PICICA: "Uma América Latina cheia de gentes com cor, cheiro, sensualidade e afetuosidade, na qual "ainda assim, diante da opressão, do saqueio e do abandono, nossa resposta é a vida" é
o plano que Gabo registrou; um mundo de pequenas e profundas
intensidades, fugazes chamas que apesar de tudo transbordam e se fazem
vivas. A literatura de Gabriel García Márquez é a escrita do triunfo do
elemento vivaz do comum e do plebeu em meio à guerra permanente de nossa América. Viveu virtuosamente e partiu idoso deixando tantos mundos a se criar a partir do nosso."
domingo, 20 de abril de 2014
Réquiem para Gabo: A Excedência do Fantástico
Ilustração retirada daqui |
"Antonio
Pigafetta, um navegante florentino que acompanhou Magalhaes na primeira
viagem ao redor do mundo, ao passar pela nossa América meridional
escreveu crônica rigorosa que, no entanto, parece uma aventura da
imaginação. Contou que havia visto porcos com o umbigo no lombo e uns
pássaros sem patas cujas fêmeas usavam as costas dos machos para chocar,
e outros como alcatrazes sem língua cujos bicos pareciam uma colher.
Contou que havia visto um engendro animal com cabeça e orelhas de mula,
corpo de camelo, patas de cervo e relincho de cavalo. Contou que puseram
um espelho na frente do primeiro nativo que encontraram na Patagônia e
que aquele gigante ensandecido perdeu o uso da razão pelo pavor de sua
própria imagem. Este
livro breve e fascinante, no qual já se vislumbram os germes de nossos
romances de hoje, está longe de ser o testemunho mais assombroso da
nossa realidade daqueles tempos. Os cronistas das Índias nos legaram
outros, incontáveis (...)"
Gabriel García Márquez, A Solidão da América Latina, trecho inicial do discurso de agradecimento ao Prêmio Nobel de Literatura de 1982.
Faleceu na
última quinta-feira, 17 de Abril, o escritor colombiano Gabriel García
Márquez, o Gabo, estandarte do realismo fantástico latino-americano. Ele
foi autor de obras magníficas como Cem Anos de Solidão e O Amor nos Tempos do Cólera --
o último filmado há poucos anos --, mas sua contribuição foi,
sobretudo, sua presença como seu mais intenso personagem; um e mordaz
crítico da realidade latino-americana, ativista e combatente que amou
sua gente como poucos e lutou com suas armas: a caneta e uma imaginação
sem limites.
Gabo foi o quarto latino-americano a conquistar o Nobel de Literatura
-- e hoje o número chega a apenas seis nomes dentre os mais de cem já
premiados ao redor do mundo: a chilena Gabriela Mistral (1945), o
guatematelco Miguel Ángel Asturias (1967) e o também chileno Pablo
Neruda (1971) o antecederam; depois, só o mexicano Octávio Paz (1990) e o
peruano Mario Vargas Llosa (2010) foram lembrados. Bobagem hierarquizar
o conjunto de uma obra literária pela conquista, ou não, de um Nobel,
mas também como não há como negar o peso e a chancela política que o
prêmio concede aos seus vencedores, sobretudo quando premia, talvez por
acidente, alguém do escopo de Gabo e ainda mais vindo destes confins
exóticos da Terra.
Alguns
dirão: foi amigo de Fidel e limitou sua enorme capacidade criativa em
virtude de um, digamos, apoio ao autoritarismo "só que de esquerda". Mas
Gabo não precisa de defesa quanto a isso: assumiu o lado que lhe cabia
no seu contexto histórico e, venhamos e convenhamos, não foi o regime
cubano o maior responsável por qualquer irresignação diante do
analfabetismo nem pela miséria na América Latina, apesar de suas
claríssimas limitações -- do mesmo modo que nenhum artista pode ser
responsabilizado pelas contingências residuais de posições políticas,
determinadas e pontuais, que venham a assumir. No entanto, provavelmente
você não lerá por aí que Mario Vargas Llosa é cúmplice da morte de
incontáveis pessoas largadas ao relento pelo neoliberalismo, o que
mostra o óbvio: não há simetria possível entre as partes envolvidas nessa conversa.
No caso de
um escritor que tinha o que dizer como Gabo, digamos que a importância
da láurea foi de lhe dar voz para denunciar o mascaramento do conflito
social latino-americana -- coisa que ele fez, magistralmente, já no seu
discurso de agradecimento à premiação em Estocolmo, o fabuloso A Solidão na América Latina.
É certo que Mistral, Asturias e Neruda já o tinham feito com singular
habilidade, mas foi Márquez que apanhou a crítica à América Latina e a
elevou além dos limites da realidade, mesmo da realidade poética.
Pode parecer uma contradição em termos que o idealizador de Macondo, e tanta coisa fantástica e mágica, também
seja, ele mesmo, um dos maiores reivindicadores da verdade histórica de
sua terra, mas não é: nada mais surreal e desafiador do que trazer à
tona a história da América Latina aos olhos do mundo, pois Gabo sabia
muito bem que o real é aquilo que está chancelado pelo, e como, discurso
del Rey -- isto é, a verdade da luta e dos oprimidos será sempre realismo fantástico.
Uma América Latina cheia de gentes com cor, cheiro, sensualidade e afetuosidade, na qual "ainda assim, diante da opressão, do saqueio e do abandono, nossa resposta é a vida" é
o plano que Gabo registrou; um mundo de pequenas e profundas
intensidades, fugazes chamas que apesar de tudo transbordam e se fazem
vivas. A literatura de Gabriel García Márquez é a escrita do triunfo do
elemento vivaz do comum e do plebeu em meio à guerra permanente de nossa América. Viveu virtuosamente e partiu idoso deixando tantos mundos a se criar a partir do nosso.
Fonte: O Descurvo
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