julho 22, 2015

Hannah Arendt e a banalidade do mal – Por Luiz Ferri de Barros (emporiododireito.com.br)

PICICA: "Se Eichmann nunca percebeu o que estava fazendo, para Hannah Arendt isto se deu porque ele era incapaz de pensar. Essa incapacidade de pensar está na essência do mal banal. Estamos aqui diante de uma reflexão de filosofia moral. Para entendê-la, precisamos buscar referências – aliás, esta é uma constante: quando se estuda um filósofo é necessário recorrer a outros, porque os filósofos estão sempre dialogando uns com os outros, mesmo quando parecem falar sozinhos."

Hannah Arendt e a banalidade do mal – Por Luiz Ferri de Barros



Por Luiz Ferri de Barros – 21/07/2015

Otto Adolf Eichmann, criminoso nazista de guerra, ex-tenente-coronel da SS, capturado pelo serviço secreto israelense na Argentina em maio de 1960, e levado para Israel, foi a julgamento na Corte Distrital de Jerusalém em 11 de abril de 1961. Após 121 sessões que se estenderam por quase nove meses, foi condenado à morte por enforcamento.

Na época, a revista The New Yorker destacou Hannah Arendt como correspondente para a cobertura do julgamento, o mais importante desde os que, após a Segunda Guerra, ocorreram no Tribunal Militar Internacional de Nuremberg. Em 1963, a partir dos artigos que publicou para a revista, Arendt lança o livro Eichmann em Jerusalém – Um Relato sobre a Banalidade do Mal, onde mescla jornalismo, história, reflexão política, direito e filosofia moral.

É nessa obra que pela primeira vez a pensadora sugere a noção de banalidade do mal, ao constatar o contraste entre a monstruosidade dos crimes cometidos e a personalidade “normal”, mediana, do criminoso.

O livro não se restringe a narrar fatos, mas a cada passo os interpreta. Também não se limita a retratar os fatos que conduziram Eichmann ao banco dos réus sob a ótica da culpa exclusiva do acusado. A partir de dados históricos, análise política e considerações de filosofia moral, Arendt responsabiliza pessoas e organizações que não estavam em julgamento em Jerusalém, entre elas os conselhos judeus.
Por isso, mas não só por isso, Eichmann em Jerusalém foi seu livro mais polêmico e controverso, acarretando campanhas que se moveram contra ela e a obra, o que, visto em retrospecto, não surpreende: contratar um livre pensador, uma filósofa da estatura dela para produzir tal reportagem não poderia resultar em jornalismo convencional.

Em relação ao próprio julgamento, embora convicta da culpa do réu e defendendo sua condenação à pena de morte, a filósofa ressalta inúmeras questões jurídicas controversas, apontando também a dimensão política e propagandística do julgamento, montado como um espetáculo no recém-criado Estado de Israel. A atuação do primeiro ministro israelense, Ben-Gurion, um dos pais fundadores do país, é objeto de análise crítica logo no início do livro e, se faltasse alguma coisa para granjear à filósofa o repúdio da comunidade judaica, esta seria a gota d´água.

Face à campanha que se moveu contra ela, também a comunidade acadêmica voltou-lhe as costas, além de muitos amigos, inclusive os mais próximos.

Intelectualmente, Hannah Arendt era considerada arrogante, mas esse foi o preço de sua independência. Na campanha contra ela e o livro, muitos não aceitavam como Arendt, uma judia alemã que fora detida pela Gestapo, forçada a emigrar para a França, que ficou presa no campo de concentração de Gurs, apátrida e sem direitos políticos por 11 anos… como podia ela discorrer sobre os fatos daquela forma, sem poupar qualquer das partes, nem sequer o tribunal, a tal ponto que parecia defender o inimigo?

A campanha contra o livro levou-a a “profundo estado de solidão, do tipo que ela mesma já analisara, e que se instaura quando é negado a alguém o diálogo com outrem […] experimentando o que Jaspers denominou o ‘risco público’, essa insegurança em que incorrem aqueles que defendem a liberdade de pensamento sem se apoiar em nenhum movimento político, nem confiar em nada além de seu próprio julgamento independente”. (Verena Stolke, 2002)

Num pós-escrito, referindo-se à controvérsia sobre o livro e à campanha movida contra ela, Hannah Arendt refere-se que o “clamor […] versava sobre assuntos que muitas vezes não só não foram mencionados por mim, mas que nunca me ocorreram antes”.

