PICICA: "A democracia de que fala Espinosa e Negri
se constrói na práxis, de baixo pra cima, na terra do materialismo
absoluto. A concepção da crise do mundo recusa o contrato social e o
mercado, em favor da organização autônoma da produção e sem quaisquer
mediações. As essências, essas criaturas singulares, todas elas habitam o
mesmo plano ontológico, na superfície do que a política compõe e
decompõe as forças — uma política de autoprodução do ser, da democracia e
da felicidade. Amar a verdade só é possível numa paixão ao real, em que
aquela age como práxis. Bem diferente das pirâmides normativas e
edifícios axiológicos, onde distintas ordens do ser transmitem valor e
legitimidade de cima a baixo, um esquema hierárquico cuja motivação é
pedir fidelidade ao tirano. A imanência se organiza, à transcendência se
é fiel. A doutrina do judeu maldito dispensa juntos o Céu e o Inferno,
todos os sacerdotes de uma só vez, e reconstrói a causalidade eficiente
na gênese das forças de tudo o que existe. Simplesmente tudo, sem
exceção. Não há lugar para a modernidade no Espinosa de Negri. Em vez de
teorias sobre a melhor forma de estado, teorias sobre a melhor forma de
libertar-se do estado. De destruí-lo de baixo a cima, a começar pelo
estado em nós mesmos, na nossa própria economia de paixões."
A anomalia selvagem de Espinosa
Resenha de NEGRI, Antonio. A anomalia selvagem. Trad. Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: 1993 [1981], ed. 34.
- por Bruno Cava, do site Quadrado dos Loucos
Escrito na prisão e publicado em 1981,
quando os conflitos e movimentos dos anos 1970 pareciam abafados pela
repressão e um consenso conservador da “esquerda” à “direita” partidária
governava na Itália; Anomalia Selvagem reafirma a filiação de
Antônio Negri ao pensamento da positividade. Não se abatendo com a
ciranda da história, o maestro se concentrou em Espinosa para abraçar
ainda mais uma ontologia constituinte e afirmativa. Para se animar com
uma ontologia do ser pleno, sem concessões a derrotismos, catastrofismos
ou outras paixões deprimidas da razão. Da intrincada malha de tratados,
proposições e escólios, Negri desenovela o fio vermelho de uma política
radical e transformadora. A ontologia espinosana transpira de política
por todos os poros, uma política de baixo pra cima, uma política
materialista que não separa razão e desejo. Propõe uma práxis
revolucionária diretamente ao dilacerar a trama do presente, na
materialidade do agir, do fazer.
A modernidade assistiu ao nascimento da
concepção jurídica do mundo. De imediato, os defensores da modernidade
colocaram como tarefa do pensamento filosófico fundamentar esse poder de
novo tipo, vestindo-o com o manto da legitimidade e da justiça. Teorias
voltadas a garantir o soberano, sua lei, seu direito, sua violência
legítima. De Hobbes a Hegel, de Rousseau a Kant, várias as tentativas de
elevar-se sobre as paixões, as vontades e as volúpias das plebes.
Quantos funcionários do poder não
recorreram e continuam recorrendo às “verdades eternas”, que o homem
deixado a seu bel prazer invariavelmente abusa do que pode, passa a
perseguir fins condenáveis e praticar regularmente o mal; que não é
prudente relaxar demais a lei e a punição; que o povo precisa de alguém
para guiá-lo e só respeita um poder maior. Mesmo o mais ignaro popular
não discordaria disso. Então, por que seríamos arrogantes, nós os
ilustrados do novo tempo, a ponto de conceder-lhe o valor que ele mesmo
não reclama, em vez de simplesmente dar ao povo o que, sem romantismos,
ele mais precisa e deseja: ordem e autoridade? Temos de oferecer pelo
menos um norte, um sistema razoável de normas e valores, em que o homem
comum possa acreditar e confiar. O senso comum está do lado da polícia.
