PICICA: "Que é o corpo, para um contador de
histórias? A folha impressa, talvez. Mas a palavra, esta não tem fins – e
regozija-se por não ter casa"
A tarde em que Gabo tornou a Morte mais banal
Que é o corpo, para um contador de
histórias? A folha impressa, talvez. Mas a palavra, esta não tem fins – e
regozija-se por não ter casa
Por Cibelih Hespanhol
Nesta quinta-feira, 17, Gabriel García
Márquez surpreendeu o mundo – não por sua morte, destino tão banal e
nada inédito a todos os homens, mas por nos avisarmos, justamente,
contrário às notícias que saem na tevê, de que permanece alheio a estas
circunstâncias: em verdade, apesar de morto, Gabo não pode e nem
pretende morrer.
O corpo de 87 anos, carregado pelo
câncer nos pulmões, gânglios e fígado, e fragilizado por uma pneumonia
repentina, não impôs esforços para que a Morte o levasse, cumprindo com
seu ofício cansativo e monótono do dia. Talvez Gabo tenha até mesmo
soltado um suspiro, aliviado pelo encontro. Como Remedios, de Cem anos de Solidão,
a ascensão à outra vida pode ter sido um leve abandono, e da cama de
hospital o escritor pálido, com suas mãos descansadas, sentiu parar de
correr o sangue nas veias como um romance que chegasse ao fim: em pausa
abrupta mas acolhida, Gabo esteve, de barbas brancas, suspenso pelos
ares da mesma tarde em que o mundo se lamentava.
Chorar por um corpo é um ato grosseiro.
Se os lamentos caem como as chuvas de Macondo, Gabo talvez se ri,
compreendendo um pouco menos da natureza que tanto traduziu em histórias
e livros. Que é o corpo, para um contador de histórias? É a capa de um
livro, a folha impressa, talvez. Veículos necessários. A palavra – esta
sim – sem abrigos, onde mora o poder, deixou-se habitar em livros como a
alma que se aceita por certo tempo a um corpo. Mas, se perecem os
livros, a palavra continua. A palavra, como a alma de Gabo, não se acaba
com o fim de nenhum corpo – a palavra não tem fins e regozija-se por
não ter casa: está mais linda quanto mais em mim, em você, em outro, em
outro – e bem sabe a Morte dos limites do seu trabalho.
Em histórias e palavras, Gabo não morre
hoje, e não morre amanhã. Arrisco dizer que também não morrerá depois. E
nem mesmo mais tarde.
Fonte: Blog da Redação
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