PICICA: "A saúde, como política social pública, é produto de relações contraditórias entre cultura e história, Estado e sociedade, capital e trabalho, liberdade e igualdade. A política, como ensina a professora da UnB Potyara Pereira, deve ser aqui entendida como não só provisão e alocação de recursos pelo Estado para sua aplicação sobre a sociedade, mas como fruto de escolhas e decisões que ocorrem na arena conflituosa de poder, tendo também, como política de ação, perfil, funções e objetivos próprios. Desse modo, consideramos que todo serviço de saúde está regido por uma política.
Um cuidado diante da proposta de novas instituições na área da Saúde Mental deve ser, então, o de questionar seu modelo, sua política. A quem se destina? Por quem foi elaborado? A que distância está do que o professor de PUC-SP Peter Pal Pélbart chama de “manicômio mental”, que representa o campo ideológico resistente às mudanças trazidas pela reforma psiquiátrica? Que atores participam da construção do cotidiano dessa instituição, e no processo de formulação, implementação e avaliação das ações? Quais os conflitos que existem entre os atores políticos envolvidos no campo no qual se desenvolve a ação desse serviço? Que teorias e paradigmas norteiam as ofertas terapêuticas?"
Saúde mental, drogas e segregação
[fotos:
artista performático Pyotr Pavlensky corta um pedaço do lóbulo de sua
orelha, em sua ação de protesto chamada "Segregação", em Moscou, contra o
uso da psiquiatria para propósitos políticos]
È preciso interrogar os serviços destinados aos jovens drogaditos
A saúde, como política social pública, é produto de relações
contraditórias entre cultura e história, Estado e sociedade, capital e
trabalho, liberdade e igualdade. A política, como ensina a professora da
UnB Potyara Pereira, deve ser aqui entendida como não só provisão e
alocação de recursos pelo Estado para sua aplicação sobre a sociedade,
mas como fruto de escolhas e decisões que ocorrem na arena conflituosa
de poder, tendo também, como política de ação, perfil, funções e
objetivos próprios. Desse modo, consideramos que todo serviço de saúde
está regido por uma política.
Um cuidado diante da proposta de novas instituições na área da Saúde
Mental deve ser, então, o de questionar seu modelo, sua política. A quem
se destina? Por quem foi elaborado? A que distância está do que o
professor de PUC-SP Peter Pal Pélbart chama de “manicômio mental”, que
representa o campo ideológico resistente às mudanças trazidas pela
reforma psiquiátrica? Que atores participam da construção do cotidiano
dessa instituição, e no processo de formulação, implementação e
avaliação das ações? Quais os conflitos que existem entre os atores
políticos envolvidos no campo no qual se desenvolve a ação desse
serviço? Que teorias e paradigmas norteiam as ofertas terapêuticas?
Vemos ‒ com alarme ‒ uma substituição da clientela hospitalar a partir
da progressiva implantação de serviços comunitários de saúde mental no
município, num novo ‒ e questionável ‒ uso da velha internação
psiquiátrica. Esse movimento está totalmente alinhado a uma prática
historicamente manicomial, entendendo o manicômio não somente como a
estrutura física do hospital, mas como o conjunto de saberes e práticas –
científicas, sociais, legislativas e jurídicas – que fundamentam um
lugar de segregação e patologização da vivência humana. Ou seja: os
“drogados” são os desrazoados, os “loucos” da vez.
Por outro lado, mas na mesma direção, têm proliferado no Brasil as
Comunidades Terapêuticas, proposta já discutida pelo Ministério da
Saúde, em sua "Política para a atenção integral a usuários de álcool e
outras drogas", e regulamentada pela Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (ANVISA), dando forma e conteúdo oficial a um movimento que
sofre severas críticas ao longo da última década, assim como muitas
denúncias e rigorosas fiscalizações, que não raro se deparam com
imperdoáveis práticas que se assemelham às práticas dos primeiros
hospícios, sem garantia dos direitos humanos mais básicos.
