abril 09, 2014

"A concepção de mente em Hume" (Razão Inadequada)

PICICA: "Para dar um exemplo aos já iniciados em filosofia: está em Hume a ideia, amplamente explorada por Deleuze no desenvolvimento do conceito de diferença, de que o hábito é uma espécie de código de leitura da repetição, “uma espécie de harmonia preestabelecida entre a natureza e as ideias”."

A concepção de mente em Hume


David Hume, Allan Ramsay, 1766
David Hume, Allan Ramsay, 1766

O pensamento de David Hume, filósofo escocês nascido em 1711, representa uma grande virada na história da filosofia. Toda uma tradição cientificista constituiu-se a partir do pensador, que com apenas 24 anos iniciou a redação de seu maior livro chamado Tratado da natureza humana em três grandes tomos. O primeiro volume, chamado Do Entendimento, foi reescrito em 1748 sob o nome de Investigações sobre o Entendimento Humano. Nele, Hume suprimiu algumas das passagens mais polêmicas do texto original e tentou torná-lo mais acessível ao público geral. Algumas das ideias mais potentes de Hume se encontram lá resumidas, eis um dos primeiros parágrafos:
“Satisfaz tua paixão pela ciência – diz a natureza – mas cuida para que essa seja uma ciência humana, com direta relevância para a prática e vida social. [...] Sê um filósofo; mas, em meio a toda tua filosofia, não deixes de ser um homem.”
Nos parágrafos seguintes, Hume nos apresenta seu projeto de “investigar seriamente a natureza do entendimento humano e mostrar [...] que ele não está de modo algum apto a tratar de assuntos tão remotos e abstrusos” quanto os da metafísica. Para livrar-se do “jargão vazio” dos discursos filosóficos abstrusos, é necessária uma limpeza de terreno, um reconhecimento do relevo, uma classificação das distintas operações da mente, em suma, produzir uma geografia mental.

Hume é na maioria das vezes chamado de empirista, como Locke; por vezes chamado de naturalista, como Espinosa; e mais raramente chamado de cético, como Montaigne. De fato, essas escolas do pensamento são contempladas no pensamento de Hume, mas estão longe de contê-lo. Pensemos um pouco sobre a concepção de mente proposta por ele para entendermos a razão de seu empirismo.

O entendimento se debruça sobre si mesmo e produz uma investigação, que se dá sobre as imagens da mente. Ele pergunta: “O que ocorre no processo que começa com a sensação e termina com a representação?”.
“Todos admitirão prontamente que há uma considerável diferença entre as percepções da mente quando um homem sente a dor de um calor excessivo ou o prazer de uma tepidez moderada, e quando traz mais tarde essa sensação à sua memória, ou a antecipa pela imaginação
Partindo deste senso comum, Hume operará com uma distinção entre aquilo que é sentido pela mente e aquilo que é representado nela, chamando as primeiras de impressões e suas derivações de ideias. A memória e a imaginação, mesmo na sua máxima potência, jamais podem alcançar toda a força e vivacidade das percepções. É uma questão de intensidade: o que ouvimos, vemos, desejamos é mais vívido do que aquilo que imaginamos, lembramos ou antecipamos.
“Todas as cores da poesia, por esplêndidas que sejam, não serão jamais capazes de retratar os objetos de tal maneira que se tome a descrição por uma paisagem real, e o mais vívido pensamento será sempre inferior à mais obtusa das sensações”
A mente então é um terreno onde se forjam ideias baseadas em impressões. Assim como os passos numa praia imprimem pegadas na areia, os afetos imprimem sensações na mente; mas no instante seguinte, assim como uma onda recobre os passos e apaga suas arestas bem definidas, as sensações se vão e restam apenas suas cópias, suas ideias. Daí o fundamento para uma tese geral que é explicitamente empirista: “todas as nossas ideias, ou percepções mais tênues, são cópias de nossas impressões, ou percepções mais vívidas”.

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Pode parecer que temos uma enorme liberdade de pensamento e imaginação, mas na verdade nossa mente não consegue compor aquilo de que não possui recursos para tanto. O fato de conseguirmos fabricar uma ideia de “centauro” ou de “montanha de ouro”, por exemplo, não demonstra liberdade, ao contrário, mostra que a liberdade está confinada em limites bastante estreitos, pois estes complexos não passam de uma articulação de ideias consistentes e familiares como a de “cavalo” e “homem”; de “montanha” e “ouro”, que possuem referência na experiência.

É uma tese muito surpreendente, tendo em vista que, ao longo da história da filosofia, a capacidade de relacionar ideias e produzir conteúdos racionais era tida como um grande indício da liberdade humana. Para fundamentar essa tese, Hume apresenta dois argumentos: 1) Nossos pensamentos complexos podem ser decompostos em ideias simples; e 2) Não se formam ideias se não se puder experimentar sensações.

Expus aqui apenas um pouco das duas primeiras seções do livro de Hume. Todo o desenvolvimento é impressionante e suas teses incríveis. Qualquer leitor curioso é capaz de lê-lo, mesmo que sem grandes iniciações em filosofia. Nas seções seguintes, são explorados grandes temas da filosofia moderna, com consequências em diversos ramos da nosso pensamento contemporâneo como a noção de hábito, de paixão, de conexão necessária, de a priori, de crença…

Para dar um exemplo aos já iniciados em filosofia: está em Hume a ideia, amplamente explorada por Deleuze no desenvolvimento do conceito de diferença, de que o hábito é uma espécie de código de leitura da repetição, “uma espécie de harmonia preestabelecida entre a natureza e as ideias”.

Estátua de Hume, Alexander Stoddart, Royal Mille, Edimburgo
Estátua de Hume, Alexander Stoddart, Royal Mille, Edimburgo

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