julho 30, 2015

De quem é esse bebê? (MINAS COM LACAN)

PICICA: "Se uma frase inaugural sobre a origem faz alusão ao enigma entre os sexos e indaga “de onde vêm os bebês?”, podemos extrair da situação vivenciada há cerca de um ano em Belo Horizonte, com mães usuárias de drogas, a seguinte questão: “para onde vão os bebês?”. Ou, ainda, “de quem é esse bebê?”.

A postagem de hoje do Portal “Minas com Lacan” aborda uma polêmica atual com relação ao destino de bebês e mães usuárias de drogas. As consequências possíveis de uma recomendação, em que a 23ª Promotoria de Justiça da Infância e Juventude Cível de Belo Horizonte solicita que profissionais de maternidades públicas e Centros de Saúde notifiquem à Vara da Infância todos os casos de gestantes ou puérperas usuárias de drogas, ou, nos termos esboçados pela Justiça, “as situações de mães usuárias de substâncias entorpecentes e os casos de gestantes que se recusam fazer o pré-natal”. O que quer a mãe, hoje? Ao que parece, para os agentes da lei, grávidas nessas situações não querem o bem do bebê! Entendem, assim, que “medidas protetivas” devem ser aplicadas, de forma automatizada, instituindo a retirada dos recém-nascidos das suas mães e abrigando-os, conduzindo, consequentemente, também à prática da adoção involuntária. Curiosamente, tal situação vem sendo nomeada informalmente pelos profissionais do campo da Saúde, da Justiça e da Assistência Social, à boca pequena, nas falas correntes, de “as mães do crack”." 

De quem é esse bebê?

De quem é esse bebê?



Se uma frase inaugural sobre a origem faz alusão ao enigma entre os sexos e indaga “de onde vêm os bebês?”, podemos extrair da situação vivenciada há cerca de um ano em Belo Horizonte, com mães usuárias de drogas, a seguinte questão: “para onde vão os bebês?”. Ou, ainda, “de quem é esse bebê?”.

A postagem de hoje do Portal “Minas com Lacan” aborda uma polêmica atual com relação ao destino de bebês e mães usuárias de drogas. As consequências possíveis de uma recomendação, em que a 23ª Promotoria de Justiça da Infância e Juventude Cível de Belo Horizonte solicita que profissionais de maternidades públicas e Centros de Saúde notifiquem à Vara da Infância todos os casos de gestantes ou puérperas usuárias de drogas, ou, nos termos esboçados pela Justiça, “as situações de mães usuárias de substâncias entorpecentes e os casos de gestantes que se recusam fazer o pré-natal”. O que quer a mãe, hoje? Ao que parece, para os agentes da lei, grávidas nessas situações não querem o bem do bebê! Entendem, assim, que “medidas protetivas” devem ser aplicadas, de forma automatizada, instituindo a retirada dos recém-nascidos das suas mães e abrigando-os, conduzindo, consequentemente, também à prática da adoção involuntária. Curiosamente, tal situação vem sendo nomeada informalmente pelos profissionais do campo da Saúde, da Justiça e da Assistência Social, à boca pequena, nas falas correntes, de “as mães do crack”.

Márcia Parizzi, Coordenadora da Atenção à Saúde da Criança e do Adolescente da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte/MG, é médica pediatra, doutora em medicina na área de saúde da criança e do adolescente, e escreveu para o portal “Minas com Lacan” sobre a situação dramática vivenciada também por unidades e profissionais de saúde em consequência dessa recomendação.

Renata Dinardi, psicanalista que pratica a psicanálise em uma Unidade de Saúde da Secretaria de Saúde da Prefeitura de Belo Horizonte, apresentou, em nossa última Jornada de Cartéis da Seção Minas Gerais, o relato de um fragmento clínico que envolvia tal situação. Fizemos a ela um convite e fomos respondidos com uma nota esclarecedora.

Antônio Teixeira, psicanalista membro da AMP e da EBP, escreveu um breve comentário a partir da leitura do texto de Renata Dinardi, que publicamos a seguir, invertendo propositalmente a ordem natural dos blogs: faremos com que o comentário de Antônio inaugure a leitura, vindo antes dos textos comentados, e seja um convite para que cada leitor ofereça seus sinais – críticas, pensamento, lembranças, exemplos.

