PICICA: "Nos termos atuais, para a burguesia inviabilizar o governo petista, basta o deslocamento do PMDB para um bloco de oposição.
Não tendo
outra alternativa no horizonte imediato que não manter o rumo, a
comandante tenta se manter firme no timão exercendo a arte de fazer de
conta que não é com ela, enquanto caminha decididamente para a
catástrofe. Para se manter cede aos interesses do capital e mergulha
ainda mais na tentativa insana de manter a base aliada que se desfaz sob
seus pés. Esta tática permite sobreviver no campo imediato, mas tudo
indica que fortalece as condições da futura derrota eleitoral. Este é o
paradoxo.
Não podendo
mobilizar suas bases sociais que correm o risco de serem capturadas pela
direita, pela ação em defesa de direitos, conquistas ou condições de
vida (uma vez que o presente ajuste e a linha de governo praticada nos
últimos doze anos caminharam no sentido contrário), resta a esperança de
que, mais uma vez, a chantagem da necessidade do apoio a este governo
contra a “direita” ou o “conservadorismo”."
É o lobo, é o lobo!
Por Mauro Luis Iasi.
Uma vez mais
se apresenta o alerta sobre a possibilidade de interrupção do mandato
presidencial e a possibilidade de algum tipo de golpe. Desta vez pelas
declarações golpistas do PSDB, preocupado que o prazo para que a
interrupção leve a uma nova eleição está para se esgotar. Como das
outras vezes, intensificam-se os ataques ao governo, convocam-se novas
manifestações e os meios de comunicações atacam com novas e requentadas
denúncias.
Continuamos acreditando
que a opção principal da direita, no sentido mais preciso dos
interesses de classe ligados ao grande capital monopolista, caminha em
outro sentido, qual seja, de produzir uma transição sob um governo fraco
e sob cerco, enquanto se gesta uma alternativa para substituí-lo nas
eleições de 2018. Alertávamos, no entanto, em outra oportunidade, que um
dos mecanismos desta operação, a constante ameaça de impedimento
antecipado da presidente, poderia ganhar uma dinâmica própria e se
viabilizar como alternativa e, desta maneira, não estaria por princípio
descartada como possibilidade pelo bloco dominante.
O cenário
atual comprova a persistência deste quadro. Intensificam-se os ataques,
enquanto a base de sustentação do governo no Congresso é corroída e os
meios de comunicação hegemônicos, por meio de um eficiente manejo do
anti-petismo, trabalham para configurar um clima de descontrole total
nas hostes governistas. Ao mesmo tempo o governo reage intensificando
suas concessões ao bloco dominante: implanta o ajuste e as políticas de
austeridade, intensifica os ataques aos trabalhadores (como nas medidas
provisórias 664 e 665, no veto às superficiais mudanças na previdência,
etc.), opera cortes na educação e na saúde, e impõe arrocho sobre o
funcionalismo público federal. Tudo isso sem deixar de abrir seus cofres
em generosas contribuições ao agronegócio e financiar a manutenção de
empregos com redução de salários e benefícios para as grandes empresas.
Há uma
relação entre estes dois vetores da conjuntura que nem sempre fica tão
visível. O desgaste inevitável que as concessões ao grande capital
monopolista produzem gera uma igualmente inevitável depressão nos
setores sociais que sustentaram a atual presidente na expectativa de uma
mudança de orientação. A esquerda petista, isolada e minoritária no
interior do PT, está rouca de tanta tentar alertar que o caminho
escolhido contribui com a estratégia da direita de ir sangrando o
governo e dilapidando sua base social para derrotá-lo eleitoralmente na
próxima eleição nacional. Propõem um “cavalo de pau”, rompendo com a
aliança com o PMDB e retomando o caminho de um projeto democrático
popular.
Neste ponto a
situação ganha uma complexidade que está longe de ser simples de ser
compreendida. A analogia do “cavalo de pau” serve como imagem da urgente
necessidade de uma mudança radical de rumos, mas é absolutamente
inapropriada para o momento. O ato de puxar o freio de mão e produzir
uma mudança abrupta de direção, inclusive valendo-se da derrapagem
lateral do veículo, costuma funcionar, não sem riscos de capotagens,
quando se trata de veículos leves. Mas no caso de um grande navio, há
restrições de movimento por conta de suas dimensões e do tamanho de seu
calado. Quando se aproxima do porto, por exemplo, uma embarcação como
essa não pode nem sequer sair fora do rumo do canal, e mesmo com suas
máquinas desligadas chega a percorrer milhas antes de parar. Por essas
condições estruturais, ele está impossibilitado de dar o que se chamaria
de um “cavalo de pau”. O governo petista está mais para um grande navio
do que para um carro esporte.
