ao próprio julgamento, embora
convicta da culpa do réu e defendendo sua condenação à pena de morte, a
filósofa ressalta inúmeras questões jurídicas controversas, apontando
também a dimensão política e propagandística do julgamento, montado como
um espetáculo no recém-criado Estado de Israel. A atuação do primeiro
ministro israelense, Ben-Gurion, um dos pais fundadores do país, é
objeto de análise crítica logo no início do livro e, se faltasse alguma
coisa para granjear à filósofa o repúdio da comunidade judaica, esta
seria a gota d´água.
Face à campanha que se moveu contra ela,
também a comunidade acadêmica voltou-lhe as costas, além de muitos
amigos, inclusive os mais próximos.
Intelectualmente, Hannah Arendt era
considerada arrogante, mas esse foi o preço de sua independência. Na
campanha contra ela e o livro, muitos não aceitavam como Arendt, uma
judia alemã que fora detida pela Gestapo, forçada a emigrar para a
França, que ficou presa no campo de concentração de Gurs, apátrida e sem
direitos políticos por 11 anos… como podia ela discorrer sobre os fatos
daquela forma, sem poupar qualquer das partes, nem sequer o tribunal, a
tal ponto que parecia defender o inimigo?
A campanha contra o livro levou-a a “profundo
estado de solidão, do tipo que ela mesma já analisara, e que se
instaura quando é negado a alguém o diálogo com outrem […]
experimentando o que Jaspers denominou o ‘risco público’, essa
insegurança em que incorrem aqueles que defendem a liberdade de
pensamento sem se apoiar em nenhum movimento político, nem confiar em
nada além de seu próprio julgamento independente”. (Verena Stolke, 2002)
Num pós-escrito, referindo-se à controvérsia sobre o livro e à campanha movida contra ela, Hannah Arendt refere-se que o “clamor […] versava sobre assuntos que muitas vezes não só não foram mencionados por mim, mas que nunca me ocorreram antes”.
No entanto, aquilo que ela de fato
escreveu fugia à aceitação de seus críticos. Não entenderam o ponto de
vista a partir do qual ela escrevia. O ponto de vista de quem, com a
máxima neutralidade possível, busca a compreensão de todos os fenômenos
que se apresentem, munida de poderoso instrumental de conhecimentos de
história, política, filosofia moral e do direito. É dessa perspectiva,
revisitando fatos históricos, que seu livro expõe as contradições,
paradoxos e imperfeições do julgamento de Eichmann.
Vários aspectos jurídicos são
discutidos. Talvez um dos mais interessantes seja aquele em que Arendt
analisa os conceitos de genocídio e crimes contra a humanidade,
indicando sua tipificação a partir da Segunda Guerra. Embora massacres
populacionais tenham ocorrido desde a antiguidade, por sua natureza os
crimes praticados pelos nazistas foram considerados inéditos do ponto de
vista formal, e assim eles foram julgados a partir de legislação
posterior com força retroativa.
Em Nuremberg, ao final da Segunda
Guerra, os nazistas acusados como criminosos foram julgados com base na
Carta (Acordo) de Londres, de 1945, pela qual os aliados estabeleceram o
Tribunal Militar Internacional em Nuremberg. A autora endossa a
retroatividade da lei em casos desta natureza, argumentando que a
“retroatividade […] viola apenas formalmente, não substancialmente, o
princípio nullum crimen, nulla poena sine lege, uma vez que
este se aplica significativamente apenas a atos conhecidos pelo
legislador; se um crime antes desconhecido, como o genocídio,
repentinamente aparece, a própria justiça exige julgamento segundo uma
nova lei”.
Em Jerusalém, a partir de legislação
israelense de efeito igualmente retroativo, Eichmann foi julgado sob a
Lei (Punitiva) dos Nazistas e Colaboradores dos Nazistas, de 1950, tendo
como precedente outros julgamentos do pós-guerra ocorridos em tribunais
nacionais europeus visando à punição de criminosos nazistas. Esses
tribunais, assim como a Corte Distrital de Jerusalém, tiveram por
precedente os julgamentos de Nuremberg.
Naturalmente, Hannah Arendt não deixa de
discutir o fato de Israel ter raptado Eichmann na Argentina, como o
episódio foi contornado diplomaticamente e outras circunstâncias
políticas internacionais que propiciaram o julgamento em Jerusalém. No
entanto, ela defendia a ideia de que crimes contra a humanidade deveriam
ser julgados por um Tribunal Internacional permanente, desta forma
criticando não apenas a Corte Distrital de Jerusalém e outros tribunais
nacionais do pós-guerra, quanto o Tribunal Militar Internacional de
Nuremberg, todos eles em sua opinião sendo, na prática, “cortes dos
vencedores”, razão que ela apresenta para não terem sido igualmente
julgados crimes que atribui aos aliados, em especial aos americanos no
Japão e aos russos na Polônia.