Os dois textos refletem e elucidam uma situação tão afeita à pergunta lançada como tema das nossas próximas Jornadas: “O que quer a mãe, hoje?”. É preciso manter a pergunta, que pode ser lida também como indicador ético de que as respostas subjetivas se constroem uma a uma, na radical singularidade que se pode extrair dos sintomas.

O que quer um blog? Que seus textos, publicações e afins toquem o leitor a ponto de cada um lançar algo de seu. O que quer um blog? Comentários. Trocas.

Boa leitura!

Cristiane Barreto – Psicanalista membro da AMP/EBP.

Um comentário, por Antônio Teixeira:

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Antônio Teixiera

Toda bondade, desprovida de maldade, termina invariavelmente em desastrosa bobagem. A bobagem do cândido bem intencionado consiste em desconhecer o egoísmo inerente a todo altruísmo: querer o bem do outro é querer o seu bem à imagem e semelhança do que é bom para mim. A exigência de transparência que acompanha todo o conjunto de boas intenções do qual está sempre forrado, diga-se de passagem, o inferno dos ideais de assistência social, apoia-se nessa mesma noção de equivalência imaginária do semelhante. Ela consiste em estabelecer, como padrão, a idéia de bem estar que uma determinada classe determina para si, e aplicá-la aos que dessa classe se encontram excluídos, fazendo do outro algo igual a mim. Se o ideal mercadológico de nosso tempo define como ditosa a classe dos consumidores que dele compartilham, por que não fazer funcionar o próprio programa de bem estar segundo os critérios que permitem tratar essa promessa nos moldes da forma-mercadoria? Julgamos por isso louvável o gesto de Renata Dinardi, que detecta nos programas assistenciais de adoção algo que visa converter a criança a ser adotada no objeto a ser consumido.  Movido por critérios protocolares que, para funcionar a contento, necessitam desconhecer a situação singular de cada caso, tais programas terminam por impor ao sujeito a forma de equivalência da qual depende a constituição do objeto mercadoria.

Horizontes da maternidade?

Márcia Parizzi[1]

Márcia Parizzi
Márcia Parizzi

Belo Horizonte tem sido apontada no ranking nacional, como uma das capitais que mais abrigam crianças.

São inúmeras mulheres perdendo a vida devagarinho, dilaceradas pela dor de terem seus bebês recém-nascidos arrancados de seus braços para serem abrigados.  Isso vem acontecendo, sobretudo no último ano, depois da Recomendação da 23ª Promotoria de Justiça da Infância e Juventude Cível de Belo Horizonte, por meio da qual solicitam aos profissionais de saúde (técnicos) das Maternidades públicas e Centros de Saúde, que notifiquem para a Vara da infância todos os casos de gestantes ou puérperas usuárias de entorpecentes, para que sejam aplicadas medidas protetivas pertinentes.  Essas recomendações trouxeram um rastro de efeitos desastrosos, como o aumento impressionante do número de abrigamentos de bebês e o grande sentimento de desamparo das mulheres e de suas famílias, em pânico, com a possibilidade da perda dos bebês, em serviços de saúde onde deveriam estar recebendo assistência e cuidado.

Temos visto, de forma recorrente, cenas de bebês saindo dentro de sacolas ou pela escada de incêndio das maternidades, assim como mulheres ganhando seus bebês em casa, sem assistência adequada, com ambos correndo riscos de vida, ou se deslocando para ganharem seus bebês em outras cidades. E se trata de um pânico legítimo, pois as recomendações transformaram em regra, uma conduta que deveria ser excepcional, isto é, vem ocorrendo o afastamento de mães de seus bebês, sem que tenham sido esgotadas todas as possibilidades de apoio à mulher, ao seu bebê, à sua família, de forma a garantir a preservação do direito à convivência familiar e comunitária!  Isso sem contar todo prejuízo que sofrem os bebês, com   consequências graves no seu desenvolvimento psicoafetivo, decorrentes da separação abrupta da mãe e da interrupção do aleitamento materno, a forma mais importante de nutrição nesta fase da vida.