No entanto,
cabe nos perguntar: por que motivo o governo opera num aparente paradoxo
que contribui para a estratégia daqueles que querem derrotá-lo? Podemos
falar o que quisermos deste governo (muito temos falado de como ele
operou uma estratégica que desarmou a classe trabalhadora conduzindo-a
ao pântano da conciliação de classes), mas não que ele é ingênuo ou que
lhe falta habilidade política. Aqui a analogia com o navio é ainda mais
útil, pois não adianta olharmos para a superfície do mar ou para as
hipnóticas luzes de bordo, pois a resposta está no canal em que navega.
O caminho
escolhido pelo PT como via de desenvolvimento de sua estratégia acabou
por considerar virtuosa uma configuração que segundo seu juízo
constituía uma imprudência da burguesia e um cenário favorável aos
desenvolvimento de “reformas” gradualistas que beneficiariam aos
trabalhadores. Este equívoco se fundamenta na incompreensão de um dos
elementos do Estado burguês na sua configuração contemporânea.
A FORMA DEMOCRÁTICA DA REPÚBLICA BURGUESA
Talvez possa
parecer, a um olhar superficial, que a forma democrática da república
burguesa e a prevalência das eleições como um meio de composição de seus
governos, fosse um equívoco das classes dominantes (ou ainda, em outro
registro, uma concessão que só se explica pela pressão dos
trabalhadores). Afinal, sendo as eleições um jogo numérico e a classe
trabalhadora inegavelmente mais numerosa que as classes dominantes, a
tendência seria a formação gradual maiorias que pouco a pouco poderiam
ir construindo a vontade geral como expressão dos interesses dos
trabalhadores, reduzindo o poder político da burguesia à
proporcionalidade de sua expressão quantitativa.
O que os
atuais reformistas (a bem da verdade estes senhores acabaram ficando
muito aquém do reformismo, a ponto de ter de ficar a cargo da esquerda
petista a defesa da retomada do rumo das reformas), de fato desconhecem é
que a burguesia já equacionou há muito tempo este problema. Podemos
comprovar isso resgatando o pensamento de James Madison (1751-1836), que
foi um dos destacados redatores de O Federalista (uma serie de
ensaios, publicada 1788, defendendo a federação contra a forma
confederada), no contexto da luta pela independência dos EUA e
consolidação de sua forma política republicana.
O problema
dos revolucionários norte-americanos, resumidamente, era determinar qual
seria a forma de governo da jovem nação que poderia responder
simultaneamente a duas exigências cruciais: manter a necessária unidade
política, economia e militar das ex-colônias, e garantir a liberdade das
partes aderissem à nação, evitando o risco da tirania.
Diante disso
se enfrentam com o problema das facções, entendidas, nos termos de
Madison, como grupos de cidadãos, maiorias ou minorias, que unidos por
sentimentos e interesses comuns se opõem a outras facções, cidadãos ou
mesmo interesses coletivos de uma comunidade. Parecia a Madison que as
duas possibilidades apresentadas – atacar as causas das facções ou
tentar controlar seus efeitos – se apresentavam impraticáveis. Isso
porque as causas estariam ligadas à natureza humana, sendo portanto,
incontornáveis. Quanto ao controle dos efeitos, a impraticabilidade
derivaria do fato de que teria que ser operada pelos próprios seres
humanos que colocariam suas vontades e paixões como critério de tal
controle. A solução encontrada seria, segundo Madison, colocar tanto a
natureza como seus efeitos a serviço de uma forma que possibilitasse a
República. A chave para tal feito seria expressa na formula: “ambição
será incentivada para enfrentar a ambição” (O Federalista, n.51).
Antes de ver
como isso se materializa em uma forma política, é importante fazer uma
ressalva. Apesar de localizar na natureza humana o comportamento de
facção, o revolucionário norte-americano sabe que a base material da
disputa dos diversos interesses que compõem uma sociedade não é a mera
predisposição dos seres humanos como criaturas “ambiciosas, vingativas e
rapaces”. Por isso poderá concluir, sem abandonar aquela premissa, que
“a fonte mais comum e duradoura das facções tem sido a distribuição
variada e desigual da propriedade”, de tal forma que “aqueles que
possuem e os não-proprietários invariavelmente corporificam distintos
interesses na sociedade”.