No entanto, aquilo que ela de fato escreveu fugia à aceitação de seus críticos. Não entenderam o ponto de vista a partir do qual ela escrevia. O ponto de vista de quem, com a máxima neutralidade possível, busca a compreensão de todos os fenômenos que se apresentem, munida de poderoso instrumental de conhecimentos de história, política, filosofia moral e do direito. É dessa perspectiva, revisitando fatos históricos, que seu livro expõe as contradições, paradoxos e imperfeições do julgamento de Eichmann.

Vários aspectos jurídicos são discutidos. Talvez um dos mais interessantes seja aquele em que Arendt analisa os conceitos de genocídio e crimes contra a humanidade, indicando sua tipificação a partir da Segunda Guerra. Embora massacres populacionais tenham ocorrido desde a antiguidade, por sua natureza os crimes praticados pelos nazistas foram considerados inéditos do ponto de vista formal, e assim eles foram julgados a partir de legislação posterior com força retroativa.

Em Nuremberg, ao final da Segunda Guerra, os nazistas acusados como criminosos foram julgados com base na Carta (Acordo) de Londres, de 1945, pela qual os aliados estabeleceram o Tribunal Militar Internacional em Nuremberg. A autora endossa a retroatividade da lei em casos desta natureza, argumentando que a “retroatividade […] viola apenas formalmente, não substancialmente, o princípio nullum crimen, nulla poena sine lege, uma vez que este se aplica significativamente apenas a atos conhecidos pelo legislador; se um crime antes desconhecido, como o genocídio, repentinamente aparece, a própria justiça exige julgamento segundo uma nova lei”.

Em Jerusalém, a partir de legislação israelense de efeito igualmente retroativo, Eichmann foi julgado sob a Lei (Punitiva) dos Nazistas e Colaboradores dos Nazistas, de 1950, tendo como precedente outros julgamentos do pós-guerra ocorridos em tribunais nacionais europeus visando à punição de criminosos nazistas. Esses tribunais, assim como a Corte Distrital de Jerusalém, tiveram por precedente os julgamentos de Nuremberg.

Naturalmente, Hannah Arendt não deixa de discutir o fato de Israel ter raptado Eichmann na Argentina, como o episódio foi contornado diplomaticamente e outras circunstâncias políticas internacionais que propiciaram o julgamento em Jerusalém. No entanto, ela defendia a ideia de que crimes contra a humanidade deveriam ser julgados por um Tribunal Internacional permanente, desta forma criticando não apenas a Corte Distrital de Jerusalém e outros tribunais nacionais do pós-guerra, quanto o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, todos eles em sua opinião sendo, na prática, “cortes dos vencedores”, razão que ela apresenta para não terem sido igualmente julgados crimes que atribui aos aliados, em especial aos americanos no Japão e aos russos na Polônia.

No julgamento de Eichmann, sendo evidentes os argumentos da acusação, quais os da defesa? O réu a todo tempo alegou que agia em cumprimento do “dever”, de “obediência a ordens”; seu advogado preferiu tentar demonstrar a insustentável tese de que suas ações correspondiam a “atos de estado”.
Hannah Arendt define seu livro como mera reportagem, e diz que “o relato de um julgamento só pode discutir as questões que foram tratadas no curso do julgamento ou que, no interesse da justiça, deveriam ser tratadas. […] O foco de todo julgamento recai sobre a pessoa do acusado, um homem de carne e osso com uma história individual, com um conjunto sempre único de qualidades, peculiaridades, padrões de comportamento e circunstâncias”.

Para ela, “a mais decisiva falha (de caráter) em Eichmann era sua quase total incapacidade de olhar qualquer coisa do ponto de vista do outro”, sendo, antes de tudo, um burocrata que cumpria ordens sem pensar. Numa descrição sintética, para a autora ele seria “uma pessoa mediana, ‘normal’, nem burra, nem doutrinada, nem cínica […] embora inteiramente incapaz de distinguir o certo do errado”.