No julgamento de Eichmann, sendo
evidentes os argumentos da acusação, quais os da defesa? O réu a todo
tempo alegou que agia em cumprimento do “dever”, de “obediência a
ordens”; seu advogado preferiu tentar demonstrar a insustentável tese de
que suas ações correspondiam a “atos de estado”.
Hannah Arendt define seu livro como mera reportagem, e diz que “o
relato de um julgamento só pode discutir as questões que foram tratadas
no curso do julgamento ou que, no interesse da justiça, deveriam ser
tratadas. […] O foco de todo julgamento recai sobre a pessoa do acusado,
um homem de carne e osso com uma história individual, com um conjunto
sempre único de qualidades, peculiaridades, padrões de comportamento e
circunstâncias”.
Para ela, “a mais decisiva falha (de
caráter) em Eichmann era sua quase total incapacidade de olhar qualquer
coisa do ponto de vista do outro”, sendo, antes de tudo, um burocrata
que cumpria ordens sem pensar. Numa descrição sintética, para a autora
ele seria “uma pessoa mediana, ‘normal’, nem burra, nem doutrinada, nem
cínica […] embora inteiramente incapaz de distinguir o certo do errado”.
Segundo ela, “meia dúzia de
psiquiatras haviam atestado sua ‘normalidade’ […] considerando seu
perfil psicológico, sua atitude quanto a esposa e filhos, mãe e pai,
irmãos, irmãs e amigos, ‘não apenas normal, mas inteiramente
desejável’”. Porém, “por trás da comédia dos peritos da alma estava o
duro fato de que não se tratava, evidentemente, de um caso de sanidade
moral e muito menos de sanidade legal”.
Em outra passagem, ela afirmará que “a
não ser por sua extraordinária aplicação em obter progressos pessoais
(na hierarquia militar), ele não tinha nenhuma motivação. […] Para
falarmos em termos coloquiais, ele simplesmente nunca percebeu o que
estava fazendo”.
Se Eichmann nunca percebeu o que estava
fazendo, para Hannah Arendt isto se deu porque ele era incapaz de
pensar. Essa incapacidade de pensar está na essência do mal banal.
Estamos aqui diante de uma reflexão de filosofia moral. Para entendê-la,
precisamos buscar referências – aliás, esta é uma constante: quando se
estuda um filósofo é necessário recorrer a outros, porque os filósofos
estão sempre dialogando uns com os outros, mesmo quando parecem falar
sozinhos.
Nesse caso, Arendt dialogava com Kant. Em As Origens do Totalitarismo
(1951), Hannah Arendt buscara entender os crimes nazistas como
manifestações do mal radical, conceito kantiano que trata de uma
“propensão (humana) para o mal” que “corrompe o fundamento de todas
as máximas ao mesmo tempo que, como propensão natural, não pode ser
extirpado por forças humanas” (Kant apud Oswaldo Giacóia, 2011). A partir de Eichmann em Jerusalém, Arendt propõe o conceito de mal banal em oposição e complemento à noção kantiana de mal radical.
O mal banal é o mal extremo. Diz ela em Algumas Questões de Filosofia Moral (1965): “O
maior mal não é radical, não possui raízes, e, por não ter raízes, não
tem limitações, pode chegar a extremos impensáveis e dominar o mundo
todo.” (Arendt apud Giacóia, 2011).
Ou, como também resume Celso Lafer: “(O
mal banal) é um mal burocrático, que não tem profundidade, mas pode
destruir o mundo em função da incapacidade de pensar das pessoas, capaz
de espraiar-se pela superfície da terra como um fungo”. (Lafer apud Giacóia, 2011.)
A capacidade de pensar aqui referida não
diz respeito a dotes intelectuais – é uma dimensão moral. Trata-se da
consciência moral que opera no interior das pessoas pela reflexão sobre
as próprias ações, num permanente diálogo entre o Si e o Si Próprio.
No pensamento arendtiano, ser humano e
pessoa são entidades ontológicas distintas. À falta da reflexão moral,
que exige também a lembrança, o ser humano não atinge a dimensão de
pessoa, daí: “o maior mal perpetrado é o mal cometido por Ninguém,
isto é, por um ser humano que se recusa a ser pessoa. […] Poderíamos
dizer que o malfeitor que se recusa a pensar por si mesmo no que está
fazendo e que, em retrospectiva, também se recusa a pensar sobre o que
faz, isto é, a voltar e lembrar o que fez (que é teshuvah, isto é,
arrependimento), realmente deixou de se constituir como alguém.
Permanecendo teimosamente um ninguém, ele se revela inadequado para o
relacionamento com os outros que, bons, maus ou indiferentes, são no
mínimo pessoas.” (Arendt apud Giacóia, 2011.)
Originalmente publicado na Revista da OAB / CAASP. Edição nº 8. Dezembro de 2013.
Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.
Publica coluna semanal no Empório do Direito, às terças-feiras.
E-mail para contato: barros@velhosguerreiros.com.br
Imagem Ilustrativa do Post: Adolf Eichmann on trial #1 – the man in the glass booth // Foto de: The Huntington // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/huntingtontheatreco/6238852798/Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
Fonte: emporiododireito.com.br
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