Todos são
juízes de suas próprias causas. Uma vez que prevaleça o poder de uma
facão ou conjunto de facções associadas, seria natural supor que esta
maioria tente impor seus interesses sobre as demais, impondo os
interesses dos manufatureiros sobre os donos de terra, ou o inverso,
“não havendo em nenhum dos casos consideração para com a justiça ou o
interesse público”. A confiança de que “estadistas esclarecidos”
poderiam funcionar em prol do equilíbrio e da prevalência do bem público
é descartada pelo autor com requintes de pragmatismo: “nem sempre os
estadistas esclarecidos estarão no leme”.
Notem que,
como fica evidente, o objetivo destes senhores é evitar a tirania da
maioria. A solução de uma “democracia pura”, como a denominavam, é
recusada. Ela é definida como necessariamente própria de pequenas
sociedades formadas por indivíduos virtuosos (definidos como aqueles que
colocam o bem comum sobre o interesse particular) e cuja base é a
frugalidade, nos termos de Montesquieu. Em outras palavras, essa forma
política só funcionaria num contexto de pouca riqueza e uma vida simples
e estaria descartada para grandes nações poderosas econômica e
militarmente. Neste ponto, a afirmação de que as facções se formam pela
distribuição desigual da propriedade ganha uma dimensão decisiva.
A forma da
“democracia pura” em uma sociedade moderna seria palco de “distúrbios e
controvérsias” e levaria necessariamente a um quadro de insegurança e
incapacidade de garantir o direito de propriedade, tendo
conseguentemente, segundo o juízo de Madison, uma vida curta e um fim
violento. A solução, portanto, é a uma república em que se aplica o
“esquema da representação”.
Entre as
várias vantagens apresentadas por Madison para defender a república
contra a democracia pura, estaria em primeiro lugar o fato de que por
meio da representação os “pontos de vista da população são filtrados”
pelo crivo de alguns cidadãos que irão representá-los. Como o povo
escolheria os “melhores” nesse processo de seleção, os seria justo dizer
que os eleitos saberão discernir os verdadeiros interesses do país,
graças ao seu “patriotismo e amor pela justiça”, dificilmente
sacrificando estes interesses por “considerações temporárias ou
parciais”, nas palavras de James Madison que chegou a ser o quarto
presidente dos EUA.
Evidentemente
soa estranho esse grau de fé nas virtudes morais expressa na pena do
fundador do Partido Republicano, um sujeito, como vimos, dotado
justamente de uma posição marcada pelo pragmatismo. Sem dúvida, Madison
tem plena consciência de que indivíduos de “temperamento faccioso e
propósitos maldosos” podem por vários meios, inclusive a intriga e a
corrupção, conseguir os votos necessários e “depois trair os interesses
do povo”. No entanto, para ele, a solução estaria na própria dimensão da
república moderna, no sentido quantitativo propriamente dito.
O argumento
de Madison é de que a fragmentação de uma grande população em diversas
facções e partidos, pulveriza a representação. Assim, com cada um
buscando apenas seu próprio interesse, fica difícil formar maiorias,
obriga-se que os governantes (ainda que sendo expressão de uma maioria
eleitoral) negociem com um conjunto pulverizado de interesses para
lograr estabilidade em seu governo. Diz Madison ao falar da república
que defende:
“alargado
este campo (o do número de cidadão de um Estado) teremos uma variedade
maior de partidos e interesses, tornando menos provável a constituição
de uma maioria no conjunto que, alegando uma motivação comum, usurpe os
direitos de outros cidadãos”.
Desta
maneira, conclui Madison, teríamos uma estrutura adequada, um “remédio
republicano para as doenças mais incidentes sobre um governo
republicano”.
Reparem: a
vacina contra a possível “doença” de uma maioria chegar ao poder em
algum ponto do Estado burguês está dada desde 1788. Não é demais
relembrar que tal estrutura adequada se completa com um redesenho da
solução clássica da divisão de poderes, muito além da simples divisão
funcional na qual quem governa não redige as leis, e quem as redige não
governa, da mesma forma que aquele que julga não redige a lei, nem
governa.
O MENINO E O LOBO
Agora,
depois da experiência norte-americana, aplica-se uma dinâmica de pesos e
contrapesos. Isto é, a cada poder de uma esfera se apresenta um poder
para que a outra o controle, como no dispositivo de veto do executivo a
uma lei elaborada pelo legislativo e a possibilidade de derrubada do
veto pelo segundo, assim como, se houver dúvidas os tribunais são
acionados e se tudo der errado há forças armadas para “garantir” a
constituição em defesa da propriedade (notem como estamos hoje muito
longe da necessidade deste último expediente).
No contexto atual estas chamadas estruturas adequadas não estão menos, mas muito mais eficientes e sofisticadas.
