PICICA: "Para dar um exemplo aos já iniciados em
filosofia: está em Hume a ideia, amplamente explorada por Deleuze no
desenvolvimento do conceito de diferença, de que o hábito é uma espécie de código de leitura da repetição, “uma espécie de harmonia preestabelecida entre a natureza e as ideias”."
A concepção de mente em Hume
O pensamento de David Hume, filósofo
escocês nascido em 1711, representa uma grande virada na história da
filosofia. Toda uma tradição cientificista constituiu-se a partir do
pensador, que com apenas 24 anos iniciou a redação de seu maior livro
chamado Tratado da natureza humana em três grandes tomos. O primeiro volume, chamado Do Entendimento, foi reescrito em 1748 sob o nome de Investigações sobre o Entendimento Humano.
Nele, Hume suprimiu algumas das passagens mais polêmicas do texto
original e tentou torná-lo mais acessível ao público geral. Algumas das
ideias mais potentes de Hume se encontram lá resumidas, eis um dos
primeiros parágrafos:
“Satisfaz tua paixão pela ciência – diz a natureza – mas cuida para que essa seja uma ciência humana, com direta relevância para a prática e vida social. [...] Sê um filósofo; mas, em meio a toda tua filosofia, não deixes de ser um homem.”
Nos parágrafos seguintes, Hume nos
apresenta seu projeto de “investigar seriamente a natureza do
entendimento humano e mostrar [...] que ele não está de modo algum apto a
tratar de assuntos tão remotos e abstrusos” quanto os da metafísica.
Para livrar-se do “jargão vazio” dos discursos filosóficos abstrusos, é
necessária uma limpeza de terreno, um reconhecimento do relevo, uma
classificação das distintas operações da mente, em suma, produzir uma
geografia mental.
Hume é na maioria das vezes chamado de
empirista, como Locke; por vezes chamado de naturalista, como Espinosa; e
mais raramente chamado de cético, como Montaigne. De fato, essas
escolas do pensamento são contempladas no pensamento de Hume, mas estão
longe de contê-lo. Pensemos um pouco sobre a concepção de mente proposta
por ele para entendermos a razão de seu empirismo.
O entendimento se debruça sobre si mesmo e
produz uma investigação, que se dá sobre as imagens da mente. Ele
pergunta: “O que ocorre no processo que começa com a sensação e termina
com a representação?”.
“Todos admitirão prontamente que há uma considerável diferença entre as percepções da mente quando um homem sente a dor de um calor excessivo ou o prazer de uma tepidez moderada, e quando traz mais tarde essa sensação à sua memória, ou a antecipa pela imaginação”
Partindo deste senso comum, Hume operará
com uma distinção entre aquilo que é sentido pela mente e aquilo que é
representado nela, chamando as primeiras de impressões e suas derivações de ideias. A memória e a imaginação, mesmo na sua máxima potência, jamais podem alcançar toda a força e vivacidade
das percepções. É uma questão de intensidade: o que ouvimos, vemos,
desejamos é mais vívido do que aquilo que imaginamos, lembramos ou
antecipamos.
“Todas as cores da poesia, por esplêndidas que sejam, não serão jamais capazes de retratar os objetos de tal maneira que se tome a descrição por uma paisagem real, e o mais vívido pensamento será sempre inferior à mais obtusa das sensações”
A mente então é um terreno onde se forjam
ideias baseadas em impressões. Assim como os passos numa praia imprimem
pegadas na areia, os afetos imprimem sensações na mente; mas no
instante seguinte, assim como uma onda recobre os passos e apaga suas
arestas bem definidas, as sensações se vão e restam apenas suas cópias,
suas ideias. Daí o fundamento para uma tese geral que é explicitamente
empirista: “todas as nossas ideias, ou percepções mais tênues, são
cópias de nossas impressões, ou percepções mais vívidas”.
Pode parecer que temos uma enorme
liberdade de pensamento e imaginação, mas na verdade nossa mente não
consegue compor aquilo de que não possui recursos para tanto. O fato de
conseguirmos fabricar uma ideia de “centauro” ou de “montanha de ouro”,
por exemplo, não demonstra liberdade, ao contrário, mostra que a
liberdade está confinada em limites bastante estreitos, pois estes
complexos não passam de uma articulação de ideias consistentes e
familiares como a de “cavalo” e “homem”; de “montanha” e “ouro”, que
possuem referência na experiência.
É uma tese muito surpreendente, tendo em
vista que, ao longo da história da filosofia, a capacidade de relacionar
ideias e produzir conteúdos racionais era tida como um grande
indício da liberdade humana. Para fundamentar essa tese, Hume apresenta
dois argumentos: 1) Nossos pensamentos complexos podem ser decompostos
em ideias simples; e 2) Não se formam ideias se não se puder
experimentar sensações.
Expus aqui apenas um pouco das duas
primeiras seções do livro de Hume. Todo o desenvolvimento é
impressionante e suas teses incríveis. Qualquer leitor curioso é capaz
de lê-lo, mesmo que sem grandes iniciações em filosofia. Nas seções
seguintes, são explorados grandes temas da filosofia moderna, com
consequências em diversos ramos da nosso pensamento contemporâneo como a
noção de hábito, de paixão, de conexão necessária, de a priori, de crença…
Para dar um exemplo aos já iniciados em
filosofia: está em Hume a ideia, amplamente explorada por Deleuze no
desenvolvimento do conceito de diferença, de que o hábito é uma espécie de código de leitura da repetição, “uma espécie de harmonia preestabelecida entre a natureza e as ideias”.
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