No modelo "comunidade terapêutica" ou do modelo médico, a droga, o
indivíduo e o contexto são considerados, respectivamente, o agente
gerador de dependência, o hospedeiro “vítima”, e o meio-ambiente sem lei
e sem Deus, o que autoriza tratamentos com hospitalização, terapia
farmacológicas de manutenção com opiáceos e com antagonistas, terapia
cognitivo-comportamental, aconselhamentos baseados no uso da autoridade
racional, grupos de mútua-ajuda focados na abstinência e intervenções
baseadas em abordagens religiosas.
O modelo jurídico-moral assenta-se numa visão dualista da realidade. A
coexistência de posições opostas e irredutíveis (indivíduo-droga,
legalidade-ilegalidade e finalidade médica e não médica) define esta
concepção. Esse ponto de vista está relacionado a medidas “educativas” e
preventivas, articuladas a princípios repressivos.
Já no modelo sociocultural, a ênfase é atribuída ao contexto. A droga
adquire significado e importância não tanto pelas suas propriedades, mas
pela maneira como cada sociedade define sua utilização. O uso de drogas
ilícitas é visto como um desvio do comportamento normal, e as condições
socioeconômicas e o ambiente em que vive o indivíduo são tidas como
razões para esse desvio.
Temos que buscar, em outra direção, modelos de atendimento nos quais o
indivíduo desempenhe o papel de agente ativo, e a interação
droga-usuário seja alvo apenas de uma observação. Admite-se, desse ponto
de vista, que o uso da droga é um comportamento que persistirá enquanto
desempenhar uma função para o indivíduo. O contexto é concebido em
termos da influência sobre o usuário das atitudes e condutas do meio
sociofamiliar, e não está dissociado do contexto mais amplo, a própria
civilização contemporânea, com seus modos peculiares de consumo
exacerbado e de precariedade simbólica.
Etimologicamente, segregar significa separar algo que se torna
heterogêneo a um todo. A psicanalista Colette Soler afirma, seguindo seu
mestre, o psicanalista francês Jacques Lacan ‒ autor da frase “na
sociedade, tudo o que existe se baseia na segregação” ‒ que "a
segregação é uma via de tratar o insuportável, o impossível de
suportar”, e que nossa sociedade se revela como fundamentalmente
segregativa. A sociedade moderna, segundo a filósofa Hannah Arendt,
impõe conformismo, previsibilidade de comportamentos e isolamento, já
que não resultou da emancipação dos trabalhadores, mas da emancipação do
trabalho e seu predomínio sobre outras atividades da vida, com o que
concorda o psicanalista François Leguil, para quem a segregação é um
sintoma de nossa época, um compromisso entre o desaparecimento dos
ideais e um lugar crescente de “mais de gozo” (equivalente lacaniano da
“mais-valia” de Marx, que corresponde à recuperação de um gozo perdido,
que retorna como sintoma). O mecanismo de deixar os “outros” do lado de
fora de um determinado conjunto pode evitar o encontro com aquilo que a
sociedade não quer saber, mas essa tentativa de paz interna à vida da
comunidade trará, como retorno, o pior, como o crescente aumento da
violência na população mais jovem.
A Psicanálise, por meio de seu trabalho clínico, pode atuar como uma
estratégia de não segregação nos novos serviços de Saúde Mental,
possibilitando questionamentos da dimensão política, abrindo lugar aos
sujeitos para os quais os serviços da Reforma Psiquiátrica se destinam, e
fazendo circular os discursos ali onde o consumo da droga paralisou o
processo de subjetivação. Assim, pode questionar a segregação, ao
promover outro modo de inclusão, outras formas de inscrição no laço
social.
A Psicanálise se dá o direito de interrogar os drogaditos pela mesma
razão que interroga a sociedade naquilo que seria a relevância da
verdade do desejo, das alienações da existência humana, da condição
estrutural de ser da linguagem que ocupamos, das contingências da nossa
inserção social e histórica. O sintoma do sujeito sempre é, para a
Psicanálise, um indicativo do insuportável do Real. Convidar à
investigação do sintoma é uma aposta no sujeito, para que este ‒ cada um
‒ assuma a tarefa de construir seu próprio destino. Um a um.
Singularmente.
Fonte: CAPUT
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