Os riscos de decisões equivocadas da Vara da Infância, em função das mencionadas Recomendações, são altíssimos pois, para aplicar as medidas protetivas pertinentes, o Juiz tem como base as informações contidas em relatórios construídos por técnicos dos serviços de saúde e dos abrigos, que são encaminhados para a Vara da Infância. Esses relatórios, que deveriam conter informações sobre a gestante e sobre a família extensa, e deveriam refletir o posicionamento de uma instituição e de toda rede de atenção, quando construídos por apenas um técnico, a partir das suas concepções e valores pessoais, muito provavelmente não refletirá a situação real da criança e do bebê. Corre-se um grande e grave risco deste técnico estar definindo sozinho o destino de uma mãe, de um bebê e de uma família.

Recentemente, por exemplo, uma mãe adolescente de 17 anos quase teve seu bebê abrigado, porque, precipitadamente, foi emitido um relatório à Vara da Infância com registro de que a adolescente era usuária de drogas (embora tivesse garantido não ter usado na gravidez!) e que tinha história de “passagem pela polícia” (no entanto, a adolescente cumpriu, integralmente, medida socioeducativa de Liberdade Assistida!). O afastamento felizmente não ocorreu, porque a Maternidade, ainda em tempo, pôde enviar novo relatório, com o posicionamento correto da instituição e da rede de atenção, inclusive com a participação do técnico da medida socioeducativa.

No entanto, muitos casos semelhantes não puderam ser revertidos.

As recomendações vêm interferir no direito tanto da mulher quanto do profissional de saúde, direito este garantido no código de ética da profissão, que é a oferta de sigilo e confidencialidade, com grave prejuízo na assistência.  A experiência na clinica mostra que as gestantes com uso prejudicial de drogas apresentam em suas histórias de vida um percurso, desde a infância, de violação de direitos, de não pertencimento, de lacunas dos laços afetivos, de violência naturalizada em suas vidas. A dor que as acomete,  nenhuma droga consegue aplacar, não se esgota. Assim, os profissionais de saúde têm como estratégia primordial para a assistência e oferta de tratamento,  a construção do vinculo, a possibilidade de escuta, de dar fala a estas mulheres e construir uma relação de confiança, que só é possível quando se preserva o respeito ao sigilo e confidencialidade. E, em sentido contrário e de forma absolutamente danosa, as recomendações propõem a delação, que resulta na quebra do vínculo, no afastamento das gestantes e de seus familiares dos serviços de saúde, no abortamento das possibilidades terapêuticas e da efetividade dos cuidados em saúde. Reforçam a exclusão da cidadania, a violência (de novo!), tiram espaço da fala e oprimem!

É preciso dar um basta, pois as recomendações culminam por violar os direitos das mulheres, dos bebês, das famílias e dos profissionais de saúde.  E disso tudo uma grave certeza: a linha que separa a proteção da violação é muito tênue!

Favor não jogar seu filho no lixo[2]!

Renata Dinardi[3] 

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Renata Dinardi

O Ministério Público do Estado de Minas Gerais por intermédio dos Promotores de Justiça da Infância e Juventude Cível da Comarca de Belo Horizonte, endereçaram, no segundo semestre de 2014, às Maternidades públicas e às Unidades Básicas de Saúde da cidade as recomendações 05 e 06/2014.  Segundo essas recomendações cabem aos médicos, profissionais de saúde, diretores, gerentes e responsáveis por maternidades e estabelecimentos de saúde, que encaminhem ou comuniquem a essa Vara as gestantes ou mães que manifestem interesse em entregar os seus filhos para adoção; que informe àquele juízo as situações de abandono de recém-nascido nos estabelecimentos de saúde, os casos de negligência e maus–tratos ao nascituro ou ao recém-nascido; as situações de mães usuárias de substancias entorpecentes e os casos de gestantes que recusam fazer o pré-natal.

Uma recomendação como o próprio termo indica não é uma ordem, uma requisição ou uma imposição de conduta. Tem a natureza jurídica de alerta, advertência, pedido de providência, indicação de um problema identificado, com sugestão dos meios para a respectiva correção. A Recomendação é instrumento jurídico extra-processual, e não tem valor de lei.

O Princípio de melhor interesse da criança

A Constituição Federal promulgada em 1988 consagrou a Doutrina da Proteção Intergral, ao definir o artigo 227, no qual toma as crianças e adolescentes como prioridade absoluta nas condutas e eleva a convivência familiar como direito fundamental da infância.

Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Segundo Célio Garcia[4] o sintagma – melhor interesse da criança comporta uma variação em suas definições. Interesse esta ao lado do dever ser e não do ser. A imprecisão deste sintagma – melhor interesse da Criança – pressupõe que os operadores do direito tenham que analisar cada caso, um a um.

Entretanto o momento atual é marcado por um retrocesso. Assistimos o retorno avassalador do pensamento higienista, contido nos imperativos de curar, diagnosticar, avaliar, vigiar, punir, salvar, proteger. A civilização contemporânea, regida pela lógica capitalista traz consigo certo reducionismo que exclui a singularidade com suas respostas homogeneizantes diante do mal estar, diante daquilo que escapa e resiste à avaliação, à regulação. E impõe a política o tom da eficiência

Uma recomendação com efeito de lei.

Como resposta a essas recomendações, houve aumento aterrador do número de recém-nascidos encaminhados aos abrigos, da capital de Belo Horizonte, no último ano.  A separação entre mães e filhos se fez presente no cotidiano de nossas maternidades públicas, de forma compulsória e arbitrária.

Sem intervalo e com a prevalência do ideal vimos o discurso da burocracia apressar-se em responder e muitas vezes sem lançar mão dos dispositivos e fluxos existentes na rede de saúde e de assistência, tornando a situação uma urgência e a urgência em um ato de violência. Lançando os sujeitos ao pior
O imperativo de salvar os bebês coloca-se a serviço de protocolos de conduta a fim de garantir um ideal de proteção. Contudo o que vemos é a própria criança, exposta como objeto a ser consumido.[5] 

Nesse cenário, o controverso se apresenta: vimos bebês em situação de internação social nas maternidades, expostos a infecções hospitalares, adolescentes-mães e filhos abrigados em locais diferentes, o não reconhecimento da família extensa como possibilidade de cuidado e impedimento para o acolhimento institucional, e pasmem: adoção em 15 dias!

Uma vez aplicada a medida de acolhimento institucional faz-se necessário para o jurídico que a criança ali permaneça pelo menos no tempo mínimo de 6 meses, mesmo que a medida tenha sido aplicada de maneira refutável. Colocando a criança e o adolescente a mercê do saber protocolar, das construções intersubjetivas que comportam questões complexas que envolvem aspectos relativos à moral, à ética, à ideologia, e à cultura.

Diante deste contexto não há como não vincular as recomendações 05 e06/2014 com a campanha lançada pela Comissão de Estadual Judiciária de Adoção (CEJA) do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Favor não jogar seu filho no lixo.  Dar em adoção é sublime ato de amor! Dar um filho à adoção é o maior gesto de amor que existe. Sabendo que não poderá criá-lo, renunciar ao filho, para assegura-lhe uma vida melhor que a sua é atitude que só o amor justifica.

O apelo à destituição do pátrio poder, coloca-se como uma condição do discurso capitalista que faz da criança uma mercadoria. Amparados pelo melhor interesse da criança atribuem a adoção a única garantia do bem estar e de acesso a uma família ideal!

[1] Márcia Parizzi é médica pediatra, doutora em Medicina, área de saúde da criança e do adolescente, Coordenadora da Atenção à Saúde da Criança e do Adolescente da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte/MG.

[2] “Favor não jogar seu filho no lixo. Dar em adoção é sublime ato de amor” Foi o Slogan utilizado pela campanha de adoção lançada pela CEJA- Comissão Estadual Judiciária de Adoção, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

[3] Renata Dinardi é psicanalista e trabalha em uma Unidade Básica de Saúde da Secretaria de Saúde da Prefeitura de Belo Horizonte.

[4] GARCIA.C. Psicologia Jurídica- Operadores do Simbólico. Belo Horizonte:Editora Del Rey, 2004.

[5] BRISSET. F.O. Crianças Falam! e têm o que dizer. In: Crianças Falam! e têm o que dizer –Experiências do Cien no Brasil. Fernanda Otoni Brisset, Ana Lydia Santiago, Judith Miller,Organização. – Belo Horizonte: Scriptum, 2013.

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