PICICA: "Galiza - Diário Liberdade
- Com motivo da triste notícia do passamento do escritor Gabriel Garcia
Márquez no dia 17 de abril de 2014, aos 87 anos, após sofrer umha nova
recaída na doença que padecia, a redaçom do Diário Liberdade traduz
hoje um artigo publicado polo autor no ano 1983 com motivo da sua viagem
pola Galiza."
Galiza - Diário Liberdade
- Com motivo da triste notícia do passamento do escritor Gabriel Garcia
Márquez no dia 17 de abril de 2014, aos 87 anos, após sofrer umha nova
recaída na doença que padecia, a redaçom do Diário Liberdade traduz
hoje um artigo publicado polo autor no ano 1983 com motivo da sua viagem
pola Galiza.
Eis, portanto, a nossa humilde homenagem ao Prémio Nobel de Literatura de 1982:
Gabriel García Márquez [Traduçom do Diário
Liberdade] - O meu muito velho amigo, o pintor poeta e novelista Héctor
Rojas Herazo -a quem já nom via desde havia muito tempo- deveu sofrer
em estremecimento de compaixom quando me viu em Madrid, aflito por um
tumulto de fotógrafos, jornalistas e solicitantes de autógrafos, e se
achegou para me dizer em voz baixa: "Recorda que de vez em quando deves
ser amável contigo próprio".
Com efeito, fiel à minha determinaçom de
comprazer todas as demandas sem levar em conta a minha própria fadiga,
havia já vários meses -quiçá vários anos- que nom me oferecia a mim
mesmo um presente merecido. Foi assim que decidim tornar realidade um
dos meus sonhos mais antigos: conhecer a Galiza.
Alguém que goste de comer nom pode pensar
na Galiza sem pensar antes do que em qualquer outra cousa nos prazeres
da sua cozinha. "A nostalgia começa pola comida", dixo Che Guevara,
talvez com saudades dos assados astronómicos da sua terra argentina,
enquanto se falava de assuntos de guerra nas noites de homens sozinhos
em Sierra Maestra. Também para mim a nostalgia da Galiza tinha começado pola comida, antes de que tivesse conhecido a terra.
O caso é que a minha avó, na casa grande
de Aracataca, onde conhecim os meus primeiros fantasmas, tinha o
primoroso ofício de padeira, e praticava-o mesmo quando já estava velha e
a ponto de ficar cega, até que umha cheia do rio lhe desmanchou o forno
e ninguém na casa tivo ánimos para o reconstruir.
Mas a vocaçom da avó era tam definida, que
quando nom pudo fazer pans continuou fazendo presuntos. Uns presuntos
deliciosos dos quais, porém, nom gostávamos as crianças -porque as
crianças nom gostam das novidades dos adultos-, mas o sabor da primeira
prova ficou-me gravado para sempre na memória do paladar.
Nom voltei a encontrá-lo jamais em nengúm
dos muitos e diversos presuntos que comim depois nos meus anos bons e
nos meus anos maus, até que provei por acaso -40 anos depois, em
Barcelona- umha talhada inocente de lacom.
Todo o balbúrdio, todas as dúvidas e toda a
solidom da infância voltárom repentinamente nesse sabor, que era o
inconfundível dos lacons da avó. Daquela experiência surgiu o meu
interesse por decifrar a sua ascendência, e procurando a sua encontrei a
minha nos verdes frenéticos de maio até o mar e as chuvas fecundas e os
ventos eternos nos campos da Galiza.
Só entom entendim de onde tinha sacado a
avó aquela credulidade que lhe permitia viver num mundo sobrenatural
onde tudo era possível, onde as explicaçons racionais careciam por
completo de validez, e entendim de onde lhe vinha a paixom de cozinhar
para alimentar os forasteiros e o seu costume de cantar o dia inteiro.
"Há que fazer carne e peixe porque nom se sabe de que vam gostar os que
vinherem comer", costumava dizer quando ouvia o assobio do comboio.
Morreu muito velha, cega, e com o sentido
da realidade trastornado por completo, ao ponto que falava das suas
lembranças mais antigas como se estivessem a acontecer no instante, e
conversava com os mortos que tinha conhecido vivos na sua juventude
remota.
Contava estas cousas a um amigo galego na
semana passada, em Santiago de Compostela, e dixo-me: "Entom a tua avó
era galega, sem qualquer dúvida, porque era maluca". Na verdade, todos
os galegos que conheço, e os que vim agora sem tempo para os conhecer,
parecem-me nascidos sob o signo de Peixes.