No limiar da modernidade, o estado foi fundamentado como solução para
desordem humana. O direito, como mediação de conflitos particulares e
contenção da criminalidade. O estado moderno, um “mal necessário”,
defendem os corações burgueses mais humanistas, porém o que de melhor a
civilização humana pôde oferecer diante da natureza oscilante e
imprevisível, em todo caso perigosa, dos homens. Quem vai cuidar de
nossos filhos?
Negri contesta os pensadores mais
notáveis na fundamentação desse senso comum. E rasga outra modernidade,
uma alternativa antimoderna. De Maquiavel a Espinosa a Marx, três
malditos em desafio e escárnio diante da concepção jurídica do mundo.
Minhas bússolas em impudência. Contra o problema do fundamento da moral,
do direito ou do estado, uma máquina de guerra anti-idealista, no
maravilhamento e vertigem da imanência. A subversão espinosana divorciou
a teologia da ontologia. Um Espinosa crítico do transcendente, do
finalismo, do estado e do mercado. Não só expulsou Deus como não O
deixou voltar travestido pela janela.
A democracia de que fala Espinosa e Negri
se constrói na práxis, de baixo pra cima, na terra do materialismo
absoluto. A concepção da crise do mundo recusa o contrato social e o
mercado, em favor da organização autônoma da produção e sem quaisquer
mediações. As essências, essas criaturas singulares, todas elas habitam o
mesmo plano ontológico, na superfície do que a política compõe e
decompõe as forças — uma política de autoprodução do ser, da democracia e
da felicidade. Amar a verdade só é possível numa paixão ao real, em que
aquela age como práxis. Bem diferente das pirâmides normativas e
edifícios axiológicos, onde distintas ordens do ser transmitem valor e
legitimidade de cima a baixo, um esquema hierárquico cuja motivação é
pedir fidelidade ao tirano. A imanência se organiza, à transcendência se
é fiel. A doutrina do judeu maldito dispensa juntos o Céu e o Inferno,
todos os sacerdotes de uma só vez, e reconstrói a causalidade eficiente
na gênese das forças de tudo o que existe. Simplesmente tudo, sem
exceção. Não há lugar para a modernidade no Espinosa de Negri. Em vez de
teorias sobre a melhor forma de estado, teorias sobre a melhor forma de
libertar-se do estado. De destruí-lo de baixo a cima, a começar pelo
estado em nós mesmos, na nossa própria economia de paixões.
Em Anomalia Selvagem, Negri faz
um recorte na trajetória de Espinosa e opõe duas “fundações” da obra. A
ruptura da primeira para a segunda fundação se dá em razão de uma crise
constitutiva do pensamento de Espinosa. Essa crise radicaliza as tensões
mais politicamente revolucionárias de sua ontologia. A “primeira
fundação” ainda consiste no Espinosa matizado pelo iluminismo burguês. A
espécie de deslize cometido pelo filósofo nesse período estaria contida
na doutrina dos atributos. Embora existam em número infinito, o ser
humano só pode conhecer dois atributos: a extensão e o pensamento. Os
modos da extensão são os corpos. As ideias que temos dos corpos, por
exemplo, são modos do pensamento.
Para Negri, trechos da “primeira
fundação” suscitam a interpretação que os atributos atuam como mediações
entre as substâncias e os modos. A substância causaria os modos
passando necessariamente pelos atributos. Isto fere mortalmente a
imanência do ser, pois nada pode se interpor entre a substância e os
modos. A duplicação da terra ontológica. Reintroduz-se outro tipo de
ontologia: o emanentismo de raiz neoplatônica. Assim, a substância não
mais produziria os modos; ela os emanaria de si. Essa emanação
significaria uma redução da perfeição intrínseca ao ser. Quer dizer, da
substância aos modos ocorreria uma redução qualitativa, uma degradação
do ser. Exalta-se a substância enquanto se atribui aos modos uma
existência ínfera. Essa bipartição entre substância e modo reabre a
dimensão dos valores, restaura o Céu e a Terra, e aniquila toda a
política subversiva que poderia transpirar da ontologia constituinte.