Em formações sociais como a nossa, na qual a contradição entre
proprietários e não-proprietários é explosiva, o risco de uma tirania da
maioria é enfrentado com rigor e profissionalismo.
Além de um
eventual executivo que expresse uma certa maioria eleitoral ligeiramente
comprometida com interesses populares ser obrigado a compor sua
governabilidade com os partidos que compõem o poder legislativo, o
filtro eleitoral garante que ali se represente o conjunto das facções
das classes proprietárias, obstaculizando ao máximo a possibilidade da
maioria real na sociedade se apresentar como maioria na chamada
“representação”.
Uma das
formas conhecidas, e não por acaso veementemente garantida na atual
farsa da reforma política, é o financiamento privado de campanha em sua
forma explícita. O poder econômico na sociedade capitalista sempre
determina a disputa eleitoral, mesmo numa situação na qual se proíba o
financiamento direto de empresários, seja por formas ilícitas e caminhos
alternativos (que não deixam de agir mesmo na legalidade do
financiamento privado) seja por seu poder indireto no controle de várias
esferas da vida, da comunicação de massa, da cultura, do assedio que se
funda no poder brutal que patrões têm sobre os trabalhadores nos locais
de trabalho, etc.
Uma vez
entrando neste canal e aceitando suas regras, que por um tempo
favoreceram os governos petistas e sua continuidade, torna-se muito
difícil sair, pelo menos sem rupturas consideráveis. Ocorre que é
exatamente a dimensão da ruptura que foi abandonada no desenho da
estratégia. Querer introduzi-la agora é uma artificialidade infantil,
ingênua e, por uma motivo mais banal, impossível.
Nos termos atuais, para a burguesia inviabilizar o governo petista, basta o deslocamento do PMDB para um bloco de oposição.
Não tendo
outra alternativa no horizonte imediato que não manter o rumo, a
comandante tenta se manter firme no timão exercendo a arte de fazer de
conta que não é com ela, enquanto caminha decididamente para a
catástrofe. Para se manter cede aos interesses do capital e mergulha
ainda mais na tentativa insana de manter a base aliada que se desfaz sob
seus pés. Esta tática permite sobreviver no campo imediato, mas tudo
indica que fortalece as condições da futura derrota eleitoral. Este é o
paradoxo.
Não podendo
mobilizar suas bases sociais que correm o risco de serem capturadas pela
direita, pela ação em defesa de direitos, conquistas ou condições de
vida (uma vez que o presente ajuste e a linha de governo praticada nos
últimos doze anos caminharam no sentido contrário), resta a esperança de
que, mais uma vez, a chantagem da necessidade do apoio a este governo
contra a “direita” ou o “conservadorismo”.
Sabemos que a direita se move em várias frentes, é evidente a retomada de um conservadorismo
sem máscaras e preocupante. Compreendemos que papel estes fatores
ocupam na estratégia do desgaste visando uma futura derrota eleitoral do
petismo, ou na possibilidade de antecipar este desfecho por uma
interrupção do mandato da presidente. Mas a direita e a forma de
manifestação do conservadorismo tem um papel, também, na estratégia
governista. É o de desviar a atenção da brutalidade do ajuste e do real e
evidente caráter do compromisso do governo com as condições necessárias
à retomada da acumulação de capitais, criando uma cortina de fumaça que
desvia a atenção para uma abstrata contraposição entre conservadorismo e
progressismo.
Além de
desviar a atenção do ataque operado contra os trabalhadores, a educação,
a saúde púbica e tantas outras áreas, procurando desarmar a resistência
que se ensaia nas greves e nas lutas sociais, há também a clara
intenção de desvincular-se do governo que naufraga para, justificado
pelo combate ao conservadorismo, manter a mesma estratégia e a
continuidade do ciclo petista.
Não há
solução para esta estratégia nos rumos escolhidos, ao mesmo tempo não há
como buscar outros caminhos mantendo-se no essencial esta estratégia
que ao nosso ver se esgotou.
No melhor
cenário imaginado pela comandante agarrada ao timão é que o reajuste dê
certo, a economia capitalista volte a crescer, o governo logre manter a
aliança com o PMDB e tenha condições de disputar as eleições para
renovar o mito. Vejam que o melhor cenário renova o caminho que os
colocou no impasse em que se encontram.
É bom que lembremo-nos que, pelo menos na versão original da história, quando o lobo veio mesmo… ninguém acreditou no menino.
***
Mauro Iasi é
professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do
NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e
membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
Fonte: Blog da Boitempo
Fonte: Blog da Boitempo
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