Nom sei de onde vem a vergonha de ser
turista. A muitos amigos, em pleno frenesi turístico, ouvim-lhes dizer
que nom querem misturar-se com os turistas, sem se perceberem de que,
embora nom se misturem, eles som tam turistas quanto os outros.
Eu, quando vou conhecer algum lugar sem
dispor de muito tempo para ir mais até o fundo, assumo sem pudor a minha
condiçom de turista. Gosto de me inscrever nessas excursons rápidas,
nas quais os guias explicam tudo o que se vê polas janelas do autocarro,
à direita e à esquerda, senhores e senhoras, entre outras porque assim
sei de umha vez tudo o que nom há que ver depois, quando saio sozinho
conhecer o lugar polos meus próprios meios. Porém, Santiago de
Compostela nom dá tempo para tantos pormenores: a cidade impom-se de
imediato, completa e para sempre, como se se tivesse nascido nela.
Sempre acreditei, e continuo a acreditar,
que nom existe no mundo umha praça mais formosa do que a de Siena. A
única que me fijo duvidar é a de Santiago de Compostela, polo seu
equilíbrio e o seu ar juvenil, que nom permite pensar na sua idade
venerável, pois que parece construída no dia anterior por alguém que
tivesse perdido o sentido do tempo. Talvez esta impressom nom tenha a
sua origem na praça mesma, mas no facto de estar -como toda a cidade,
até nos últimos cantos- incorporada até a alma à vida quotidiana de
hoje.
É umha cidade viva, tomada por umha
multidom de estudantes alegres e buliçosos, que nom lhe dam nem umha
única trégua para envelhecer. Nos muros intactos, a vegetaçom abre-se
passo por entre as fendas, numha luita implacável por sobreviverem ao
esquecimento, e um encontra-se a cada passo, como a coisa mais natural
do mundo, com o milagre das pedras florescidas.
Choveu durante três dias, nom de um modo
inclemente, mas com intempestivos espaços de um sol radiante. Porém, os
amigos galegos nom pareciam ver essas pausas douradas, e a cada instante
nos davam desculpas pola chuva.
Talvez nem sequer eles foessem cientes de
que a Galiza sem chuva teria sido umha desilusom, porque o deles é um
país mítico -muito mais do que os próprios galegos acham-, e nos países
míticos nunca sai o sol. "Se tivessem vindo na semana passada, teriam
encontrado um tempo estupendo", diziam-nos, envergonhados. "Este tempo
nom corresponde à estaçom", insistiam, sem se lembrarem de Valle-Inclán,
de Rosalia de Castro, dos poetas galegos de sempre, em cujos livros
chove desde o princípio da criaçom e sopra um vento interminável, que é
talvez o que sementa esse gérmen lunático que faga distintos e amorosos
tantos galegos.
Chovia na cidade, chovia nos campos
intensos, chovia no paraíso lacustre da ria de Arouça e na ria de Vigo, e
na sua ponte, chovia na praça, impávida e quase irreal, de Cambados, e
até na ilha da Toja, onde há um hotel de outro mundo e outro tempo, que
parece esperar a que escampe, a que cesse o vento e resplandesça o sol
para começar a viver.
Andávamos por entre esta chuva como por um
estado de humor, comendo aos punhados os únicos mariscos vivos que
restam neste mundo devastado, comendo uns peixes que continuam a ser
peixes no prato e umhas saladas que continuam a crescer na mesa, e
sabíamos que tudo aquilo estava lá por virtude da chuva, que nunca
termina de cair.
Há agora muitos anos, num restaurante de
Barcelona, escuitei o escritor Álvaro Cunqueiro falar da comida da
Galiza, e as suas descriçons eram tam deslumbrantes que me parecêrom
delírios de galego.
Desde que tenho memória tenho escuitado os
galegos da América falarem da Galiza, e sempre pensei que as suas
lembranças estavam deformadas polas alucinaçons das saudades.
Hoje lembro-me das minhas 72 horas na
Galiza e pergunto a mim próprio se tudo aquilo era verdade, ou se será
que eu próprio comecei a ser vítima dos mesmos desvarios da minha avó.
Entre galegos -já o sabemos- nunca se sabe.
Copyright 1983. Gabriel García Márquez-ACI.
Fuente: Diário Liberdade
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