Para Negri, a “primeira fundação” não é por acaso. A doutrina
emanentista das mediações confina com o espírito do tempo mercantilista
do século 17, impregnado no renascentismo tardio. Nesse período
histórico, está em formação o mercado capitalista. Quer dizer, um
sistema universal de equivalências, capaz de fixar o preço das coisas.
Os mercados estabelecem a mediação das relações de compra e venda, e
homogeniza um espaço adequado para as trocas. A mediação se interpõe
entre a constituição de ser e a produção de riqueza. Justificam-se,
assim, as forças produtivas mediadas pelo mercado, o estado, a teoria do
valor. O povo e o soberano estabelecem um pacto mediador, seja como
cessão de direitos, seja como transferência de poder. Origem dos
contratualismos. Daí por diante, fica fácil, segue logicamente a
parafernália de normas de organização do trabalho, regulamentação das
trocas, formas jurídicas e soluções soberanas, tudo para que o
capitalismo moderno possa funcionar. A hipótese realmente subversiva
de Espinosa é outra.
O Espinosa da “segunda fundação”, depois
da crise, descarta inteiramente a funcionalidade das mediações. É
o Espinosa dos três últimos livros da Ética. Assim como o
estado deve ser dissipado para ceder lugar ao comunismo; os atributos,
para a ontologia constituinte. Contra o confisco da imaginação por
contratos sociais e teorias jurídicas, trata-se de inventar o mundo por
dentro, na práxis constituinte. Sem mediações, as forças produtivas
podem agir diretamente, como autonomia e auto-organização. Os modos não
dependem de ordens emanadas de cima. Os modos se insurgem contra os
valores e derrubam os templos. A natureza naturada passa a determinar
como vai ser, isso é coisa do diabo. A libertação das forças produtivas
demanda uma dupla frente de ação: destrutiva e afirmativa. Faz-se
necessário derrubar as estruturas que expropriam a constituição de ser, o
poder constituinte. Cortar o nexo que se pretende necessário entre as
forças produtivas e as relações de produção, tensionar os focos de
antagonismo, e derramar a carga ontológica da positividade. “O pensamento espinosano é uma apologia das forças produtivas.”As
forças mediadas pelo estado e pelo capital não passam de graus
inferiores da potência. Esse poder constituído subsiste sobre a
potência, parasitando-a. Uma impotência causada pelo medo, a superstição
e a indução da escassez, que mobiliza os súditos à tristeza. Daí
reapropriar-se, primeiro, da própria potência. Reapropriar-se da riqueza
mediada/expropriada pela propriedade, o trabalho, a representação
política. Ou seja, desmontar as relações de produção, toda a estrutura
de mediação que filtra, segrega e acumula o poder.
Mas, também, construir instituições
autônomas, imediatamente produtivas nas relações entre as
singularidades. Essa a democracia absoluta de Espinosa, uma democracia
materialista e produtiva, cuja política está na arte da composição e dos
encontros. Organizar a produção, cultivar instituições não mediadas
pelo valor e a soberania. Uma tarefa prática para a imaginação
multitudinária orientar. Neste terreno da libertação, o único direito
digno é um direito atribuído às singularidades. Um direito vivo,
diferencial, produtivo. Um direito que é potência afirmativa, e não
norma. Além de jusnaturalismos ou juspositivismos, — ambos, de uma forma
ou de outra, dependentes da mediação/norma; — refiro-me a direitos
singulares cujo plano de composição política elabora o direito comum.
O direito comum para instituir e
sustentar um ciclo virtuoso de relações geradoras de ser e vida, em
quantidades e qualidades. Essa imaginação incorrupta pelo medo da
diferença, da potência do outro. Imaginação paranoica só pode resultar
em superstição e servidão voluntária. Esse direito do comum vai até onde
se dilata a potência dos agenciamentos das singularidades, e a
multiplica muitas vezes. Pauta-se pelos bons encontros, a produtividade e
a alegria crescente do conjunto. Age no real potenciando os direitos
singulares, proliferando as relações e afecções mútuas. Viceja no prazer
por um mundo infinito a fazerem-se juntos. É potência material, no amor
da práxis coletiva de organização.
Fonte: Razão Inadequada