Segundo ela, “meia dúzia de psiquiatras haviam atestado sua ‘normalidade’ […] considerando seu perfil psicológico, sua atitude quanto a esposa e filhos, mãe e pai, irmãos, irmãs e amigos, ‘não apenas normal, mas inteiramente desejável’”. Porém, “por trás da comédia dos peritos da alma estava o duro fato de que não se tratava, evidentemente, de um caso de sanidade moral e muito menos de sanidade legal”.

Em outra passagem, ela afirmará que “a não ser por sua extraordinária aplicação em obter progressos pessoais (na hierarquia militar), ele não tinha nenhuma motivação. […] Para falarmos em termos coloquiais, ele simplesmente nunca percebeu o que estava fazendo”.

Se Eichmann nunca percebeu o que estava fazendo, para Hannah Arendt isto se deu porque ele era incapaz de pensar. Essa incapacidade de pensar está na essência do mal banal. Estamos aqui diante de uma reflexão de filosofia moral. Para entendê-la, precisamos buscar referências – aliás, esta é uma constante: quando se estuda um filósofo é necessário recorrer a outros, porque os filósofos estão sempre dialogando uns com os outros, mesmo quando parecem falar sozinhos.

Nesse caso, Arendt dialogava com Kant. Em As Origens do Totalitarismo (1951), Hannah Arendt buscara entender os crimes nazistas como manifestações do mal radical, conceito kantiano que trata de uma “propensão (humana) para o mal” que “corrompe o fundamento de todas as máximas ao mesmo tempo que, como propensão natural, não pode ser extirpado por forças humanas” (Kant apud Oswaldo Giacóia, 2011). A partir de Eichmann em Jerusalém, Arendt propõe o conceito de mal banal em oposição e complemento à noção kantiana de mal radical.

O mal banal é o mal extremo. Diz ela em Algumas Questões de Filosofia Moral (1965): “O maior mal não é radical, não possui raízes, e, por não ter raízes, não tem limitações, pode chegar a extremos impensáveis e dominar o mundo todo.” (Arendt apud Giacóia, 2011).

Ou, como também resume Celso Lafer: “(O mal banal) é um mal burocrático, que não tem profundidade, mas pode destruir o mundo em função da incapacidade de pensar das pessoas, capaz de espraiar-se pela superfície da terra como um fungo”. (Lafer apud Giacóia, 2011.)

A capacidade de pensar aqui referida não diz respeito a dotes intelectuais – é uma dimensão moral. Trata-se da consciência moral que opera no interior das pessoas pela reflexão sobre as próprias ações, num permanente diálogo entre o Si e o Si Próprio.

No pensamento arendtiano, ser humano e pessoa são entidades ontológicas distintas.  À falta da reflexão moral, que exige também a lembrança, o ser humano não atinge a dimensão de pessoa, daí: “o maior mal perpetrado é o mal cometido por Ninguém, isto é, por um ser humano que se recusa a ser pessoa. […] Poderíamos dizer que o malfeitor que se recusa a pensar por si mesmo no que está fazendo e que, em retrospectiva, também se recusa a pensar sobre o que faz, isto é, a voltar e lembrar o que fez (que é teshuvah, isto é, arrependimento), realmente deixou de se constituir como alguém. Permanecendo teimosamente um ninguém, ele se revela inadequado para o relacionamento com os outros que, bons, maus ou indiferentes, são no mínimo pessoas.” (Arendt apud Giacóia, 2011.)


Originalmente publicado na Revista da OAB / CAASP. Edição nº 8. Dezembro de 2013.


Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.
Publica coluna semanal no Empório do Direito, às terças-feiras.                                                         
E-mail para contato: barros@velhosguerreiros.com.br                                                             

Imagem Ilustrativa do Post: Adolf Eichmann on trial #1 – the man in the glass booth // Foto de: The Huntington // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/huntingtontheatreco/6238852798/
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

Fonte: emporiododireito.com.br

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