abril 19, 2014

"A tarde em que Gabo tornou a Morte mais banal", por Cibelih Hespanhol

PICICA: "Que é o corpo, para um contador de histórias? A folha impressa, talvez. Mas a palavra, esta não tem fins – e regozija-se por não ter casa"


A tarde em que Gabo tornou a Morte mais banal


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Que é o corpo, para um contador de histórias? A folha impressa, talvez. Mas a palavra, esta não tem fins – e regozija-se por não ter casa

Por Cibelih Hespanhol

Nesta quinta-feira, 17, Gabriel García Márquez surpreendeu o mundo – não por sua morte, destino tão banal e nada inédito a todos os homens, mas por nos avisarmos, justamente, contrário às notícias que saem na tevê, de que permanece alheio a estas circunstâncias: em verdade, apesar de morto, Gabo não pode e nem pretende morrer.

O corpo de 87 anos, carregado pelo câncer nos pulmões, gânglios e fígado, e fragilizado por uma pneumonia repentina, não impôs esforços para que a Morte o levasse, cumprindo com seu ofício cansativo e monótono do dia. Talvez Gabo tenha até mesmo soltado um suspiro, aliviado pelo encontro. Como Remedios, de Cem anos de Solidão, a ascensão à outra vida pode ter sido um leve abandono, e da cama de hospital o escritor pálido, com suas mãos descansadas, sentiu parar de correr o sangue nas veias como um romance que chegasse ao fim: em pausa abrupta mas acolhida, Gabo esteve, de barbas brancas, suspenso pelos ares da mesma tarde em que o mundo se lamentava.

Chorar por um corpo é um ato grosseiro. Se os lamentos caem como as chuvas de Macondo, Gabo talvez se ri, compreendendo um pouco menos da natureza que tanto traduziu em histórias e livros. Que é o corpo, para um contador de histórias? É a capa de um livro, a folha impressa, talvez. Veículos necessários. A palavra – esta sim – sem abrigos, onde mora o poder, deixou-se habitar em livros como a alma que se aceita por certo tempo a um corpo. Mas, se perecem os livros, a palavra continua. A palavra, como a alma de Gabo, não se acaba com o fim de nenhum corpo – a palavra não tem fins e regozija-se por não ter casa: está mais linda quanto mais em mim, em você, em outro, em outro – e bem sabe a Morte dos limites do seu trabalho.

Em histórias e palavras, Gabo não morre hoje, e não morre amanhã. Arrisco dizer que também não morrerá depois. E nem mesmo mais tarde.

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